“Quem de nós não sonhou, em dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima, bastante maleável e variada para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações da fantasia, aos sobressaltos da consciência?” — escreve Baudelaire ao contemporâneo e amigo Arsène Houssaye, referindo-se aos sentimentos que lhe inspiraram este livro. E essa ambição foi realizada, plenamente realizada, malgrado o modesto receio em contrário manifestado pelo autor.
São verdadeiros poemas em prosa os pequenos contos aqui reunidos. Um grande e profundo sentimento poético, poderosamente auxiliado por uma imaginação fertilíssima e por um estilo sempre diverso e cheio de ritmo, é vazado em toda a extensão destas páginas.
Amor, ternura, sonho, ambição, bondade, angústia, bonomia, egoísmo, ciúme, sofrimento, em suma, todas as múltiplas variações da psicologia do poeta aqui se refletem em seus grandes momentos.
Não será, talvez, um livro genial; mas é certamente, e antes de tudo, da primeira à última linha, um grande livro humano, acentuadamente humano, como muito poucos.
A ARSÈNE HOUSSAYE
(1) Meu caro amigo: Envio-lhe um pequeno trabalho do qual não se poderia dizer, sem injustiça, que não tem cauda nem cabeça, porque nele, ao contrário, tudo é ao mesmo tempo cabeça e cauda, alternativa e reciprocamente. Peço-lhe considerar as admiráveis comodidades que esta combinação a todos nos oferece, a você, a mim e ao leitor. Podemos interromper onde quisermos: eu o meu sonho, você o manuscrito, o leitor a leitura. Não quero suspender a vontade de parar do leitor no fio interminável de uma intriga superfina. Tire uma vértebra, e os dois pedaços dessa tortuosa fantasia tornarão a juntar-se sem dificuldade. Pique-a em numerosos fragmentos, e verá que cada um pode existir à parte. Na esperança de que alguns destes fragmentos sejam bastante vivos para lhe agradar e o divertir, ouso dedicar-lhe a serpente toda.
Tenho uma pequena confissão que lhe fazer. Foi ao folhear, no mínimo, pela vigésima vez, o famoso Gaspard de la Nuit, de Aloysius Bertrand (2) (não terá um livro que você, eu e algum dos nossos amigos já conhecemos, todos os direitos de chamar-se famoso?), que me veio a ideia de tentar alguma coisa de análogo e de aplicar à descrição da vida moderna, ou antes, de uma vida moderna e mais abstrata, o processo que ele aplicara à pintura da vida antiga, tão estranhamente pitoresca.
Quem de nós não sonhou, em dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima, bastante maleável e variada para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações da fantasia, aos sobressaltos da consciência? É sobretudo da frequentação das cidades enormes, do cruzamento de suas inumeráveis relações, que nasce a obsessão desse ideal. Você mesmo, meu caro amigo, não tentou traduzir numa canção o grito estridente do Vidraceiro e exprimir numa prosa lírica todas as desoladoras sugestões que esse grito envia às mansardas, através as mais altas brumas da rua? Mas, para falar a verdade, receio que a minha ambição não tenha sido feliz. Mal comecei a tarefa, percebi não só que estava muito longe do meu misterioso e brilhante modelo, mas ainda que fazia alguma coisa (se isto pode chamar-se alguma coisa) de singularmente diverso, circunstância que sem dúvida orgulharia qualquer outro que não eu, mas que só pode humilhar profundamente um espírito que considera como a maior honra para um poeta a justa realização do que projetou fazer.
Afetuosamente,
CHARLES BAUDELAIRE(*)
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(1) Arsène HOUSSAYE (1815-1896), literato francês, autor de várias obras de grande espírito: Quadragésima Primeira Cadeira da Academia Francesa, O Rei Voltaire, etc.
(2) Aloysius BERTRAND, contemporâneo de Baudelaire, autor das Fantasias e do Gaspard de la Nuit.
I – O ESTRANGEIRO
— Quem mais amas, homem enigmático, responde: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão? — Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
— Teus amigos? — Você emprega uma palavra cujo sentido até hoje desconheço.
— Tua pátria? — Ignoro a que latitude está situada.
— A beleza? — Eu gostaria de amá-la, deusa e imortal.
— O ouro? — Odeio-o tanto quanto você a Deus.
— Que amas então, extraordinário estrangeiro? — Amo as nuvens… as nuvens que passam ao longe… as nuvens maravilhosas!
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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III – CONFISSÃO DE ARTISTA
Como são penetrantes as tardes de outono! Penetrantes até à dor! Há certas sensações deliciosas em que o vazio não exclui a intensidade. E não há ponta mais acerada que a do infinito.
Grande delícia, mergulhar os olhos na imensidão do céu e do mar! Solidão, silêncio, incomparável castidade do azul! Pequena vela a tremular no horizonte, cuja fraqueza e isolamento imitam minha irremediável existência. Melodia monótona das ondas. Todas essas coisas pensam por mim, ou eu penso por todas: na grandeza do sonho, o eu logo se perde! Pensam, repito, mas musical e pinturescamente, sem argúcias, sem silogismos, sem deduções.
Todavia, esses pensamentos, que partem de mim ou se precipitam das coisas, logo se tornam demasiado intensos. A energia na volúpia cria uma inquietude e um sofrimento positivos. Meus nervos, tensos demais, dão apenas vibrações agudas e dolorosas.
E agora a profundeza do céu me consterna; exaspera-me a sua limpidez. Revoltam-me a insensibilidade do mar, a imutabilidade do espetáculo… Ah! Será preciso sofrer eternamente, ou evitar eternamente o belo? Natureza, impiedosa feiticeira, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Não tentes os meus desejos e o meu orgulho! A contemplação do belo é um combate em que o artista grita de pavor antes de ser vencido.
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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VI – CADA QUAL COM SUA QUIMERA
Sob um grande céu de cinza, numa vasta planície poeirenta, sem estradas, sem mato, sem espinho, sem urtiga, encontrei vários homens, curvados, a marchar.
Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera (5), pesada como um saco de farinha ou de carvão, ou como a mochila de um infante romano.
Mas a monstruosa besta não era um peso inerte. Ao contrário, envolvia e oprimia o homem com músculos elásticos e potentes. Cravava as garras enormes no peito da montaria.
E a cabeça fabulosa dominava a frente do homem, como os elmos medonhos com que os guerreiros antigos pretendiam aumentar o terror do inimigo.
Interpelei um daqueles homens e perguntei-lhe aonde iam. Respondeu-me que não sabia, nem ele, nem os outros. Evidentemente, porém, acrescentou, iam a alguma parte, pois eram levados por uma incrível necessidade de marchar.
Coisa curiosa: nenhum dos viajantes parecia irritado com a fera que levava suspensa ao pescoço e colada às costas; dir-se-ia que a considerava como fazendo parte de si mesmo.
Nenhum daqueles rostos fatigados e sérios demonstrava o menor desespero. Sob a cúpula melancólica do céu, pés mergulhados na areia de um chão tão desolado quanto o céu, caminhavam com a fisionomia resignada dos que estão condenados a esperar sempre.
O cortejo passou ao meu lado e afundou-se na atmosfera do horizonte, no lugar em que a superfície arredondada do planeta se furta à curiosidade do olhar humano.
Durante alguns instantes, obstinei-me em querer compreender esse mistério. Logo, porém, a irresistível indiferença abateu-se sobre mim, e eu me senti mais oprimido do que eles com as pesadas Quimeras.
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
(5) Monstro com três cabeças, cujo corpo, meio cabra meio leão, tinha cauda de dragão e vomitava chamas pela boca. Foi morto por Belerofonte, herói mitológico.
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XVI – O RELÓGIO
Os chineses veem as horas nos olhos dos gatos.
Um dia, um missionário passeando nos arredores de Nanquim, notou que esquecera o relógio e perguntou a um menino que horas eram.
O garoto do Celeste Império hesitou um pouco, mas depois, decidindo-se, respondeu: — Vou dizer-lhe.
Alguns instantes depois, tornou a aparecer, segurando nos braços um enorme gato.
E, fitando-o como se costuma dizer, na alva dos olhos, afirmou sem hesitar: — Ainda não é bem meio-dia, — o que era verdade.
Quanto a mim, se me inclino sobre a linda Felina, tão bem dotada que é ao mesmo tempo a honra do sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do meu espírito, à noite ou durante o dia, em plena luz ou na sombra opaca, vejo sempre distintamente as horas no fundo dos seus olhos adoráveis, sempre a mesma hora, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisões de minutos nem de segundos, — hora imóvel que não está marcada nos relógios e é, no entanto, ligeira como um suspiro, rápida como um olhar.
E, se viesse um importuno perturbar-me quando o meu olhar descansa sobre esse delicioso quadrante, se um gênio intolerante e desonesto, um demônio do contratempo viesse dizer-me: — Que vês com tanto interesse? Que procuras nos olhos desse ser? Vês as horas, oh mortal pródigo e indolente? Eu responderia sem hesitar: — Sim, vejo as horas; é a Eternidade! Não é certo, amada, que é esse um madrigal verdadeiramente meritório e tão enfático como você? Realmente, tanto prazer eu tive em bordar este precioso galanteio que não lhe pedirei nada em troca.
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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XXVII – CREPÚSCULO VESPERTINO
Anoitece. Uma grande calma se faz nos pobres espíritos fatigados pelo labor do dia.
Os pensamentos tomam as cores ternas e indecisas do crepúsculo.
Do alto da montanha, através as nuvens transparentes da tarde, chega à minha sacada um uivo medonho, composto de uma porção de gritos discordantes, que o espaço transforma em lúgubre harmonia, como a da maré que sobe ou da tempestade que desaba.
Quais são os infortunados que a tarde não acalma e que, como os mochos, tomam o anoitecer por um sinal de sabá? O sinistro ulular nos vem de um negro hospício encravado na montanha. À noite, fumando e contemplando o imenso vale em repouso, eriçado de casa cujas janelas dizem: “Aqui reside a paz, aqui a alegria da família!”, eu posso, quando o vento sopra de lá de cima, embalar meu pensamento assombrado nessa imitação das harmonias do inferno.
O crepúsculo excita os loucos. Lembro-me de que tive dois amigos que o crepúsculo tornava logo doentes. Um deles desconhecia todas as relações de amizade e de polidez, e maltratava, como um selvagem, o primeiro que aparecesse. Eu o vi atirar à cabeça de um criado um frango excelente, no qual julgara ver não sei que insultante hieróglifo. A noite, precursora das volúpias profundas, estragava-lhe as coisas mais suculentas.
O outro, aflito ambicioso, tornava-se, á medida que a noite caía, mais ríspido, mais sombrio, mais tacanho. Indulgente e sociável durante o dia, à noite era impiedoso. E não era somente sobre os outros, mas também sobre ele próprio, que se exercia furiosamente essa mania crepuscular.
O primeiro morreu louco, incapaz de reconhecer a própria mulher e o filho. O segundo carrega a inquietação de um perpétuo mal-estar e, se fosse agraciado com todas as honras que as repúblicas e os príncipes conferem, ainda assim eu creio que o crepúsculo acenderia nele uma ardente ambição de distinções imaginárias. A noite, que lhe punha trevas no espírito, traz luz ao meu. E, se bem que não raro se veja a mesma causa engendrar dois efeitos contrários, eu me sinto sempre, à noite, intrigado e alarmado.
Oh noite! Oh trevas refrescantes! Sois para mim o sinal de uma festa interior, sois o parto de uma angústia! Na solidão das planícies, nos labirintos de pedra de uma capital, fulguração das estrelas, explosão das lanternas, sois o fogo de artifício da deusa liberdade! Crepúsculo, como sois doce e terno! Os róseos reflexos que ainda se veem no horizonte, com a agonia doa dia sob a opressão vitoriosa de sua noite, os fogos dos candelabros produzindo manchas de um vermelho opaco sobre as últimas glórias do ocaso, as pesadas cobertas atiradas por mão invisível das profundezas do Oriente, imitam todos os sentimentos complicados que lutam no coração do homem nas horas solenes da vida.
Dir-se-ia ainda uma dessas estranhas túnicas de dançarina, cuja gaze transparente e sombria deixa entrever os esplendores amortecidos de um fulgurante vestido, como do negro presente transparece o delicioso passado. E as estrelas vacilantes de ouro e de prata, que a semeiam, representam os fogos da fantasia, que só ficam bem acesos sob o luto profundo da Noite.
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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XXVI – OS OLHOS DOS POBRES
Ah! Quer saber porque hoje a detesto? Você terá, sem dúvida, menos facilidade em compreendê-lo do que eu em explicá-lo. Considero-a o mais belo exemplo de impermeabilidade feminina que se possa encontrar.
Passamos juntos um longo dia, que me parecera curto. Tínhamos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns e que as nossas almas seriam uma só. Ora, esse sonho nada tem de original, a não ser o fato de que, sonhado por todos os homens, não foi realizado por nenhum.
À tarde, sentindo-se um pouco fatigada, você quis sentar-se defronte a um café novo, na esquina de uma nova avenida, ainda cheia de asfalto e já mostrando gloriosamente esplendores inacabados. O café estava cintilante. O gás tinha todo o ardor de um começo, iluminando com toda a intensidade as paredes resplandentes de brancura, as cascatas deslumbrantes dos espelhos, o ouro das molduras e das cornijas, os criados de bochechas redondas puxados por cães presos à corrente, as damas sorrindo ao falcão trepado no punho, as ninfas e as deusas carregando frutas, pastéis e caça na cabeça, as Hebes (29) e os Ganimedes (30) ostentando com o braço estendido a pequena ânfora de néctar, ou o obelisco bicolor dos sorvetes aromáticos: toda a história e toda a mitologia postas a serviço da gulodice.
De pé diante de nós, na calçada, um homem de uns quarenta anos, rosto abatido, barba grisalha, dava a mão a um menino e no outro braço segurava um ser pequenino fraco demais para andar. Fazia as vezes de ama, para os filhos respirarem o ar da tarde. Todos em andrajos. As três fisionomias estavam extraordinariamente sérias e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual admiração, apenas diversificada pela idade.
Diziam os olhos do pai: — Como é bonito! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo foi trazido para essas paredes.
Os olhos do menino diziam: — Como é bonito! Mas, é uma casa onde só pode entrar gente que não é como nós.
Quanto aos olhos do pequenino, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa além de uma alegria estúpida e profunda.
Dizem os cancioneiros que o prazer torna a alma bondosa e enternece o coração.
Tinham razão, essa tarde. Eu não só estava enternecido com essa família de olhos, mas me sentia um tanto envergonhado dos nossos copos e garrafas, maiores do que a nossa sede.
Fitei então os meus nos seus, meu amor, para ler o meu pensamento. E estava mergulhado nos seus olhos, tão belos e tão singularmente doces, nos seus olhos verdes, quando você me disse:
— Não suporto essa gente de olhos escancarados como porteiras! Porque você não pede ao dono do café que os afaste daqui? Como é difícil um entendimento, anjo querido! E como o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
(29) HEBE, deusa da juventude, filha de Júpiter e de Juno. Júpiter encarregou-a de oferecer aos deuses o néctar e a ambrosia, no que foi mais tarde substituída por Ganimedes. Casou-se com Hércules e foi então incluída no número dos deuses.
(30) Príncipe troiano, que Zeus transformou em águia para fazer dele o escanção dos deuses.
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XXX – A CORDA
A Edouard Manet (33)
As ilusões — dizia-me meu amigo — são talvez tão inumeráveis quanto as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. Quando a ilusão desaparece, isto é, quando vemos o ser ou o fato tal qual existe fora de nós, experimentamos um sentimento estranho, misto de saudade do fantasma desaparecido e agradável surpresa ante a novidade, ante o fato real. Se existe um fenômeno evidente, trivial, sempre semelhante e de tal natureza que a respeito seja impossível haver engano, é o amor materno. É tão difícil supor uma mãe sem amor materno quanto uma luz sem calor. Não é, pois, perfeitamente legítimo atribuir ao amor materno todas as ações e palavras de uma mãe, relativas ao seu filho? No entanto, escute esta pequena história, em que fui singularmente mistificado pela ilusão mais natural.
Minha profissão de pintor leva-me a observar atentamente os rostos, as fisionomias que aparecem no meu caminho. Você sabe o prazer que experimentamos por essa faculdade que aos nossos olhos torna a vida mais viva e mais significativa do que para os outros homens. No bairro retirado em que moro e onde vastos espaços de mato ainda separam as construções, observei muitas vezes um menino cuja fisionomia ardente e esperta, mais do que todas as outras, logo me seduziu. Por mais de uma vez, ele posou para mim eu o transformava ora em pequeno boêmio, ora em anjo, ora em Amor mitológico. Fazia-o carregar o violão do vagabundo, a Coroa de Espinhos e os Pregos da Paixão, e a Tocha de Eros. Cheguei a sentir um prazer tão vivo com as graças desse garoto, que um dia pedi aos seus pais, gente muito pobre, que consentissem em confiá-lo a mim, prometendo-lhes que o vestiria bem, que lhe daria algum dinheiro e que o seu único trabalho seria limpar os meus pincéis e fazer minhas compras. O menino, depois de ter lavado o rosto, tornou-se encantador, e a vida que levava em minha casa parecia-lhe um paraíso, em comparação com a que teria sofrido no cortiço paterno. Devo dizer somente que o guri me surpreendia, às vezes, com crises singulares de tristeza precoce, tendo em breve manifestado um gosto imoderado pelo açúcar e pelos licores. Um dia, ao constatar que, a despeito de todas as minhas advertências, ele tornara a cometer um pequeno furto desse gênero, ameacei-o de mandá-lo de novo para a casa dos pais. E saí em seguida, tendo os meus afazeres me retido bastante tempo fora de casa.
Quais não foram o meu horror e o meu assombro quando, regressando à casa, o primeiro objeto em que pus os olhos foi o meu guri, o esperto companheiro de minha vida, enforcado no painel daquele armário! Seus pés quase tocavam o soalho; uma cadeira, que ele decerto empurrara com o pé, estava derrubada ao lado; tinha a cabeça pendida sobre um ombro; o rosto inchado e os olhos arregalados com espantosa fixidez deram-me, a princípio, a ilusão de que ainda vivia. Descrever o que se passou não é tarefa tão fácil quanto talvez você o julgue. Ele já estava hirto e eu sentia uma certa repugnância inexplicável em fazê-lo cair bruscamente ao chão. Precisei segurá-lo com um só braço, enquanto com o outro cortei a corda. Feito isso, como o pequeno monstro se tivesse servido de uma corda muito fina que lhe entrara profundamente na carne, precisei, com uma tesourinha, procurar a corda entre os dois caroços da inchação, para desembaraçar-lhe o pescoço.
Esqueci-me de dizer-lhe que, em minha aflição, gritei por socorro, mas todos os vizinhos recusaram-se a ir em meu auxílio, fiéis aos hábitos do homem civilizado que, não sei porquê, nunca se envolve em casos de enforcamento. Afinal, veio um médico que declarou que o menino estava morto havia várias horas. Quando, mais tarde, tivemos de despi-lo para o enterro, a rigidez do cadáver era tal que, desistindo de dobrar-lhe os membros, precisamos rasgar e cortar a roupa para tirá-la.
O comissário, a quem, como é natural, eu tive de expor o ocorrido, olhou-me de través e me disse, sem dúvida pelo desejo inveterado e o hábito profissional de atemorizar, arbitrariamente, os inocentes como os culpados: — Isso está mal contado! Restava uma tarefa suprema que cumprir, cuja simples ideia causava-me uma angústia terrível: era preciso avisar os pais. Meus pés recusavam levar-me. Por fim, tomei coragem. Mas, com grande espanto meu, a mãe ficou impassível, nem uma lágrima brotoulhe no canto dos olhos. Atribuí essa coisa estranha ao horror que ela deveria ter sentido e lembrei-me da conhecida sentença: “As dores mais terríveis são as dores silenciosas”.
Quanto ao pai, limitou-se a dizer com um ar meio grosseiro e sonhador: — Afinal, talvez seja melhor assim. De qualquer forma ele acabaria mal! O corpo estava estendido no meu sofá, e eu, ajudado por uma criada, tratava dos últimos preparativos, quando a mãe entrou no meu estúdio. Disse-me que desejava ver o cadáver do filho. Eu não podia, naturalmente, impedir que ela se embriagasse em sua desgraça, recusando-lhe esse supremo e sombrio consolo. Pediu-me que lhe mostrasse o lugar onde o filho se enforcara.
— Oh, não, senhora! — respondi-lhe, — isso lhe faria mal.
E, como os meus olhos se voltassem involuntariamente para o fúnebre armário, notei, com um desgosto mesclado de horror e cólera, que o prego ficara fincado na parede, com um comprido pedaço de corda dependurado. Precipitei-me para arrancar esses últimos vestígios da desgraça e, quando quis atirá-los pela janela aberta, a pobre mulher pegou-me pelo braço e me disse com uma voz irresistível: — Oh, senhor! Deixe-me isso, peço-lhe, suplico-lhe! Tive a impressão de que o desespero tornara-a tão alucinada que se tomava agora de ternura pelo que servira de instrumento à morte do filho, querendo guardá-lo como uma horrível e querida relíquia. E assim se apoderou do prego e da corda.
Enfim! Enfim, estava tudo acabado. Só me restava retornar ao trabalho, mais vivamente ainda do que de costume, para expulsar aos poucos o pequeno cadáver que vagava nas circunvoluções do meu cérebro, perseguindo-me com seus grandes olhos fixos.
No dia seguinte, porém, recebi um maço de cartas: umas, dos locatários de minha casa, outras das casas vizinhas; uma, do primeiro andar, outra do segundo; outra do terceiro; e assim por diante, umas em estilo burlesco, como que procurando disfarçar sob uma pilhéria aparente a sinceridade do pedido; outras, pesadamente cínicas e sem ortografia, mas todas tendendo ao mesmo fim: obter de mim um pedaço da corda funesta e beatífica. Entre os signatários, havia, devo dizer-lhe, mais mulheres do que homens; nem todos, porém, acredite, pertenciam à classe baixa e vulgar. Eu guardei essas cartas.
E então, subitamente, uma luz se fez no meu cérebro, e compreendi porque aquela mãe empenhara-se tanto em arrancar-me a corda e com que comércio ela tencionava consolar-se.
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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XXXII – O TIRSO
A Franz Liszt (34)
Que é um tirso? No sentido moral e poético, é um símbolo com que os sacerdotes e sacerdotisas celebram a divindade da qual são os intérpretes e os servidores. Mas, fisicamente, é apenas um pau, um simples pau, uma estaca de lúpulo, ou um esteio de vinha, seco, duro e direito. Em volta desse pau, em meandros caprichosos, divertem-se e brincam hastes e flores, umas sinuosas e fugidias, outras pendendo como sinos ou taças derrubadas. Uma glória fantástica jorra dessa complexidade de linhas e de cores, pálidas ou brilhantes. Dir-se-ia que a linha curva e a espiral fazem a corte à linha reta e dançam ao redor de uma silenciosa adoração. Dir-se-ia que todas essas corolas delicadas, todos esses cálices, explosões de aromas e de cores, executam um místico fandango em torno do bastão hierático. Todavia, que imprudente mortal ousará decidir se as flores e os pâmpanos foram feitos para o bastão, ou se o bastão é apenas o pretexto para mostrar a beleza dos pâmpanos e das flores? O tirso é a representação da vossa maravilhosa dualidade, senhor poderoso e venerado, caro Bacante (35) da Beleza misteriosa e apaixonada. Ninfa alguma, exasperada pelo invencível Baco, sacudiu o tirso sobre as cabeças das companheiras, enlouquecidas com a energia e o capricho com que agitais o vosso gênio sobre os corações dos vossos irmãos. O bastão é a vossa vontade, reta, firme e inabalável. As flores, o passeio de vossa fantasia em torno de vossa vontade. É o elemento feminino executando em volta do macho as suas prestigiosas piruetas. Linha reta e linha arabesca, intenção e expressão, tensão da vontade, sinuosidade do verbo, unidade do fim, variedade dos meios, amálgama todo-poderoso e indivisível do gênio: que analista terá a detestável coragem de vos dividir e separar? Caro Liszt, através das brumas, para além dos rios, acima das cidades onde os pianos cantam a vossa glória, onde a imprensa traduz a vossa sabedoria, em qualquer parte que vos encontreis, nos esplendores da cidade eterna ou nas brumas dos países sonhadores que Cambrinus consola, improvisando canções alegres ou de inefável dor, ou confiando ao papel vossas meditações abstrusas, cantor da Volúpia e da Angústia eternas, filósofo, poeta e artista, eu vos saúdo na imortalidade!
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
(35) As bacantes eram sacerdotisas que celebravam os mistérios do culto de Baco. Corriam ao acaso, desgrenhadas, coroadas de hera e de ramos de vinha, com o tirso em punho, dançando e soltando gritos discordantes. Essas festas, denominadas bacanais, eram antigamente celebradas no Egito e na Grécia e foram depois introduzidas em Roma, onde originaram desordens e escândalos, a que o senado teve que pôr cobro (186 a.c.).
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XXXIII – EMBRIAGAI-VOS!
Deveis andar sempre embriagados. Tudo consiste nisso: eis a única questão. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão, é preciso que vos embriagueis sem descanso.
Mas, com quê? Com vinho, poesia, virtude. Como quiserdes. Mas, embriagai-vos.
E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, na verde relva de uma vala, na solidão morna do vosso quarto, despertardes com a embriaguez diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são. E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio vos responderão: — É a hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos! Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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XXXV – AS JANELAS
Quem olha de fora por uma janela aberta não vê nunca tantas coisas como quem olha uma janela fechada. Não há objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante, do que uma janela iluminada por uma candeia. O que se pode ver ao sol é sempre menos interessante do que o que se passa por detrás de uma vidraça. Dentro daquela abertura negra ou luminosa, a vida vive, a vida sonha, a vida sofre.
Para além das vagas de tetos, distingo uma mulher madura, já enrugada, pobre, sempre curvada sobre alguma coisa, e que não sai nunca. Com seu rosto, com sua roupa, com seus gestos, com quase nada, eu refiz a história dessa mulher, ou antes, sua lenda, e às vezes, chorando, conto-a a mim mesmo.
Se fosse um pobre velho, eu teria feito o mesmo com igual facilidade.
Deito-me, orgulhoso de ter vivido e sofrido em outros que não eu.
Dir-me-ei talvez: — Estás certo de que é essa a lenda verdadeira? Que importa o que pode ser a realidade colocada fora de mim, se ela não me ajudou a viver, a sentir que sou, o que sou?
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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LI – EPÍLOGO
Eu subi à montanha e pus-me a contemplar
A cidade maldita, em sua vastidão:
Hospital, purgatório, inferno, lupanar,
Tudo, tudo a florir, como a flor em botão.
Bem sabes, Satanás, patrono da desgraça,
Que eu não iria lá para chorar em vão:
Como o amante senil de uma velha devassa,
Desejei me fartar da enorme barregã,
Cujo canto infernal me remoça e me enlaça.
Quer te veja a dormir nos lençóis da manhã,
Fria, pesada, obscura, e quer te possa ver,
Com teu véu de ouro e treva, enfeitada e louçã,
Eu te amo, oh capital, como tu deves ser:
Bandidos, cortesãs, a prodigar prazeres
Que o profano vulgar não pode compreender.
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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Charles Pierre Baudelaire nasceu em Paris, em 9 de abril de 1821. Era filho de um pintor amador adido à administração do Senado. Ainda muito criança, perdeu o pai, tornando sua mãe a casar-se com o coronel Aupick, que foi mais tarde marechal de campo e embaixador da França em Constantinopla, em Londres e em Madri.
Baudelaire iniciou seus estudos no colégio de Lyon e terminou-os no Liceu Luiz O Grande em 1839. A despeito da vontade da família, não quis seguir nenhuma carreira, para consagrar-se exclusivamente à literatura. Foi então que seus pais, para vencer-lhe a resistência, resolveram embarcá-lo num navio mercante com destino a Calcutá. Ele, porém, não chegou ao termo da viagem e, após uma ausência de dez meses, regressou à França.
Ao atingir a maioridade, recebeu Baudelaire uma fortuna de cerca de setenta e cinco mil francos, que o pai lhe deixara como herança. Vendo-se finalmente livre, foi morar na ilha de Saint Louis, onde travou relações de amizade com Banville, Levasseur, Prarond e outros jovens poetas e artistas.
Notável influência na formação de seu espírito exerceram as obras de Edgar Poe, seu contemporâneo, que ele, desde criança familiarizado com a língua inglesa através das viagens que fizera, traduziu para o francês com uma perícia verdadeiramente magistral, reunindo-as em cinco volumes: Histórias Extraordinárias, Novas Histórias Extraordinárias, Aventuras de Arthur Gordon Pym, Eureka e Histórias Sérias e Jocosas.
Quanto às obras de Baudelaire, muitas das quais foram condenadas e perseguidas, passaram a constituir, logo depois de sua morte, verificada em Paris a 31 de Agosto de 1867, uma edição definitiva, composta de quatro volumes: Flores do Mal, Curiosidades Estéticas, A Arte Romântica e Pequenos Poemas em Prosa. Desse último volume, que aparece sob esse título geral, mas que encerra diferentes trabalhos, extraímos os poemas cuja primeira tradução brasileira aqui oferecemos ao público.
Charles Baudelaire, Pequenos poemas em prosa | O spleen de Paris. [tradução Paulo M. Oliveira (pseudônimo de Aristides Lobo)]. Coleção Biblioteca Clássica. Rio de Janeiro: Athena Editora, 1937.
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