A idade
Falou e disse um pássaro
dois sóis, uma pequena estrela.
Falou para que calássemos
e disse amor, penúria,brevidade.
E disse disse disse
a idade da eternidade.
– Carlos Nejar, no livro “O chapéu das estações”. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978.
§
Abandonei-me ao vento
Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro livre, que me sabe
quando me levantar e o corpo solte
o seu despojo vão. Em toda a parte
o vento há-de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.
E os seus fragmentos caem na viração
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.
Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.
– Carlos Nejar, no livro “Amar, a mais alta constelação”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1991.
§
Amar é a mais alta constelação
Aqui ficam as coisas.
Amar é a mais alta constelação.
Os sapatos sem dono
tripulando
na correnteza-espaço
em que deitamos.
As minhas mãos telhado
no teu rosto de pombas.
Os corpos
circulando
na varanda dos braços.
É a mais alta constelação.
– Carlos Nejar, no livro “Árvore do mundo”. Rio de Janeiro: Nova Aguilar | INL, 1977.
§
Amar na luz
Amar na luz ou à sombra de um cometa,
com o tempo fugível, fugitivo.
O barulho das ondas afugenta
o que restou de mim sob o rochedo.
Amar com as horas todas, aturdindo
os corpo nus, as almas, os sentidos.
E perceber que a amada está fluindo
até o som, e aos peixes perseguindo.
E é por isso que neles vou descendo
e não sei se é amor, que já me invade,
ou por ele que morro em toda a parte.
Ou terei de morrer, se já me fogem
as vagas de um viver, que à vida solvem,
apenas por estar com o amor fluindo.
– Carlos Nejar, no livro “Amar, a mais alta constelação”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1991.
§
Aqui ficam as coisas
I
Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir.Ir com os rios,
onda a onda.
Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.
E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros
II
Aqui ficam as coisas.
Amar é a mais alta constelação.
Os sapatos sem dono
tripulando
na correnteza-espaço
em que deitamos.
As minhas mãos telhado
no teu rosto de pombas.
Os corpos
circulando
na varanda dos braços.
É a mais alta constelação.
– Carlos Nejar: ‘melhores poemas’. [organização Léo Gilson Ribeiro]. São Paulo: Editora Global, 1997.
§
Humano peso
Os sonhos não os têm só que navega
ou tenta navegar no vento aceso,
mas quem por abismos fica ileso
como se flutuasse numa verga
e as âncoras baixassem na tristeza
ou tristes conduzíssemos o peso,
mais a desolução da carne, a intensa
gravidade das coisas, homem preso
ao mínimo das águas, desatento
aos astros, aos planetas e se alterna
mas é somente febre disparada.
O sonho, o frágil corpo, os elementos
navegam as mudanças subalternas
e os nadas de espuma, em puro nada.
– Carlos Nejar, no livro “Amar, a mais alta constelação”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1991.
§
Cântico
Limarás tua esperança
até que a mó se desgaste;
mesmo sem mó, limarás
contra a sorte e o desespero.
Até que tudo te seja
mais doloroso e profundo.
Limarás sem mãos ou braços,
com o coração resoluto.
Conhecerás a esperança,
após a morte de tudo.
– Carlos Nejar, no livro “Canga (Jesualdo Monte)”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. 1971.
§
Contra a esperança
É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar,
enquanto um fio de água, um remo,
peixes
existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.
É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro
a correr sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite em vão esconde.
O universo é um telhado
com sua calha tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.
É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.
E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.
Um balde a mais
na esperança.
Um balde a mais
contra a esperança
e sobre nós.
– Carlos Nejar, no livro “Árvore do mundo”. Rio de Janeiro: Nova Aguilar | INL, 1977.
§
Luiz Vaz de Camões
Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi resposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
que não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de santos filhos.
– Carlos Nejar: ‘melhores poemas’. [organização Léo Gilson Ribeiro]. São Paulo: Editora Global, 1997.
§
Monjolo
Acreditei no amor, este monjolo
esta sequência pertinaz, isenta
que foi história e como na cinzenta
trituração. No amor não há consolo
a quem ama. Constringe o espesso joio
para cevar o evento que rebenta
do próprio acaso e deste amar de rojo.
O monjolo da infância mais sedenta
que a maleita maleva. Tenho sede.
O monjolo do corpo noutro, dentro;
monjolo da paixão e das calendas.
Monjolo, Deus. Monjolo, onde me esqueço.
Fração nenhuma apraz nesta moenda.
Fração alguma. Amor na morte aumenta.
– Carlos Nejar, no livro “Amar, a mais alta constelação”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1991.
§
Nas altas torres
Nas altas torres do corpo
todas as horas cantavam.
Eu quis ficar mais um pouco
como se um campo de potros
espantasse a madrugada.
Eu quis ficar mais um pouco
e o teu corpo e o meu tocavam
inquietudes, caminhos,
noites, números, datas.
Nas altas torres do corpo
eu quis ficar mais um pouco
e o silêncio não deixava.
Conjugámos mãos e peitos
no mesmo leito, trançados;
eis que surgiu outro peito,
o do tempo atravessado.
Eu quis ficar mais um pouco
e o teu corpo se iniciava
na liturgia do vento,
lenta e veloz como enxada.
Era a semente batendo,
era a estrela debulhada.
Nas altas torres do corpo,
quis ficar. Amanhecia.
Todos os pombos voavam
das altas torres do corpo.
As horas resplandeciam.
– Carlos Nejar, no livro “A casa dos arreios”. Porto Alegre: Editora Globo | INL, 1973.
§
O ganho
Dos deuses não espero soldo, nem reses.
De ganho, só meus proventos:
de ganho, o que esbanjo ao vento.
De ganho o que cava a pá.
De ganho o que faz a paz.
De ganho o que a morte dá,
dia dia, ano e ano.
Neles não ponho linhas ou malhas,
como a peixes.
Ponho luz e ponho tento;
nenhum lucro lanço em dados.
Qual a réstia que os distingue?
Qual a torre? Qual o sino?
Vestem blusas, vestem nuvens?
São humanos ou divinos?
De que tempo o seu declive? De que sarro?
Dos deuses não espero soldo, nem reses.
Só lhes ganho o não rendido,
o obscuro, o solo virgem,
onde parte deles vive
e outra parte se redime.
– Carlos Najar, no livro “Danações”. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1969.
§
Poema da devastação
Há uma devastação
nas coisas e nos seres,
como se algum vulcão
abrisse as sobrancelhas
e ali, sobre esse chão,
pousassem as inteiras
angústias, solidões,
passados desesperos
e toda a condição
de homem sem soleira,
ventura tão curta,
punição extrema.
Há uma devastação
nas águas e nos seres;
os peixes, com seus viços,
revolvem-se no umbigo
deste vulcão de escamas.
Há uma devastação
nas plantas e nos seres;
o homem recurvado
com a pálpebra nos joelhos.
As lavas soprarão,
enquanto nós vivermos.
– Carlos Nejar, no livro “Canga (Jesualdo Monte)”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. 1971.
§
Purificação
Coarar as emoções,
junto às camisas e lenços,
secando tudo isto,
para os poder usar
no serviço.
Coarar as emoções
febris e as elevadas
na grama ou laje de viver,
no quintal,
lavando estas peças
do bem e do mal,
amontoando-as
na bacia, ao fundo.
Talvez o sol.
Antes que tal suceda,
que as paixões sequem
e o medo e os pressentimentos
vindos, amiúde,
no tecido que fomos e somos,
as Parcas entrarão
para dentro do inverno
e nós esperaremos,
a depender do tempo,
do barro, dos elementos,
a depender de fios, atavios,
céu,inferno,
a depender da sorte
que nos recolhe
ao balde.
A alma! Que ferro de engomar
a desenrugue dos erros
e ela se limpe, ao menos!
Que o ferro alise
suas ênfases, tropeços.
E trace as imagens
nas emoções mais velhas,
nas que foram pisadas.
Esquecê-las!
O ferro de passar
no mundo inapreendido.
Depois,
coser botões caídos
ou quem sabe,
coser os símbolos
e a jubilação do dia.
Que a alma, ao menos,
saia sem vincos!
– Carlos Nejar: ‘melhores poemas’. [organização Léo Gilson Ribeiro]. São Paulo: Editora Global, 1997.
§
Salvo-conduto
Forcei os símbolos,
cansei os atributos.
A condição humana
não me dá salvo-conduto;
nem a dor dos limites
ou qualquer produto.
A condição humana
é uma fresta da janela.
Aceitá-la é vivê-la:
que se abram portas
ou o espaço das estrelas.
Viver é descobrir
a fronteira dos corpos.
Amar o que se toca
e tudo o que reclama
passagem
entre nós
e o que se ama.
A condição humana
é a alucinada chama,
o último reduto.
– Carlos Nejar, no livro “A casa dos arreios”. Porto Alegre: Editora Globo | INL, 1973.
§
Sintaxe
Eu me acrescento aos rios e aos rios me descem.
E me acrescento aos peixes. Nele deito
e com os musgos preparo alguns projetos.
Nos liquens boto andaimes que florescem.
E me caso com as pedras , conchas e ecos,
onde as lesmas pernaltas se intumescem.
E me acrescento a todos os espécimes
que se aleitam na orla, entre os insetos.
Ovos de larvas, vespas renitentes
e os mais jovens orvalhos em resíduos
se acendem. Borboletas se acrescentam
à sintaxe de um sol intermitente.
E eu vento, vento algas e líbidos.
E em rios me acrescento, onde não venta.
– Carlos Nejar, no livro “Amar, a mais alta constelação”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1991.
§
Talvez
Talvez o universo não exista.
Seja apenas a sombra fugitiva
da idéia de um universo; ou talvez
seja a perdida infância, o clarão
de alguma inteligência subitânea.
Sim, talvez não exista.Seja um medo
de haver mais testemunhos, relações
afetos exteriores ou temidos,
ou mero espectador de algum incêndio
havido e não sabido ou antecipado
para que reste cinza, cinza e vão.
Ou nada reste de um sistema,
uma harmonia cósmica, o pavor
de alguém nos assistir, estando ausente.
Não existe universo, nem o dia
ou a noite.Nós inventamos tudo,
inventamos a nós mesmos
e esquecemos a fórmula, o entrecho,
inventando o esquecimento.
Ou é invenção o pensamento,
uma argúcia engedrada pelos deuses
de se engedrarem juntos, nos pensando.
Ou o universo seja apenas quando
cessarmos de existir, desentocando
o mistério maior, aquele plasma
que rege a potestade, ou forma insone
de se viver, morrido, com o corpo
exilado num outro. O universo
se compõe, se dormimos.Ele existe.
Sobrevive tangível quando amamos
ou tontos despertamos. O universo
perturba, ferve nos corrói. E assoma.
Continuará depois que sepultarmos
essa comunicação, toda a vontade
e a matéria restrita ou desatenta.
E talvez o universo nos inventa.
– Carlos Nejar: ‘melhores poemas’. [organização Léo Gilson Ribeiro]. São Paulo: Editora Global, 1997.
§
Vórtice
Pensei em moldar no desejo
as fórmulas, os temperos,
as brisas e as cancelas,
o fuso dos vincos.
Pensei que o desejo, saciado,
saciasse nos subúrbio da carne,
no sexo.
Todavia,
nada nos sacia.
É uma sede no âmbito da alma
e mesmo calma,
excede o caminho de meu corpo,
as suas montanhas,preceitos.
Bato na pedra ancestral,
na delegacia civil,
no Livro de Nostradamus,
no clavicórdio,
no ódio.
Mas esta ânsia não para
na amada,
na morte,
no juízo universal.
Continuará para qualquer instância,
sem a podermos segurar
ao palanque, nos braços,
aos lábios.
Continuará pelos séculos
sem remédio ou tédio.
– Carlos Nejar, no livro “A casa dos arreios”. Porto Alegre: Editora Globo | INL, 1973.
§
XIV
É preciso partir da manhã
para o escuro de Deus.
Das coisas
para as coisas.
Pisar na dor
para o equilíbrio
da terra e os frutos.
É preciso amar sempre
e de novo.
Que os pensamentos voam raso,
embaixo das estrelas.
Não há religião ou ambição
nas profundezas.
Quem ama
corre o risco.
– Carlos Nejar: ‘melhores poemas’. [organização Léo Gilson Ribeiro]. São Paulo: Editora Global, 1997.
***
BREVE BIOGRAFIA DE CARLOS NEJAR
Luís Carlos Verzoni Nejar, poeta, ficcionista, crítico e tradutor, nasceu em Porto Alegre (RS), em 11 de janeiro de 1939. Seu primeiro livro de poesias, “Sélesis”, foi publicado em 1960. Nessa época trabalhava no “Diário de Notícias”, de Porto Alegre, como colaborador da página literária “Nossa Geração”. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica – RS, em 1962, entre 1966 e 1974 foi professor da rede pública estadual em Itaqui (RS) e Promotor de Justiça em várias cidades do interior gaúcho, além de Procurador da Justiça em Porto Alegre. Atualmente, aposentado, reside em Guarapari (ES). É membro da Academia Brasileira de Letras desde 9 de maio de 1989, ocupando a cadeira nº 4. Recebeu inúmeros prêmios, entre eles, em 1970, o Prêmio Jorge de Lima, pelo livro “Arrolamento”, concedido pelo Instituto Nacional do Livro. Em 1979 ocorreu a gravação de seus poemas para a Biblioteca do Congresso, em Washington (EUA).
Considerado um dos 37 escritores chaves do século, entre 300 autores memoráveis, no período compreendido de 1890-1990, Nejar — chamado “o poeta do pampa brasileiro” — figura como uma voz emblemática e universal, de original e abundante produção lírica, ao lado de Octavio Paz, Jorge Luis Borges, César Vallejo e Nicanor Parra. O ensaio do crítico suíço Gustav Siebenmann, “Poesía Y Poéticas del Siglo XX En La América Hispana Y El Brasil” (Ed. Gredos, Biblioteca Románica Hispânica, Madri, 1997), analisa as vertentes da poética espanhola e latino-americana, resgatando seus movimentos e tendências. Da literatura brasileira, 14 nomes são mencionados, entre outros, além de Nejar, Cruz e Sousa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Haroldo de Campos.
Fonte: Releituras
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