Amigos há cerca de 50 anos. Cláudio Jorge, ‘cria’ do Cachambi, e Guinga, de Madureira, perceberam que os subúrbios cariocas sempre fizeram parte de suas conversas, então resolveram que o trabalho seria uma homenagem às memórias suburbanas vividas por ambos. Nasceu, assim, o álbum “Farinha do mesmo saco”.
Farinha do mesmo saco
– por Hugo Sukman
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Cláudio Jorge e Guinga juntam violões, vozes, estilos e composições em álbum histórico para a música brasileira e para a história dos subúrbios
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“Oswaldo Cruz, Cachambi
Méier, Bangu, Jacaré
Domingo no IAPI
Nem Romário, Messi, Pelé”
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Começa assim, marrenta, porém precisa na geografia suburbana e no status de craque dos dois autores, a letra do samba-choro “Domingueira”, primeira parceria de Cláudio Jorge e Guinga.
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É que Cláudio Jorge é do Cachambi, ali colado no Grande Méier, festiva porta de entrada do subúrbio carioca. Guinga, nascido em Madureira, bem perto de Oswaldo Cruz, mas criado além, entre Vila Valqueire e as franjas de Jacarepaguá, é de seus confins. Não por acaso, além de celebrado compositor, o primeiro é tido como o maior e mais suingado violão do samba, criado musicalmente em bailes de clube, tardes sem fim ouvindo Beatles, entre o samba jazz e as escolas de samba. O outro, cara mais fechada, dono de uma das obras autorais mais originais da música brasileira, é do choro, da seresta, dos Estudos de Villa-Lobos no quintal e na varanda (e não na sala de concerto), violão denso e, também como o primeiro, inimitável.
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Na aparência muito diferentes, ambos começaram, lá no início dos anos 1970, no revolucionário conjunto de João Nogueira, do Méier. E, quando jovens, acompanharam Cartola, de Mangueira, aprendendo bem como ensinando ao mestre. Tudo como se vê margeando as linhas do trem, o que define existencialmente os bairros de subúrbio no Rio: um mais extrovertido, mais trem da central; o outro mais quieto, mais chorão, trem da Leopoldina; dois sensos de humor próprios e aguçados, suburbanos, de quem foi criado na rua, soltando pipa, no futebol, botequim.
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Tudo “Farinha do mesmo saco”, como comprova o inesperado e inestimável álbum com esse nome que Cláudio Jorge e Guinga lançam juntos – como que abrangendo e dignificando todo o subúrbio.
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E eles são tão farinha do mesmo saco e tão suburbanamente sacanas que duvido que alguém, mesmo um especialista na obra de ambos, adivinhe de ouvido quem fez o quê em “Domingueira”. Como num domingo qualquer de subúrbio, em que se quisesse enganar o amigo que veio da Zona Sul ou mesmo do bairro vizinho, os dois parceiros resolveram trocar de papel: Cláudio Jorge criou melodia e harmonia do samba-choro bem ao estilo denso de Guinga, que por sua vez criou uma letra cheia de doces e líricas memórias tipicamente suburbanas, bem ao estilo de Cláudio Jorge: “Choro com Cantinflas, Mazzaropi, com Dedé/Muda da Portela, Delegado e Fred Astaire”.
Delicada obra-prima, “Domingueira” é o primeiro single do álbum e será lançado nas plataformas digitais em 4 de novembro. Trata-se de um belo cartão de visitas do álbum, que é todo assim: Cláudio Jorge e Guinga trançando seus violões e vozes, às vezes um fazendo a canção do outro, às vezes a própria canção, nova ou antiga. É um disco feito por velhos amigos, sem dúvida – os dois se conhecem há mais de 50 anos, e só se encontraram musicalmente até aqui no breve tempo em que Guinga tocava violão e Cláudio Jorge contrabaixo no conjunto de João Nogueira, sonhavam há tempos fazer um trabalho de fôlego como este. É um álbum de dois compositores de estilos distintos, mas que aqui reuniram suas canções que têm algo em comum, sem exceção, certa alma suburbana.
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Não por acaso é “Minha alma suburbana”, um velho e pouco lembrado samba choro de Cláudio Jorge, gravado por Joanna em 1983, que abre o álbum com sua melodia lírica, seus versos sofisticados: “Sempre esperando da vida/Tudo que se pede mas pouco se tem/Cheiro da noite é de dama/Eu falo na alma suburbana”.
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Que faz par com outro samba-choro suburbano de Guinga, em parceria com a cantora e violonista Anna Paes, “Largo das cinco bocas”, composto em homenagem a Aldir Blanc quando do seu falecimento em 2020, mas na verdade uma ode aos subúrbios e seus nomes poéticos e à poética suburbana do parceiro que se ia: “Água Santa, Piedade/Tô Encantado de você/Já nem sinto mais saudade/Saudade tem Cascadura, amacia em Madureira”.
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Nas duas faixas, Guinga e Cláudio Jorge misturam seus violões sem qualquer exibicionismo, mas com suas expressividades naturais, como quando em “Minha alma suburbana” Cláudio Jorge faz o violão base (sua especialidade) e Guinga trabalha os solos.
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Mas é igualmente fascinante quando Cláudio Jorge faz sozinho, voz e violão, uma densa canção de Guinga como “Sábia negritude”, uma homenagem ao seu universo, o do samba, e que é feito no seu estilo mais, digamos, suingado e limpo. Ou quando Guinga canta, com sua voz lírica e seresteira, um samba de Cláudio Jorge e Nei Lopes em homenagem à Dona Ivone Lara, “Senhora da canção”, como se o chorão e modinheiro Guinga reencontrasse o samba da sua Madureira natal.
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Cláudio Jorge traz duas músicas inéditas para este “Farinha do mesmo saco”. Delicadíssima obra-prima como tantas que a dupla fez, “Bom bocado” é um samba-choro em parceria com Nei Lopes, outro suburbano, do Irajá. Versa sobre as delícias culinárias e amorosas do subúrbio, e lembra os sambas-choros de Claudionor Cruz e Pedro Caetano gravados antigamente por Orlando Silva ou Silvio Caldas, mas em linguagem atual, e cantada em estilo moderno e preciso por Anna Paes (que além de parceira de Guinga acabou de lançar um álbum cantando apenas músicas dele, “Você, você”).
Outra inédita e feita para o disco é o samba “Bilhete pro Guinga”, parceria de Cláudio Jorge (aqui letrista) com o maestro Gilson Peranzzetta (suburbano de Braz de Pina), e que descreve o reencontro dos dois, que resultaria no disco: “Ah meu velho amigo, tá fazendo tanto tempo/Lembro, lembra?/Era tudo sonho, hoje é história/Eu preciso te encontrar”.
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“Chorando pelos dedos”, melodia de Cláudio Jorge e letra de João Nogueira, é justamente do tempo em que tudo era sonho. Feita em homenagem ao bandolinista Joel Nascimento, hoje é um choro histórico, uma rara incursão de Cláudio Jorge no universo habitual de Guinga, e que permite aos dois trançarem lindamente seus violões e vozes.
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Compositores cheios de parceiros, Guinga traz sozinho em voz e violão uma canção feita com o seu discípulo Edu Kneip, a villalobiana “Mar de Maracanã”, uma ode ao velho estádio, ali na boca de entrada do subúrbio. E Cláudio Jorge traz um samba em parceria com Luiz Carlos da Vila (suburbano da Vila da Penha), “Parceiros e amigos”, uma magnífica ode à parceria e à amizade que se traduz musicalmente na nova e bela introdução ao violão que Guinga preparou para ela.
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Por falar em parcerias antigas, profundas, do tamanho da vida, Guinga traz sua canção, feita também com Anna Paes, “Mello baloeiro”, uma homenagem ao artista plástico Mello Menezes, cantada de forma sentida por ele e Cláudio Jorge. Autor das capas dos primeiros discos de Guinga, como “Simples e absurdo” e “Delírio carioca”, Mello Menezes também fez a capa deste “Farinha do mesmo saco”. Bem ao seu estilo, Mello compôs uma colorida fantasia visual suburbana, a partir da imagem arquetípica do subúrbio, a estação de trem, dois pierrôs apaixonados subindo a escada rumo à plataforma. Como Cláudio Jorge e Guinga há mais de 50 anos quando tudo era sonho, hoje é realidade de dois músicos geniais que levam a música e o jeito do subúrbio para o Brasil e o mundo. E que agora são histórias contadas neste álbum, um acontecimento raro para a música brasileira.
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P.S.: Da nuvem de onde agora observa o mundo, ao lado de Tom Jobim e cercado por anjinhos cor de chope, espécie de Paquetá, de Muda do céu, Aldir Blanc observa seus parceiros orgulhoso (e também meio invocado: “Porra, Zeca (Mello Menezes), Guinga e Cláudio Jorge são mesmo muito escrotos, esperaram eu tirar o time para armar essa maluquice no subúrbio…”).
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– Hugo Sukman, outubro de 2022
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DISCO ‘FARINHA DO MESMO SACO‘ • Cláudio Jorge e Guinga • CD • Selo Kuarup • 2023
Canções / compositores:
1. Minha alma suburbana (Cláudio Jorge)
2. Mello Baloeiro (Anna Paes e Guinga)
3. Chorando pelos dedos (Cláudio Jorge e João Nogueira)
4. Largo das Cinco Bocas (Anna Paes e Guinga)
5. Bom bocado (Cláudio Jorge e Nei Lopes) | Participação especial: Anna Paes
6. Bilhete pro Guinga (Gilson Peranzzetta e Cláudio Jorge)
7. Senhora da canção (Nei Lopes e Cláudio Jorge)
8. Sábia negritude (Guinga)
9. Mar de Maracanã (Guinga e Edu Kneip)
10. Parceiros e amigos (Cláudio Jorge e Luiz Carlos da Vila)
11. Domingueira (Guinga e Cláudio Jorge)
– ficha técnica –
Guinga (voz – fx. 1, 2, 3, 4, 7, 9, 11) | Cláudio Jorge (voz – fx. 1, 2, 3, 6, 8, 10, 11) | Guinga (violão solo – fx. 1, 10; violão – fx. 2, 3, 4, 5, 9, 11) | Cláudio Jorge (violão base – fx. 1, 10; violão – fx. 3, 4, 5, 6, 7, 8, 11; tamborins – fx. 6) || Participação especial: Anna Paes (voz – fx. 5) | Arranjos: Cláudio Jorge e Guinga (fx. 1, 3, 5, 7, 10, 11); Guinga (fx. 2, 4, 9); Cláudio Jorge (fx. 6, 8) | Produção musical: Cláudio Jorge e Guinga || Gravação, mixagem e masterização: Sérgio Lima Netto / Estúdio Araras* | Arte: Mello Menezes
Selo: Kuarup
Ano: 2023
Formato: CD / Digital
*Gravado no Estúdio Araras / Vale das Videiras, Petrópolis – RJ, entre junho e setembro de 2022.
#* Ouça o álbum na sua plataforma de música favorita. Clique aqui!
Leia também:
:: ‘Cancioneiro Guinga – Zaboio’: livro reúne partituras para violão e voz de disco homônimo.
:: ‘Samba jazz de raiz’. álbum de Cláudio Jorge, vencedor do Grammy Latino.
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Série: Discografia da Música Brasileira / MPB / Canção / Samba.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske
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