Após o advento do Cinema Novo, com sua proposta de análise e enfrentamento dos problemas brasileiros, difundiu-se certa ideia de que o cinema nacional deveria se ocupar sobretudo da realidade sociopolítica do país. Algo que, de alguma forma, sempre ocorreu, seja no “intelectualizado” movimento, seja nas ditas pornochanchadas – o que vemos em obras como “Damas do prazer” de Antonio Meliande ou “Palácio de Vênus” de Ody Fraga senão pronunciada preocupação com esses dilemas? O espírito de compreensão da realidade do país sempre encontrou, desde então, cronistas à altura, dos cinemanovistas a Babenco, de Antonio Calmon a Sérgio Bianchi, de Reichenbach a Walter Salles.
Hoje, em virtude do contexto político conturbado do país, cabe perguntar: o cinema brasileiro está afinado com este momento? Terá nos últimos anos produzido filmes em consonância com a atual dinâmica político-social do país? Ou ainda: podemos interpretar algum aspecto do cinema atual como consequência da crise política que assola o país e não tem data para acabar?
Talvez o primeiro filme que nos venha à mente seja “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho – longa sobre resistência, luta solitária, intimidações; ou ainda, obras que intrigam pela sincronicidade com os eventos recentes do país, seja “O outro lado do paraíso”, de André Ristum, a versar abertamente sobre um golpe de Estado ou “Lua em Sagitário”, de Márcia Paraíso, no qual o “ódio a pobres” transparecerá em algum momento. No entanto, interessam aqui duas produções singulares, bastante diferentes entre si mas que de alguma forma dialogam com o momento crítico do país. Mais que isso, a sua maneira traduzem um sentimento de “derrota estrutural”, de incapacidade de avançar política e socialmente, de sempre regressar – a vocação para o fracasso (expressão cunhada por Ismail Xavier), alegorizada por Walter Lima Jr. em “Brasil ano 2000”. São elas “A frente fria que a chuva traz” e “O diabo mora aqui”, ambos da safra do ano passado.
“A frente fria que a chuva traz” tem o veterano Neville D´Almeida de volta à direção após longo hiato. Baseado em peça de Mário Bortolotto, vai direto ao ponto: um grupos de playboys & “patricinhas”, gente de classe média alta e afins, se reúne para uma festa. O detalhe crucial é que a festa é numa lage de uma favela tipicamente carioca, vista belíssima para o mar. Ali monta-se a rave, as drogas abundam, e a caracterização dos personagens beira à histeria: superficiais, autoritários, inconsequentes. Uma juventude que ecoa um pensamento afeito às elites brasileiras, jovens no corpo, senhores coloniais até o osso no espírito. O deslocamento pra favela é pra lá de sintomático: o espaço é alugado, e o único negro é o dono do recinto e responsável por servir os jovens. Ali a casa grande reocupa a senzala, sem intimidades com a comunidade.
Para animar a festa, há um cantor dito “sertanejo”, “de raiz”. Nada de cantor, nem sertanejo nem “de raiz”, uma subcelebridade (aparentemente inspirada no “cantor” Latino), amigo do peito dos “playba” – mas quando confrontado por um dos personagens laterais, o vigia vivido pelo próprio Mário Bortolotto, brada que “é da comunidade, é respeitado ali” etc. A figura do “cantor” se refere diretamente a um (suposto) péssimo gosto cultural dos setores mais ricos, com inelutável tendência à cafonice, num mundo de selfies e redes sociais. A exceção é a personagem Amsterdã, tão branca como os colegas, mas junkie, fora de si, se prostituindo por drogas, integrada em alguma medida, essencialmente deslocada.
Neville realiza um filme pra lá de neurótico, gritado, repetitivo, sem sutilezas, à beira do insuportável, com a mais chula das linguagens. Parece ter deixado claro seu objetivo, ao mostrar, a sua maneira, que se há uma preocupação dos “donos do poder” neste país, está na automanutenção, e vez ou outra sobra um farelo para a ralé de servos. E que mesmo no espaço deslocado – uma comunidade pobre, periférica – inexiste qualquer sentido de alteridade ou compreensão, apenas narcisismo e, por que não?, certa excitação em brincar de ter escravos à disposição (que imensa semelhança com o caso recente da fazenda em Vassouras na qual visitantes endinheirados podem brincar de ser escravocratas, não?).
O outro filme é “O diabo mora aqui”, exemplo recente e raro do horror nacional. Mais que isso, como lembrou o professor Wilson Ferreira em artigo em seu blog, o filme trabalha como “uma espécie de atalho para o inconsciente da cultura”. Se os filmes de Wes Craven, como “Quadrilha dos sádicos” ou “A hora do pesadelo” faziam sentido, é por terem mostrado a vulnerabilidade da classe média sadia, consumista e alourada dos EUA, vivendo num mito de que a felicidade é possível via consumo. Os zombie movies de George Romero faziam referência a um país machucado pelo Vietnã, idiotizado, impotente em lidar com seus conflitos internos.
Realizado pelos estreantes Dante Vescio e Rodrigo Gasparini, “O diabo mora aqui” se volta ao passado brasileiro. Tal como em “cabana movies” ou em filmes de Wes Craven, jovens – de classe média, urbanos, descolados, indies etc – se encontram numa antiga fazenda, e brincam com lendas de escravos. Decidem, em tom de pilhéria, tentar “libertar” o espírito de um escravo morto ainda bebê, que estaria “aprisionado”. Passada a brincadeira, vem as consequências, e ressurge um dos espíritos lá presente, um cruel barão morto por escravos, bem como o do espírito do bebê, filho de escravos. Ao mesmo tempo, dois personagens, descendentes dos escravos, buscam impedir o renascimento da criança, que por sua vez conteria a volta do barão sádico. Os espíritos libertos: salve-se quem puder.
Daí desenvolve-se o terror com códigos conhecidos, mas o interesse maior está no subtexto. Temos um Brasil profundamente arcaico, escravocrata, que teria representados seus descendentes nessa juventude urbana e hedonista. Ali, tal como zumbis ou criaturas de outro mundo, o escravo retorna em forma de vingador, num país que escondeu seu mal, enterrou, mas se esqueceu que – tal como em “A vila” de M. Night Shyamalan – ele existe como força intermitente porém inevitável, que sempre retorna, mesmo nos momentos em que a “pureza” e a “felicidade” parece predominar. O mal, aqui, é ancestral, e não é apenas individual, mas coletivo.
Os antigos elos com a escravidão, o provincianismo, o pensamento colonial são marcas do recente cinema brasileiro – na verdade, sempre se tratou do tema, mas no presente momento político, parecem elucidar muita coisa. “Que horas ela volta?” de Anna Muylaert e “Casa grande” de Felipe Barbosa já abordavam nossas amarras com o passado escravocrata. E uma das mais originais produções dos últimos tempos versa, a sua maneira, sobre essas fraturas mal resolvidas na sociedade brasileira: “Branco sai, preto fica”, misto de drama, documentário e ficção científica realizado por Adirley Queiróz. Sem falar do premiado “O som ao redor”, também de Kleber Mendonça, filme que busca apontar certo “engessamento estrutural” no país: tudo se transforma, as cidades mudam, mas senhores e servos permanecem no mesmo lugar.
Difícil dizer se “A frente fria que a chuva traz”, tão histriônico, ou “O diabo mora aqui” seriam grandes filmes. No entanto, parecem muito afinados com uma necessidade de reflexão sobre o país e seu passado e levantam uma pista sobre os males que assombram o país até hoje. País que não se desprendeu das amarras da época colonial. Como nas palavras de Milton Santos: “a escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais neste país”. Interessa sobretudo entender nosso cinema atual, em tempos de retrocesso a todo vapor, ancorados nas reformas da previdência e trabalhista em curso, na sandice da irrestrita terceirização e no enterro sem velório da aposentadoria.
* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.
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