Os acontecimentos políticos recentes não cansam de nos mostrar a imensa fragilidade do nosso sistema político e do próprio caráter de nossos representantes. Parto do pressuposto de que se você chegou até aqui compartilhamos, em algum grau, a indignação com os sucessivos e generalizados episódios de corrupção que se tornam públicos.
Diante desse sentimento bastante difundido me pergunto por qual razão nos acomodamos com o modelo vigente. Este sabidamente, em muito deturpado, já não é capaz de nos garantir sequer o respeito à democracia que, muito custosamente, cremos ter conseguido retomar no final dos anos 1980. O hiato democrático vivido com os governos militares deveria ter nos ensinado muito sobre a seriedade de se viver sob a égide de regimes ditatoriais, mas, ainda assim há quem brade pelo retorno deste. Muitos ludibriados pela crença da ausência corrupção no período- como se ela fosse invenção recente daqueles que estiveram no poder. Nesse sentido, acho importante frisar que se hoje temos acesso aos escândalos que abalam o cenário político e econômico, interferindo direta ou indiretamente nas nossas vidas, isso se deve as decisões políticas que permitiram maior investigação e publicidade. Por isso não creio que não houvesse corrupção na ditadura, já que essa sorte de informação que depõe contra um governo jamais seria amplamente divulgada naquele momento do nosso país como vemos hoje.
Com a sabedoria de Michel Miaille em seu celebrado “Introdução Crítica ao Direito” lanço a reflexão pretendida na coluna de hoje. Miaille crê que:
Para que, no sistema capitalista onde os homens estão profundamente divididos em classes antagônicas, uma vida social ainda assim seja possível, é necessário que exista uma estrutura política, cuja função primeira será ordenar a desordem, reconciliar aparentemente indivíduos que tudo separa, velar pela salvação pública. Esta instituição, sabemo-lo, é o Estado. (2005, p.50)
Dentro da perspectiva que Miaille nos traz, o Estado age, através desses impulsos (para compreender melhor, leia aqui a nossa coluna sobre biopolítica foucaultiana), com fito de auto preservar-se e justificar a necessidade da sua existência. Interessante notar, atravessando um olhar hobbesiano sobre a questão, a centralidade do medo nesse contexto, cujo papel é originário, não só na criação, mas na perpetuação estatal.
A referida perpetuação, em Hobbes, se assenta sob o mesmo argumento de que todo e qualquer homem pode tirar a vida de outrem e, de igual maneira, pode ter sua vida ceifada por todos os demais seres humanos que compartilham os espaços em que se vive. É o medo em várias frentes, com especial ênfase ao medo da morte, que leva os homens ao pacto que, para Hobbes, estabelece o Estado. O jurista espanhol Francisco Javier Laporta discorre sobre o uso exclusivo da violência como corolário do pacto hobbesiano e aponta para o Estado como uma espécie de dispositivo colectivo de fuerza (LAPORTA, 2007, p.62) que concentra as parcelas individuais de autonomia cedidas em virtude do referido pacto. Há, portanto, uma cessão individual de importante parcela de autonomia para que se obtenha, assim, a suposta segurança ofertada pelo poder estatal.
É importante questionarmos em que medida a cessão dessa autonomia é um bom investimento, mas deixo esse assunto para abordagem mais específica em breve. Creio que seja oportuno refletir, por ora, sobre o papel interessante que Hobbes atribui ao medo e, com base nisto, pensar na nossa realidade.
Para Hobbes o medo não se opõe a razão. Acho bem importante essa informação e a trago estrategicamente agora, embora só vá desenvolvê-la mais a frente nesse (já grande) texto. O Estado vai reorganizar o medo conforme seus interesses, isto é, vai manipular esse sentimento através dos estímulos próprios da biopolítica com fito de assegurar sua preservação ao longo do tempo. O pacto social hobbesiano faz a passagem de uma situação na qual há o medo recíproco, medo mútuo (estado de natureza, anárquico) e passa para o estado do medo comum, o medo da instituição por eles próprios criada, que é o Estado. O Estado vai fazer com que a gente não enxergue soluções para a nossa vida fora de sua esfera, de seu manto protetor. O Estado vai trabalhar para que a gente acredite ser necessário que seus agentes matem em nome dele, que quase metade do que você ganhe seja revertido em impostos para sua manutenção, que benefícios sejam concedidos aos mais ricos com as desculpas mais covardes, que os mais pobres paguem por crises como a suposta crise na previdência brasileira, que os direitos dos trabalhadores sejam minorados e até mesmo retirados para alavancar o crescimento econômico e por aí vai. Ressalto que não é só o nosso Estado e não é só nesse governo, viu? Embora atualmente essas questões estejam ainda mais sensíveis no Brasil, a questão é histórica, complexa, imensa: o Estado nos aprisiona porque sem a nossa fraqueza diante dele, simplesmente, ele não existiria dentro da ótica hobbesiana. É o nosso medo que o mantém, é ele a razão do Estado e quem o dirige sempre sabe disso.
Pessoalmente, vejo aporias no pensamento de Hobbes, mas concordo com Elias Canneti no que diz respeito ao seu esforço para justificar o papel estatal, apontando para o peso que este exerce em nossas vidas. A obra hobbesiana é um verdadeiro testemunho do constrangimento exercido pelo Estado que repousa em nosso medo e, nesse momento, de tanta indignação penso que seja uma abordagem válida de se rememorar. O medo da insegurança nos fez e faz querer o Estado. Concordo com isso toda vez que me recordo do movimento ocorrido no Espírito Santo no começo do ano, em que as famílias de policiais barravam a saída dos mesmos dos batalhões. As pessoas, apavoradas com a falta de policiamento, ficaram em suas casas e crimes contra o patrimônio foram praticados na ocasião. A normalidade só foi retomada com o retorno dos policiais, agentes do Estado, às ruas.
O medo não se opõe à razão, disse acima. Hobbes endossado por Roberto Esposito, filósofo político da atualidade, enxerga o medo como uma potência criativa. O último, aliás, ao analisar em “Communitas” o pensamento hobbesiano resgata a ideia de potência congregadora do medo que é capaz de reunir, de criar coisas novas (o próprio Estado, em algum momento, foi uma dessas novidades). A racionalidade é o instrumento a ser utilizado para afastar os indivíduos daquilo que temem, por isso é até correto afirmar que medo e racionalidade caminham de mãos dadas.
Confesso que temo pelos retrocessos políticos, temo pela retirada dos nossos direitos trabalhistas, temo a aposentadoria pra lá de tardia que pode ser a realidade de tantos de nós se a Reforma da Previdência passar, temo pela impunidade, temo quando os nossos congressistas votam com toda serenidade e cinismo em medidas que nos prejudicam, temo quando vejo o célebre diálogo entre Jucá e Machado se concretizando e por aí vai.
É importante que a gente se apegue a potência criativa do medo, que deixe a racionalidade operar e que, assim, novos caminhos e alternativas sejam possíveis. Resistir é possível, é necessário, o próprio Foucault já dizia que onde há poder existe sempre a possibilidade de resistência. Que o medo seja libertador!
Referências usadas para a coluna
ESPOSITO, Roberto (2003). Communitas: origen y destino de la comunidad. 1ª edição. Buenos Aires: Amorrortu.
LAPORTA, Francisco. (2007) El imperio de la ley: una visión actual. Madrid: Trotta.
MIAILLE, Michel. (2005) Introdução Crítica ao Direito. Tradução de Ana Prata. 3ª edição, Lisboa, Editorial Estampa
*Anna Carolina Cunha Pinto, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, escreve sobre suas percepções do mundo associando-as com conteúdos de Filosofia e Sociologia. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes, mestranda em Sociologia e Direito pela UFF e apaixonada por filosofia.
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