[AVISO: Partes desse texto contém spoilers. Leia ciente]
Coringa, longa-metragem dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix, estreou nos cinemas em 3 de outubro e, desde então, tem dividido opiniões dos críticos de cinema e também do público. Alguns consideraram o filme como “perigoso”, “irresponsável”, por supostamente passar uma mensagem de glorificação da violência, de autocomiseração como “desculpa” para sadismo. Mas, na minha vez de tecer considerações a respeito, devo frisar que: discordo completamente.
É uma fábula realista, um alerta sobre o horror dos nossos tempos de individualismo predatório, de retroalimentação de muitas culturas de agressividade. É quase uma súplica por menos indiferença, por um olhar de empatia para o outro, por mais afeto.
Para começar minhas considerações, posso dizer que, como fã de HQs, sempre quis ver nas telas do cinema uma Gotham parecida com a do filme. Gotham é a cidade fictícia na qual tradicionalmente se situam os acontecimentos do universo de “Batman”, trazendo esse recorte claro de desigualdade social, e suas mazelas que a acompanham: a alta criminalidade, as estruturas de preconceito, as ondas de violência.
No filme, este pano de fundo é perfeitamente respeitado; como se passa pelo ponto de vista de Arthur Fleck – o homem que se tornará o “Príncipe Palhaço do Crime” de Gotham, o Coringa – todo o lado sujo e abandonado de Gotham é trazido à tona sem dó. O espectador é confrontado com uma cidade gerida por um Estado falido, repleta de mazelas evidentes não apenas na superexploração de sua parcela mais pobre, mas até mesmo no cenário: ruas devastadas por sujeira – o filme começa enquanto ocorre uma greve dos lixeiros –, infestação de ratos, saneamento básico precário.
A falência do Estado é evidente até mesmo nas bases do sistema de saúde pública. Em algumas das primeiras cenas, Arthur é obrigado a parar seu tratamento psicológico e psiquiátrico porque o governo cortou a verba.
Arthur é claramente um indivíduo neurodivergente: sofre de uma condição similar a uma “síndrome de Tourette”, uma risada patológica, sem alegria, uma espécie de impulso de rir que não consegue controlar, e parece portador de algum tipo de psicose, pelo que é sugerido na narrativa. Em todos os momentos em que traços dos seus transtornos são trazidos à tona, é perceptível que além de ser “invisível” como mais um assalariado na multidão, Arthur é também desprezado por indivíduos que não conseguem enxergá-lo para além de seus transtornos mentais, pelo preconceito talvez mais criticado no filme: a psicofobia.
É importante ressaltar que em momento algum o filme tenta reduzi-lo aos seus distúrbios. Estes são parte importante do personagem, assim como suas qualidades: Arthur é um homem sensível, bem intencionado e generoso, empático aos outros ao seu redor. Em boa parte, vulnerável. É um homem que tem uma relação afetuosa porém claramente co-dependente com sua mãe, Penny Fleck, frágil de saúde, podendo ser descrito até mesmo como infantilizado. E, ao mesmo tempo, é um narrador não-confiável; algumas das cenas do filme são também manifestações de sua doença: ele vê e vive situações que de fato não aconteceram. Mas, friso: não há traços de violência palpáveis no personagem durante boa parte do filme, e isso torna sua tragédia ainda mais dolorosa.
“Minha mãe sempre me disse para sorrir e fazer uma cara feliz. Ela me dizia que eu tinha o propósito de trazer risadas e alegria para o mundo”
Depois de apresentado o personagem, que já começa o filme triste e desiludido por saber que está longe de alcançar seu sonho de se tornar um humorista de sucesso, o filme se põe a compor sua ruína. Ela vai desde desdobramentos particulares quanto os que vêm do cenário social. Sua tragédia ecoa a decadência da sociedade em volta.
Por isso insisto que o filme não retrata a glorificação de uma cultura de violência. Ele a critica abertamente: Arthur é vítima de bullying, de abuso físico, por diversos momentos. Em um deles, ele é testemunha de outro abuso. Manifesta seu riso nervoso ao ver três homens assediando uma mulher no transporte público. E, por isso, é espancado.
É com isso que, curiosamente, Arthur comete seu primeiro ato violento. A princípio, como mera legítima defesa. No arco final da cena, quando faz sua terceira vítima, pela primeira vez se vê algum traço de sadismo demonstrado. Mas ainda assim, não gratuito.
A partir desse desdobramento, o personagem passa a se sentir empoderado. Mais livre. Mais dono de sua identidade. Não mais passivo. O que torna tudo mais real e perturbador.
Joaquin Phoenix se entrega completamente ao papel desempenhado. Desenvolve enternecedores momentos de sensibilidade e vulnerabilidade, até ingenuidade, e faz o mesmo trabalho excepcional durante o degringolar da decadência moral e mental do protagonista. É terrível testemunhar que para encontrar alguma liberdade o personagem se perde. Perde-se para se encontrar como sendo uma caricatura de sua própria dor. Assim, é impossível não sentir empatia por sua desilusão. Acompanhamos a pura tragédia do palhaço.
Dessa forma, o filme também é crítico com a violência não apenas física e verbal, como a sugerida, a internalizada, e tão reproduzida diariamente. Ao ir em clubes de stand-up comedy para compor seus números, Arthur parece não compreender porque as piadas sádicas são as que resultam em maior parte do riso da plateia – composta por pessoas já indiferentes à agressividade que elas contém. Comediantes misóginos são retratados no filme como pano de fundo, como estudos de caso do personagem, e enquanto a plateia ri abertamente, Arthur apenas assiste, até mesmo um pouco confuso, curioso.
Ele não entende porque acham a dor gratuita do outro tão divertida.
Para além das reflexões sobre a cultura do sadismo, os fãs das hqs de Batman podem se sentir também interessados pelo recorte no qual a família Wayne é introduzida. São fundamentais para a jornada de “corrupção” do personagem. Thomas Wayne, é, talvez, retratado como a figura individualmente mais vilanesca do filme. Ele é não apenas uma representação de um membro da elite que pretende se aproveitar do sistema falido que gerencia Gotham, como o arquétipo do homem poderoso, cujo dinheiro é sua armadura que o torna intocável.
Nisso, a mãe de Arthur, Penny Fleck, é revelada como sendo ex-funcionária do bilionário Thomas Wayne, pai de Bruce Wayne – o futuro “homem-morcego”. Quando esta alegação chega ao conhecimento do protagonista, ele decide investigar o passado de Penny, o que culminará na maior angústia que é obrigado a lidar. Nesse desdobramento, o público é deixado em aberto, sem saber se a verdadeira versão é a da mãe de Arthur – também tida como psicótica, também sem recursos financeiros, também calada forçadamente – ou a do homem poderoso que pode comprar tudo. Até mesmo sua própria verdade.
O filme se passa, assim, alternando os momentos de tentativa do protagonista para alcançar seu sonho profissional, e a constante ridicularização, rejeição e ódio que tem de lidar vindo das pessoas insensíveis a si, ao seu sofrimento e suas dificuldades pessoais e tragédia familiar. Cada vez mais ele se vê tentado a entrar nessa cultura destrutiva, como a única saída que enxerga, não para seu sucesso, não para sua felicidade; ele já está tão mentalmente destruído que ela não parece um fim possível. Mas é como se fosse sua única reação plausível.
A cena em que ele assume sua identidade nova, depois de cometer um assassinato a sangue frio sem nenhum traço de empatia é talvez a que mais testa o espectador. É uma cena pesada, angustiante e sofrida, na qual um escape cômico é colocado propositadamente, não para suavizá-la, mas provavelmente por evidente ironia.
É como se o filme perguntasse: “Vocês vão achar graça disso? Sério?” Se esse era o propósito, vi a maior parte dos espectadores falhar: os risos ecoaram estrondosos na sala de cinema.
Depois de toda a dor retratada, chega-se ao arco final do filme, com o “nascimento” do “Príncipe Palhaço do Crime” dançando alegremente na escadaria da periferia de Gotham, completamente pintado, maquiado, suas alegorias montadas. Arthur se foi e deu lugar ao Coringa: um Chaplin desiludido, destruído por dentro, pronto para mostrar para a plateia seu maior número até então. Ele personifica a cultura da violência em si, numa mistura de ensaio e improviso, e se diverte a vendo explodir pela cidade.
Ironicamente, torna-se um símbolo político, quase um líder coletivo: vira uma ideia vendida. É o comediante ovacionado, não o que desperta alegria e riso, mas o que simboliza o sadismo da multidão e ri da desgraça, da sua própria e de todos ao redor, porque é apenas o que lhe resta. Seu sorriso ao ver a cidade queimar é o único ato de alegria genuína do personagem em todo o filme.
Coringa, portanto, é uma fábula realista, um pedido de socorro, um alerta para uma sociedade muito similar a Gotham retratada. Um aviso para repensarmos nossos atos antes desse colapso completo que podemos chegar, se não estivermos atentos.
A tristeza do palhaço destroçado como ser humano é a nossa tristeza, a nossa dor testada dia após dia na miséria gerada tanto por um sistema político-econômico superexploratório, quanto pelas estruturas de preconceito e atos de indiferença ao outro. A dor carregada na falta de afeto, no incentivo ao desprezo ao invés da aceitação, do abandono ao invés do diálogo, da ignorância ao invés do cuidado.
As lágrimas do palhaço já são as nossas. Que possamos refletir com o filme e o seu sorriso final não venha a ser o nosso, também.
* Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. Roteirista, advogada formada em Direito pela PUC-Rio e estudante entusiasta de Filosofia.
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