“O grande livro que sempre me valeu e que aconselho aos jovens, um dicionário. Ele é o pai, é tio, é avô, é amigo e é um mestre. Ensina, ajuda, corrige, melhora, protege. Dá origem da gramática e o antigo das palavras. A pronúncia correta, a vulgar e a gíria. Incorporou ao vocabulário todos os galicismos, antes condenados. Absolveu o erro e ressalvou o uso. Assimilou a afirmação de um grande escritor: é o povo que faz a língua. Outro escritor: a língua é viva e móvel. Os gramáticos a querem estática, solene, rígida. Só o povo a faz renovada e corrente sem por isso escrever mal.”
– Cora Coralina, em trecho do poema “Voltei”, do livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p. 127.
Aninha e suas pedras
Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.
– Cora Coralina, em “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p. 139.
§
Das pedras
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores
Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.
– Cora Coralina, em “Meu livro de cordel”. 8ª ed., São Paulo: Global Editora, 1998, p 13.
§
Lembranças de Aninha
(colhe dos velhos plantadores…)
Colhe dos velhos plantadores que sabem com jeito e experiência
debulhar as espigas do passado e dar vida aos cereais da vivência.
Quanta informação antiga, quanta sabedoria inaproveitada…
O passado não volta, nem os mortos deixam suas covas
para contar estórias aos vivos.
Ninguém me alertou o entendimento. Meu avô, tia Nhorita, tia Nhá-Bá,
Tio Jacinto, Dindinha, a grande mágica Dindinha.
Alguns estranhos diziam: Dona Dindinha.
Passei pelas minas e não soube minerar,
daí a cascalheira das minhas frustrações.
– Cora Coralina, em “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p.167.
§
Assim eu vejo a vida
A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
– Cora Coralina, [O poema acima, inédito em livro], foi publicado pelo jornal “Folha de São Paulo” — caderno “Folha Ilustrada”, edição de 4/7/2001.
§
Conclusões de Aninha
Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
“A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar.”
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.
– Cora Coralina, em “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p. 160.
§
O poeta e a poesia
Não é o poeta que cria a poesia.
E sim, a poesia que condiciona o poeta.
Poeta é a sensibilidade acima do vulgar.
Poeta é o operário, o artífice da palavra.
E com ela compõe a ourivesaria de um verso.
Poeta, não somente o que escreve.
É aquele que sente a poesia,
se extasia sensível ao achado
de uma rima, à autenticidade de um verso.
Poeta é ser ambicioso, insatisfeito,
procurando no jogo das palavras,
no imprevisto texto, atingir a perfeição inalcançável.
O autêntico sabe que jamais
chegará ao prêmio Nobel.
O medíocre se acredita sempre perto dele.
Alguns vêm a mim.
Querem a palavra, o incentivo, à apreciação.
Que dizer a um jovem ansioso na sede precoce de lançar um livro…
Tão pobre ainda a sua bagagem cultural,
tão restrito seu vocabulário,
enxugando lágrimas que não chorou,
dores que não sentiu,
sofrimentos imaginários que não experimentou.
Falam exaltados de fome e saudades, tão desgastadas
de tantos já passados.
Primário nos rudimentos de sua escrita
e aquela pressa moça de subir.
Alcançar estatura de poeta, publicar um livro,
Oriento para a leitura, reescrever,
processar seus dados concretos.
Não fechar o caminho, não negar possibilidades.
É a linguagem deles, seus sonhos.
A escola não os ajudou, inculpados, eles.
Todos nós temos a dupla personalidade.
O id e o ego.
Um representa a sua vida física, material completa
Pode ser brilhante, enriquecida de valores que ajudam a ser feliz,
pode ser angustiada e vacilante, incerta, insatisfeita.
Mesmo possuindo o que deseja, nada satisfazendo.
O id representa sua vida interior paralela, ambivalente,
exercendo seu comando em descargas nervosas,
no eterno conflito entre a razão e o impulso incontrolado.
Dupla vida inter e extra, personalidade se contrapondo.
Pode ser trivial e dependente, podemos fazê-la rica e cheia de nobreza,
nos valendo da força incomensurável do pensamento positivo
emanado da vida interior que é o nosso mundo,
invisível a todos, sensível ao nosso ego.
Há sempre uma hora maldita na vida de um homem.
Pode levá-lo ao crime e às paredes sombrias de uma cela escura.
Um curto circuito nas suas baterias carregadas,
uma descarga nas linhas de transmissão potencial.
Daí, fatos aberrantes que surpreendem.
Conclusões demolidoras de um passado brilhante.
– Cora Coralina, em “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p.191-192.
§
Pedras
Os morros cantam para meus sentidos
a música dos vegetais
que se movem ao vento.
As pedras imóveis me enviam
uma benção ancestral.
Debaixo da minha janela
se estende a pedra-mãe.
Que mãos calejadas
e imensas mãos sofridas de escravos
a teriam posto ali,
para sempre?
Pedras sagradas da minha cidade,
nossa íntima comunicação.
Lavada pelas chuvas,
queimada pelo sol,
bela laje velhíssima e morena.
Eu a desejaria sobre meu túmulo
e no silêncio da morte,
você, uma pedra viva, e eu,
teríamos uma fala
do começo das eras.
– Cora Coralina, em “Villa Boa de Goiaz”, São Paulo: Global Editora, 2001, p. 93.
§
Mascarados
Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.
– Cora Coralina, no Caderno “Folha Ilustrada”, São Paulo: Folha de São Paulo, edição de 4/7/2001.
§
Meu destino
Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos.
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida…
– Cora Coralina, em “Meu livro de cordel”, São Paulo: Global Editora, 1998.
§
O chamado das pedras
A estrada está deserta.
Vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de lá muito se apagou.
Tudo deserto.
A longa caminhada.
A longa noite escura.
Ninguém me estende a mão.
E as mãos atiram pedras.
Sozinha…
Errada a estrada.
No frio, no escuro, no abandono.
Tateio em volta e procuro a luz.
Meus olhos estão fechados.
Meus olhos estão cegos.
Vêm do passado.
Num bramido de dor.
Num espasmo de agonia
Ouço um vagido de criança.
É meu filho que acaba de nascer.
Sozinha…
Na estrada deserta,
Sempre a procurar
o perdido tempo que ficou pra trás.
Do perdido tempo.
Do passado tempo
escuto a voz das pedras:
Volta…Volta…Volta…
E os morros abriam para mim
Imensos braços vegetais.
E os sinos das igrejas
Que ouvia na distância
Diziam: Vem… Vem… Vem…
E as rolinhas fogo-pagou
Das velhas cumeeiras:
Porque não voltou…
Porque não voltou…
E a água do rio que corria
Chamava…chamava…
Vestida de cabelos brancos
Voltei sozinha à velha casa deserta.
– Cora Coralina, em “Meu livro de cordel”, São Paulo: Global Editora, 1998.
§
Meu Epitáfio
Morta… serei árvore
Serei tronco, serei fronde
E minhas raízes
Enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.
Enfeitei de folhas verdes
A pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.
Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.
– Cora Coralina, em “Meu livro de cordel”. São Paulo: Global Editora, 1998.
§
Lua-luar
Escuto leve batida.
Levanto descalça, abro a janela
devagarinho.
Alguém bateu?
É a lua-luar que quer entrar.
Entra lua poesia
antes dos astronautas:
Gagarin da terra azul,
Apolo XI que primeiro passeou solo lunar.
Lua que comanda os mares,
a fúria dos vagalhões
que vem morrer na praia.
O banzeiro das pororocas.
Lua dos namorados,
das intrigas de amor,
dos encontros clandestinos.
Lua-luar que entra e sai.
Lua nova, incompleta no seu meio arco.
Lua crescente, velha enorme, fecunda.
Lua de todos os povos
de todos os quadrantes.
Lua que enfurece o mar e em chumbo,
acovarda barcos pesqueiros.
O barqueiro se recolhe.
O pescado volta às redes.
O jangadeiro trava amarras.
Gaivotas fogem dos rochedos.
Lua cúmplice.
Lésbica lua nascente,
andrógina — lua-luar.
Lua dos becos tristes
das esquinas buliçosas.
Luar dos velhos.
Das velhas plantas sentenciadas.
Do sopro morto
dos bordões, rimas, violinos.
Lua que manda
na semeadura dos campos,
na germinação das sementes,
na abundância das colheitas.
Lua boa.
Lua ruim.
Lua de chuva.
Lua de sol.
Lua das gestações do amor.
Do acaso, do passatempo
Irresistível,
responsável, irresponsável.
Lua grande. Lua genésica
que marca a fertilidade da fêmea
e traz o macho para a semeadura.
O fruto aceito —
mal aceito: repudiado, abandonado,
A semente morta
lançada no esgoto.
A semente viva palpitante
deixada em porta alheia.
– Cora Coralina, em “Meu livro de cordel”. São Paulo: Global Editora, 1998.
§
“Na minha alma, hoje, também corre um rio, um longo e silencioso rio de lágrimas que meus olhos fiaram uma a uma e que há de ir subindo, subindo sempre, até afogar e submergir na tua profundez sombria a intensidade da minha dor!…”
– Cora Coralina, em trecho do poema “Rio Vermelho”, do livro “Villa Boa de Goyaz. São Paulo: Global Editora, 2001, p. 103.
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