Terceiro lugar no ano de 2015 do prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas, o livro “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, traz uma reunião de escritos entre as décadas de 1990 e de 2010 que têm como temática a exclusão social. A publicação da obra é resultado de uma parceria da Biblioteca Nacional e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial com a Pallas Editora, por meio do Edital de Apoio à Coedição de Autores Negros.
Conceição Evaristo, a autora do livro, é mestre e doutora em Letras e faz questão de se posicionar politicamente na mídia e na apresentação de seus livros. Nascida em uma favela da Zona Sul de Belo Horizonte, teve que conciliar os estudos com o trabalho como empregada doméstica até concluir o curso normal, em 1971, aos 25 anos. Mudou-se para o Rio de Janeiro, tornou-se poetisa, romancista, ensaísta e participou com seus textos de uma série de movimentos sociais. Parte de sua produção aparece em Cadernos Negros, periódico do Grupo Quilombhoje, de São Paulo.
Além de Olhos d’água, também é autora dos romances Ponciá Vicêncio, traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, e Becos da memória; da antologia poética Poemas da recordação e outros movimentos e da antologia de contos Insubmissas lágrimas de mulheres. Nesta entrevista ela conta sobre sua atuação política como escritora.
Por que e para quem a senhora escreve? Existe um “público-alvo” ou alguns públicos predominantes, vozes em que pensa quando escreve?
Eu escrevo porque, para mim, não há outra maneira de enfrentar, de suportar, de arrumar a vida, a não ser escrevendo. Enquanto escrevo faço da vida que me é apresentada o que quero. As personagens centrais de minha criação, seja ela ficcional ou crítica, nascem profundamente marcadas por minha condição de mulher negra e pobre na sociedade brasileira.
Escrevo para os meus, mesmo sendo no nível do desejo. Pois é do cotidiano das classes populares que retiro o sumo da minha escrita. É desse meu lugar, é desse de “dentro para fora”, que minhas histórias brotam. Gostaria imensamente que essas histórias narradas voltassem como livro para as mãos das pessoas que me inspiram.
Quem são essas vozes? Como a senhora as descreve e como é o relacionamento com esses públicos?
Por exemplo, o menino, vendedor de amendoim, em bares daqui da Cinelândia, ao me contar uma briga que ele havia tido com outro garoto, me inspirou a escrever o conto “Di Lixão”. São as crianças das favelas que morrem por balas perdidas que me inspiraram na escrita de outro texto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”. Foi da resistência dos povos africanos e de seus descendentes na diáspora que retirei outra inspiração “Ayoluwa, a alegria de nosso povo”.
Cruzo com as pessoas que me inspiram no dia a dia, entretanto, em seu conjunto, dificilmente elas vão a esses livros para ler. Não só aos livros de minha autoria, mas à leitura em geral. Ainda há uma intensa precariedade de acesso ao livro como um objeto que deve ser apropriado por todas pessoas.
Tenho dito que o primeiro lugar de recepção dos meus textos, ainda nos inícios dos anos 1990, foi o movimento negro e o movimento de mulheres negras. Foi a própria dinâmica do movimento social que primeiramente recepcionou a minha escrita. Lendo, divulgando, legitimando a minha escrita como uma “voz de dentro”. E muito agradeço ao público que vem se formando em torno de minha escrita.
A senhora acredita na importância de se posicionar na mídia por meio de entrevistas e em outras esferas sociais em relação à discriminação racial, de gênero e de classe?
Sim. E creio muito na força da fala que vem de “dentro”. Não estou dizendo que só aquele que é discriminado pode falar da discriminação. Quanto mais pessoas falarem, quanto mais a sociedade perceber, por exemplo, que a questão racial no Brasil não é problema para o negro resolver e sim para a nação brasileira resolver, mais sinceros seremos nas buscas pelas soluções.
Nas nossas ações do dia a dia, podemos ser agentes de transformação ou de recrudescimento de determinadas situações. A violência contra o outro não acontece longe de nós. Há pouco tempo presenciei uma cena, que pode parecer ingênua, mas que traz muito da “crueldade nossa” de cada dia. Eu estava no ponto do ônibus e havia um casal deficiente visual, parecia um par de namorados. Distraídos trocavam carinhos um no rosto do outro. Alguém do meu lado começou a cochichar com mais duas pessoas, mas em tom que eu ouvia e provavelmente o casal também. A conversa que me chegava até os ouvidos, girava em torno de “como os cegos fariam amor…”. Penso que pessoas como essas, que riem de cegos, de negros, de homossexuais, são pouco capazes de defender uma mulher que estiver sendo agredida. Às vezes, frequentam o corpo de prostitutas, mas as condenam moralmente, chutam moradores de rua, fazem piadinhas tipo “índio só quer apito”, não precisa de terras para viver…
Então, como pessoa que sofre uma série de interdições, por ser negra, mulher, oriunda das classes populares, a cada oportunidade que me surge, não posso e nem quero me silenciar sobre esses assuntos. E creio que a minha voz, pronunciada desde “dentro” dessas experiências, adquire outro tom. Há algo que ultrapassa a compreensão intelectual.
O entendimento intelectivo sobre o racismo, o sexismo, o apartheid social que rege inclusive a geografia de uma cidade como a do Rio de Janeiro e outras problemáticas, sem sombra de dúvidas, gera em intelectuais, em artistas, em políticos, em militantes sociais, em religiosos, enfim, em muitas pessoas, uma cumplicidade com a causa que se pensa ser somente do “outro”. Entretanto há uma condição, um nível de experimentação, um local de vivência, que não se apreende só pela boa vontade, só pela cumplicidade com o outro. Pode-se só experimentar a metade da dor do outro…
Só o meu corpo de mulher negra com a minha subjetividade (construída a partir desse corpo) consegue fazer a leitura de um momento que vivi um dia desses, em uma viagem para Brasília a trabalho. Eu, passageira do assento do meio, entre dois senhores vestidos a rigor com seus ternos. O passageiro do assento do canto esbarrava várias vezes em meu braço, que dividia com ele o espaldar da cadeira. Eu pensava serem gestos distraídos dele, até o momento em que ele violentamente empurra meu braço, indicando que o espaço deveria ser só dele. Naquele instante, entendendo a brutalidade do gesto, olhei para ele. Bastou somente o meu olhar. Ele, em voz alta, impositiva, me perguntou se eu queria mais conforto para colocar o meu braço. Eu disse que sim e que acreditava no cavalheirismo, na educação dele e que, portanto, ele deixaria de me empurrar…
Esses momentos, essas experiências sofridas, são muito difíceis de explicar e de serem apreendidas. Esse passageiro, um homem branco, por volta dos sessenta anos, não era só sem educação e grosseiro. Qual a dificuldade dele em dividir o descanso de braço da cadeira comigo? Por que ele se julgou no direito de questionar uma senhora, uma passageira publicamente? (o passageiro da ponta e os dos assentos em frente ouviram). Por que ele não chamou uma das comissárias de bordo? Seria ele tão indelicado com uma senhora, (pois sou uma senhora de sessenta e oito anos e com uma vasta cabeleira recoberta quase que totalmente de fios brancos) que lhe trouxesse lembranças da mãe, das tias, das mulheres da família dele, do convívio social dele? Partindo de que pressuposto, de qual sentido histórico, aquele homem, aquele “senhor”, queria se valer de “autoridade” sobre mim? Eu, uma pessoa passageira do avião como ele? Essas experiências são intransferíveis. E não posso silenciá-las.
Esse posicionamento por meio da palavra oral influencia na confecção de suas obras?
Há uma coerência entre o que falo na mídia, nas entrevistas e o que escrevo. Assim como a minha escrita literária há a nossa afirmação como seres humanos. A minha fala na mídia, nas entrevistas, tem sido um discurso que aponta para as interdições que nos são colocadas, a interdição de vivermos plenamente a nossa condição humana. “Coisa escrava” foi uma condição imposta aos povos africanos trazidos para as Américas. Ainda lutamos para desconstruir essa visão a nosso respeito, até hoje. Por isso é preciso falar e escrever sempre afirmando a nossa humanidade. Posso dizer que, de um modo geral, a minha fala tem um bom retorno, provoca diálogos, trocas, reflexões… E já algumas vezes o diálogo empreendido me deu mote para um conto, para uma poesia… Não vejo necessidade de mudar o rumo da prosa…
– Entrevista publicada originalmente no site da Biblioteca Nacional, 26 de novembro de 2015.
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