Escrevo como uma draga come o fundo de um canal.
E come um rio, e come um fundo de mar inteiro.
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É meu tempo que drago ferozmente, ao tatuar meus dias nos maços de papel.
Escrevo há anos, mesmo sem ter vivido
tantos assim. E eu já sei: jamais lerei um quinto
do que escrevi.
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Isso porque, ao ler o passado, eu não me reconheço.
E pois não quero admitir que nele eu me vejo demais.
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Não suportaria saber que em tantos anos eu erro
as mesmas crases, largo incompletas as frases, repito
as palavras preferidas e faço rimas pobres sem razão.
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Eu tinha oito anos quando minha mãe me disse assim:
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– Toma este caderno em branco e escreve sobre o dia.
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TODO. DIA.
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E eu peguei o elemento de capa verde com glitter e um minicadeadinho no canto.
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– Tá bom.
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Estávamos de férias em um veleiro a caminho da Antártica. E eu queria saber como nadavam os pinguins, se a neve ao cair do céu tinha forma de estrela. Eu era criança, mas precisaria orquestrar minhas vontades entre a aventura e a disciplina. Pela primeira vez na vida, eu recebia a missão ingrata de gastar uma parte do tempo passando a limpo o que aconteceu. E o fiz. Com os anos, o desafio de escrever virou compromisso e o compromisso virou um amor sem o qual eu não sei ser.
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Enquanto teço este texto que veste meus pensamentos, um painel de botões e números me conta os perigos do oceano. Vencemos onda a onda lentamente, e o vento nos puxa para longe da costa. Poderia durar para sempre, eu penso, a ação de avançar sem fim. Um dia encerra a noite anterior, o sol nasce sobre a chuva, e as nuvens grandes fazem a sombra passear no nosso barco. Mas o painel de instrumentos diz outra coisa: falta muito para chegar, há pedras submersas no caminho, um navio avança em nossa direção e é tarde. Os números me dizem o que meu corpo não sente: estou há muitas horas sem dormir.
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Algo me lembra de falar deste momento. Tento me decifrar como os números tentam decifrar o mar. É um exercício ingrato, pois o diário é um jogo de tradução e omissão.
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É preciso dar à lembrança o corpo das palavras.
É preciso fazer um mundo caber em poucas linhas.
E é preciso entregar a precisão ao esquecimento.
O caderno tem folhas finitas, o papel pesa na mão,
e o minuto descrito dura o mesmo que o minuto de escrever. Se tentássemos guardar tudo, o dia seguinte seria sempre o registrar do dia anterior, até pararmos no tempo e os pinguins sumirem*, a neve parar de* cair, e o dia escorrer como as estrelas de gelo escorrem pelo convés do barco, sem plateia.
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Eu me entrego ao desafio de me conter e não contar tudo, e sei que não lerei o que ficar contido*.
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Mesmo assim, cada diário* tem seu lugar na estante deste barco. Por déficit habitacional, alguns moram em puxadinhos sobre seus vizinhos. Outros dormem entre seus pais e seus avós, bem apertados. Na minha ausência, a estante será o resumo das versões que eu assumi. Acumulo os cadernos de viagem como minha mãe guarda meus desenhos de criança com macarrão cru e massinha de modelar colada. Acumulo na tentativa inútil de conter o tempo. Incontinente.
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Enquanto minhas mãos me lembram que faz frio
e meus lábios trazem o sal do mar à boca, eu me dou conta de que o registro não fala do passado; pela própria natureza, ele fala de agora. Do que vem
à cabeça quando o sol ressurge atrás dos montes molhados, quando tememos enjoar ao encarar
um ponto fixo e quando estamos em guerra contra
a tensão branca do papel. Por isso, não preencho
os cadernos para lê-los um dia, preencho por preencher
e os guardo como troféus de batalhas vencidas.
Cada folha ocupada, um império. Quando estão
em pilhas, cada um é diluído entre os semelhantes. Sozinhos, um único pesa mais que todos juntos.
E o escrito mais pesado de todos é o que escrevo agora.
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Eu levei todos os textos da minha vida para escrever este. Pois o produto final de cada registro é o próximo registrar.
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Escrever diários é difícil porque todo dia tem uma chance de eternidade. E outra chance, ainda maior, de sumir para sempre. Ele pode ser lido por gerações ou pode se perder no caminhão de mudança. E é por isso que acumulamos tanta coisa tosca.
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Nunca esqueci uma reportagem da tevê sobre um jabuti reencontrado numa casa depois de trinta anos.
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A família do jabuti acumulou tanta coisa na casa que
o animal se escondeu nos objetos e foi da infância para a vida adulta sem ser notado. Numa faxina geral, ele foi achado vivo: uma pisadela e um beliscão do passado com o presente. Como o texto no miolo dos cadernos de viagem, o bicho dentro da casca tem vida própria e passeia sozinho pelas casas das pessoas que o abrigam.
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Escrevo por escrever. Mas preciso admitir que mora em mim uma miniesperança de que registrar vai frear o escorrer do tempo. Aqui, minhas preocupações são visíveis: o rumo, as pedras, os outros barcos. Eu estou exausta e troco horas de sono por horas sonhando acordada. Sinto-me sozinha e converso com as ondas, comigo mesma, com amigos infinitos imaginados. Minha maior vontade é chegar, e meu maior medo é o fim da travessia. Por isso, crio um universo paralelo e controlado. Talvez assim seja possível represar nas minhas mãos o agora, conter cada instante nesta memória, e deixar aberta a porta do ontem para quando quiser voltar.
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Não voltarei.
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Ao escrever, esqueço que drago o tempo de dentro pra fora, no canal, no rio, no mar profundo.
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Como o som das ondas lambendo o casco, o texto só existe enquanto for sentido.
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E, se quiser exterminá-lo de vez, vire esta página. Para sempre.
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– Tamara Klink, no livro “Um mundo em poucas linhas”. ilustrado por Laura Klink. Peirópolis, 2021.
SOBRE O LIVRO
Tamara tem um projeto de vida: ser navegadora. Leva consigo a coleção de aprendizados de várias viagens com a mãe, irmãs e na companhia do pai, o velejador Amyr Klink. Mas segue passos próprios. Aos vinte e poucos anos, decidiu morar e estudar arquitetura naval na França, como parte do seu plano: realizar expedições que exigem uma preparação incomum para alguém da sua idade. E é justamente essa longa travessia que está presente em sua obra― não só aquela marcada por ondas e ventos, necessidade de içar velas ou de se lançar ao mar ― mas os percalços de outro caminho, aquele que fazemos da adolescência para a vida adulta. Uma jornada heroica pela qual todos passamos, na terra ou no mar. Um mundo em poucas linhas reúne poemas e textos em prosa poética sobre as viagens variadas que Tamara fez desde criança com sua família, além de reflexões sobre a vida, a adolescência, os amores, o crescimento e as muitas experiências de deslocamento e travessias. Um livro sobre a beleza de se construir como ser humano, com liberdade, alegria e coragem para viver e seguir seus próprios caminhos.
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FICHA TÉCNICA
Título: Um mundo em poucas linhas
Páginas: 172
Formato: 13 x 1 x 20 cm
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 10/12/2021 (1ª edição)
ISBN: 978-6559311071
Selo: Editora Peirópolis
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