Para se perceber a exata dimensão de “Pimenta _ Tributo a Elis Regina”, álbum gravado em 2000 pelo saxofonista e flautista Carlos Malta sobre temas lançados ou consagrados na voz da cantora e que agora neste início de 2024 finalmente chega às plataformas digitais, talvez seja preciso redimensionar certas definições musicais corriqueiras, que normalmente usamos assim, sem muito pensar: música brasileira, clássico, jazz.
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“Pimenta” é evidentemente um álbum de “música brasileira”, muito especialmente naquele arco que vai da Bossa Nova de seu tema mais antigo, o samba “Garota de Ipanema” (1962), à chamada MPB (a bossa nova, neste caso literalmente, politizada) em seu tema mais recente, o também samba “O bêbado e a equilibrista” (1979).
Principal intérprete – e porta-voz – desse tempo e desse lugar, e de sua música, a Pimentinha (tanto no temperamento como no jeito quente de cantar) Elis e seu repertório parecem ser o guia ideal para se embrenhar nesse ethos chamado “música brasileira”. E perceber certas sutilezas na interpretação de Carlos Malta, como o fato de haver mais semelhanças do que diferenças entre um samba “estilizado”, sofisticado e lírico como “Garota de Ipanema”, e outro que dialoga com o samba tradicional (na verdade com o samba-enredo) como “O bêbado e a equilibrista”, e como eles expressam um mesmo universo musical. Entre esses dois temas-irmãos distantes em 17 anos, há uma diversidade incrível de procedimentos musicais, da valsa em 6/8 “Chovendo na roseira” ao modalismo afro de “Upa Neguinho”, do samba reinventado cada qual de um modo muito próprio em “Bala com bala”, “Ladeira da preguiça” e “Águas de março”, ao diálogo aberto com o jazz em “Nada será como antes”, e com as grandes baladas pop em “Cais”. Tudo canção brasileira do mesmo tempo e do mesmo universo criativo (e até comercial), mas cada uma contendo invenções musicais únicas e próprias: música brasileira, enfim.
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Mas “Pimenta” também é um álbum “clássico”. Embora inspirados na música popular e em suas carreiras com vivência na música pop, todos os autores abordados por Carlos Malta neste trabalho já decantado por 24 anos – o tempo de uma geração – são compositores clássicos desse “ethos”. Primeiro clássico moderno da música brasileira – depois de Nazareth, Pixinguinha e Villa-Lobos e mais ligado ao formato predominante aqui, o das canções – Tom Jobim comparece com três de seus, com perdão da redundância, “clássicos”: “Garota de Ipanema”, “Chovendo na roseira” (1967), “Águas de março” (1972).
Os filhos musicais de Tom compõem o restante do repertório. Milton Nascimento vem com a jazzística “Nada será como antes” e a balada “Cais”, ambas do “clássico” álbum “Clube da Esquina” (pioneiro de quase um subgênero da música brasileira), de 1972, e da parceria com Ronaldo Bastos, justamente letrista dos temas mais ousados de Milton. Edu Lobo vem com a revolucionária “Upa Neguinho”, tema pinçado por Elis Regina do musical “Arena conta Zumbi”, peça escrita pelo letrista da canção, Gianfrancesco Guarnieri, em 1965, e que é uma música seminal, típica da transição da bossa nova para a moderna canção brasileira, a dupla Edu e Elis anunciando o futuro, necessariamente inspirado em referências “afro” e das raízes da música e da sociedade brasileiras. Das quais João Bosco é um dos mais notáveis continuadores, com a já citada “O bêbado e a equilibrista” e o samba “Bala com bala” (1972), seu primeiro sucesso lançado por Elis, e que consagrou sua parceria com Aldir Blanc, o equivalente poético de João Bosco na busca por um som brasileiro contemporâneo. Nessa mesma busca musical e poética de reinventar um samba à luz ao mesmo tempo de suas origens africanas e de sua linguagem contemporânea, Gilberto Gil vem com “Ladeira da preguiça” (1974).
Por fim, mesmo sendo um álbum brasileiro e clássico, “Pimenta” tem uma evidente pegada jazzística. E jazz aí também como uma expressão redimensionada, não mais apenas emular a maneira do jazz norte-americano, mas buscar em cada tema timbres, variações rítmicas e harmônicas, improvisos e novidades escondidas nas canções, diálogo essencialmente musical com sua tradição. Acompanhado por diversas formações e pianistas-arranjadores distintos como o bossa-novista Osmar Milito, o contemporâneo Itamar Assiere e e o jazzístico Cliff Korman, e solistas como o guitarrista Gabriel Improta ou Dalmo Mota no violão de 12, Carlos Malta passeia por sua vasta gama de instrumentos de sopro, do sax barítono numa versão quase free para “Ladeira da preguiça”, até a flauta solista de “Águas de março”, esbanjando técnica e inventividade, como a ampliar na música inteira o que o próprio Jobim fazia em contracantos na flauta em suas apresentações ao vivo da canção. Em cada faixa, cuidadosamente Malta alterna seus instrumentos num jogo fascinante de timbres e de possiblidades musicais, do sax soprano nos temas do Milton e em “Garota de Ipanema” a uma flauta baixo densa e suingada em “Bala com bala”, instrumentos quase como que “exigidos” pelas melodias.
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Originário do grupo de Hermeto Pascoal, com quem se apresentou mundo afora e gravou cinco álbuns, ele próprio artista principal em outros 21 discos e criador de grupos inovadores como Pife Moderno (de flautas e percussão) e Coreto Urbano, ou seja, um inventor musical constante, Carlos Malta teve em “Pimenta” curiosamente um dos momentos altos dessa intensa inventividade, apesar de trabalhar com temas muito conhecidos e explorados, justamente ao redimensiona-los de forma jazzística (ou seja, livre), clássica (depurada pela tempo) e brasileira (pelo ethos cultural). Tanto que um dos pontos altos do disco é o desenvolvimento de um tema que não é jazzístico, nem clássico, nem brasileiro: velha canção popular romântica italiana do início do século XX, recriada por Nat King Cole e depois por Elis com grande sucesso, “Fascinação” é das faixas mais surpreendentes de “Pimenta”. Sozinho, Malta sola a melodia no sax soprano, “acompanhado” por sua própria flauta baixo. Como a provar que qualquer música pode, sim, ser brasileira, clássica e jazzística, depende apenas do tempero, da pimenta que se ponha nela. Pimenta que nunca falta em “Pimenta”, olha outra palavra redimensionada nesse álbum clássico que o faz sem palavras, somente com música.
– Hugo Sukman (janeiro de 2024)
DISCO ‘PIMENTA’ • Carlos Malta • Selo Mills Records • 2024
— álbum dedicado a Elis Regina —
Canções / compositores
1. Nada será como antes (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
2. Águas de março (Tom Jobim)
3. Upa Neguinho (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri)
4. Cais (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
5. Bala com bala (João Bosco e Aldir Blanc)
6. Chovendo na roseira (Tom Jobim)
7. Ladeira da preguiça (Gilberto Gil)
8. O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc)
9. Fascinação (Fermo Dante Marchetti e Maurice de Feraudy / vrs. Armando Louzada)
10. Garota de Ipanema (Tom Jobim e Vinícius de Moraes)
– ficha técnica –
Carlos Malta (sax soprano – fx. 1, 4, 6, 9, 10; flauta baixo – fx. 1, 4, 5, 9; flauta – fx. 2, 3, 8; sax barítono – fx. 7; flautim – fx. 7) | Augusto Mattoso (contrabaixo – fx. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8) | Luis Sobral (bateria – fx. 1, 3, 4, 5, 8) | Jurim Moreira (bateria – fx. 2, 6) | Kesso Fernandes (bateria – fx. 7) | Dalmo C. Mota (violão de 12 cordas – fx. 1, 4) | Gabriel Improta (guitarra – fx. 7) | Itamar Assiere (piano – fx. 2, 6) | Osmar Militto (piano – fx. 3, 8) | Cliff Korman (piano – fx. 10) | Gavado: Estúdio SB – Rio de Janeiro/RJ | Direção musical: Carlos Malta | Arranjos: Carlos Malta – fx. 1-7, 9 / Osmar Militto (fx. 8) / Cliff Korman (fx. 10) | Técnico de gravação e mixagem: Fabrizio de Francesco | Masterização: Pró Master – Sérgio Murilo | Foto capa e divulgação: Maria Mazzillo | Texto de apresentação: Hugo Sukman | Produção (2000): Sérgio Benchimol | Produção (2024): Dani Yanes / Carlos Mills | Selo: Mills Records | Formato: CD / Digital | Ano: 2024 | Lançamento: 19 de janeiro | ♪ Ouça o álbum: clique aqui
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> Siga: @carlos_malta_oficial | @millsrecords.br
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Série: Discografia da Música Brasileira / Música instrumental / Jazz / Bossa Nova / Samba / Álbum.
Publicado por ©Elfi Kürten Fenske
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