Em tempos onde tudo é enquadrado em minutos palatáveis e formatos “acessíveis”, a poesia e seu timing muitas vezes parecem se perder entre linhas apressadas e feeds efêmeros.
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Por isso, assistir ao documentário Cristina, 1300 – Affonso Ávila – Homem ao Termo é como encontrar uma pedra rara que reluz em meio ao concreto, talvez em uma ladeira de Minas Gerais. A produção, que lança luz sobre um dos nomes mais imponentes da literatura brasileira, não apenas celebra a poesia e obra, mas oferece um mergulho profundo na mente inquieta, lúdica e inventiva de Affonso Ávila.
Ávila é um daqueles nomes que reverberam com um eco particular. Poeta, crítico, ensaísta e estudioso do barroco, ele deu as mãos para a língua portuguesa em um jogo de espelhos. Aliterações, montagens, apropriações. Cada palavra é calculada e, ao mesmo tempo, subvertida. O rigor formal de Ávila jamais engessou sua obra. Pelo contrário: ele provou que o rigor é também um caminho para a liberdade, muitas vezes fazendo graça em cima disso. Uma poesia que inventa, mas que também desmantela. Que cria, mas que questiona.
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Há que se criar seu estilo, há que se criar seu espaço. Quase um poeta que recita Nietzsche, a potência de criação de Affonso é ambiciosamente discreta, ou discretamente ambiciosa. O tipo de poder que chega de mansinho e quando reverbera não há quem fique indiferente ao que ecoa.
Para os menos familiarizados, Affonso Ávila pode parecer um nome escondido nos corredores da literatura brasileira. Mas o documentário, com sua narrativa pulsante e imersão audiovisual, faz justiça ao seu lugar central na poesia do século XX.
Sua relação com o barroco é uma das maiores contribuições de sua trajetória, mas não apenas, e a maneira com que ele traduz o barroco é diferenciada. Enquanto outros viam o barroco como um período enclausurado no passado, Ávila o trazia à tona como uma chave para compreender o Brasil: o excesso, a ironia, as dualidades. Um espírito barroco que ecoa em nossos dias com mais força do que imaginamos.
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No áudio, nas imagens, no ritmo do documentário, a poesia de Affonso Ávila não é apenas recitada: ela é sentida. Palavras que se materializam em significados novos, entrecortadas por silêncios que falam. E nós, espectadores, somos convocados a entrar nesse jogo, a desvendar as camadas de um poeta que fez da língua o seu labirinto e sua libertação.
Affonso Ávila partiu em 2012, mas deixou uma obra que desafia o tempo e os limites da interpretação. O documentário, assim, não é um ponto final. É uma porta aberta — um convite para revisitar, refletir e celebrar um dos maiores poetas que o Brasil já teve. Um homem que, com rigor, com o lúdico ao seu lado e a beleza de quem passou a vida amando a poesia, transformou a língua portuguesa em algo que nunca deixaremos de redescobrir.
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Convidada pela M2 Comunicação para assistir ao documentário, pude entrevistar rapidamente a diretora do filme, e trazer mais algumas reflexões de Eleonora Santa Rosa sobre seu projeto, sobre Affonso e suas obras.
1. Há que se criar o seu próprio espaço, há que se criar o seu próprio estilo. Há algo de Nietzschiano, uma pulsão natural no Affonso, algo que eu acho que existe na poesia como um todo, na imemorabilidade da poesia, como diz Affonso. Como autora, como diretora, o que você considera que traz o nascimento da pulsão poéticas nas pessoas?
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Eleonora: Como diz o próprio Affonso, em um exemplo quase budista – e lindo –, quando ele fala que ele tinha 12 anos, passou na rua Sapucaí em Belo Horizonte, um dia ele olha para um jardim, e quando ele olha para o jardim de novo vê um vazio, um espaço em branco. E é aí que lhe vem a sua primeira imagem, sonho poético. É assim que ele se maravilha com a poesia. ele não acreditava em inspiração, mas sim em “transpiração”. A inspiração poética pode vir como um estala, um insight, uma pulsão, mas a partir daí ela era trabalho, trabalho e trabalho.
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E o Affonso era um trabalhador da poesia na sua mais ampla asserção.
2. A segunda pergunta, curiosamente, terá relação com a sua resposta. Apesar do Affonso considerar que tinha um espírito muito mineiro, ele também não generaliza o estereótipo, mas podemos considerar que no recorte contemporâneo existem muitos artistas da palavra em Minas Gerais, seja na poesia, seja na música, compositores como o Clube da Esquina, com Milton Nascimento, Lô Borges. O que você acha que há em Minas Gerais, na identidade mineira, que esses artistas da palavra compartilham?
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Eleonora: É curioso porque ele é muito referencial, Minas Gerais está muito presente na sua obra, mas ele mesmo gosta de lembrar “o que seria essa mineiridade tão decantada” que se fala. Há uma opinião sarcástica sobre a mineiridade, dessa coisa toda, e fazendo essa pesquisa sobre isso que ele chega no barroco. E aí ele consegue retirar o barroco desse lugar antigo, tectônico, uma nova interpretação. Uma forma de se estar na civilização, uma história de mentalidades. É uma questão referencial, a mineiridade, mas criticamente, em uma visão que não é laudatória, busca nos raízes de Minas o que ela tem de mais revolucionário, o que ela tem de mais contemporâneo.
3. Eleonora, para você, agora como cineasta, roteirista, autora e poeta, qual é a linguagem compartilhada entre poesia e cinema?
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Eleonora: A poesia está pronta pro cinema, mas não de uma maneira redundante. Há total relação. A poesia do Affonso era absolutamente visual, expressa visualmente. É cinema. Por isso que a gente criou no filme diálogos e contrapontos na identidade visual, no design. É uma poesia cheia de cortes, de elipses, de subtrações de aliterações, de mudanças.
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4. Até de primeiros planos.
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Eleonora: Total. Por isso eu acho que é um belíssimo casamento e uma belíssima junção.
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SOBRE O DOCUMENTÁRIO
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Título: Cristina, 1300 – Affonso Ávila – Homem ao termo*
Sinopse: Uma viagem audiovisual pelo caminho da poesia de Affonso Ávila, um dos poetas brasileiros mais importantes da segunda metade do século XX e também estudioso no campo dos estudos do barroco. Affonso, falecido em 2012, construiu uma poesia de invenção, lastreada no rigor, na ironia, no domínio pleno da língua e da linguagem, com jogos, aliterações, apropriações, montagens, subversões de sentidos e novos significados.
Ficha técnica – Direção: Eleonora Santa Rosa | Elenco: Affonso Ávila | Argumento original e roteiro: Eleonora Santa Rosa | Codireção: Marcelo Braga de Freitas | Montagem: Breno Fortes | Produção executiva: Joana Braga e Eleonora Santa Rosa | Trilha sonora original: Lucas Miranda (oscilloID) | Tratamento de som, mixagem e masterização: Ronaldo Gino | Identidade visual: Voltz Design / Alessandra Soares e Cláudio Santos Rodrigues | Direção de animação: Cláudio Santos Rodrigues | Participação especial (leitura de poemas): Vera Holtz | Consultoria de roteiro: Eduardo de Jesus | Gênero: Documentário | Ano: 2024 | Duração: 60 min. | Distribuição: Cajuína Audiovisual | Lançamento: 22 de agosto 2024 | Acompanhe: @cristina1300doc
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* A produção do documentário tem o patrocínio da Cemig (Lei Federal de Incentivo à Cultura e da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais) e da Liasa (Lei Federal de Incentivo à Cultura). A distribuição em cinemas tem apoio financeiro do Governo do Estado de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo, através da Lei Paulo Gustavo direcionada pelo Ministério da Cultura – Governo Federal.
Trailer do documentário:
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* Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, roteirista, assistente de direção em formação, fã de cinema e cultura pop, estudante entusiasta de filosofia e advogada.
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