Se há um filme eternamente atual e incapaz de envelhecer no Brasil, seu título é “Crueldade mortal”, dirigido por Luiz Paulino dos Santos em 1976. Rodado há mais de quarenta anos, conta a história de um linchamento, baseado num evento real, com todos os seus códigos: ódio, perseguição, humilhação, covardia, tortura, ressentimento. Curiosamente, tão atual, é um filme esquecido, e é raro encontrar uma cópia de qualidade – mesmo tendo Jofre Soares, Marieta Severo, Antonio Pitanga e Maurício do Valle no elenco. Aliás, raro é que se escreva ou se fale desse filme, que inclusive angariou o prêmio principal em Gramado à época.
Lançado em tempos de início da abertura política do regime, é sobretudo uma obra sobre a violência e a falta de bom senso do ser humano. Porém, se obriga a dialogar com o contexto político de sua época, pois o que acompanhamos em tela é uma perseguição sádica seguida de um ritual de tortura, procedimento vigente nessa “página infeliz da nossa história”, e vez outra, evocado nos dias correntes em rompantes de estupidez e ignorância por alguns mentecaptos. O que mais surpreende nesse filme é o parentesco com obras como “Fúria” (1936) de Fritz Lang: parece condenado a não sair de moda jamais. Revê-lo é como relembrar as páginas policiais de todas as épocas posteriores ao seu lançamento, em que justiçamentos e crimes arbitrários pipocaram, sobretudo em momentos de instabilidade política.
Em “Crueldade mortal”, está o velhote amalucado vivido por Jofre Soares. Chato, inconveniente, meio demente, inofensivo, sempre arrumando pequenas tensões com a comunidade local. Após flagrar a cruel Jurema (Marieta Severo) tomando banho, que sai aos berros de “socorro, ladrão!”, será vítima de uma perseguição que pouco a pouco vai envolvendo a todos na comunidade, até culminar com o sádico sacrifício. Deco (Antonio Pitanga) tentará defendê-lo, em vão. Todos entram no jogo, da gangue liderada por Tranca Rua (Maurício do Valle) aos “carolas” do morro. Linchamento, com direito a samba e festividade. Numa cópia um tanto precária, pode ser conferido aqui, via Youtube.
Neste 2017 que ainda não sabemos para onde ruma, “Crueldade mortal” reencarna na morte absurda de um menino perseguido e espancado por seguranças de uma notória rede de fast food (o garoto, como sabemos, morreu em seguida, e um laudo nonsense apontou como causa intoxicação por lança perfume!). O crime bárbaro, contra uma criança, aliás, evoca certa “tradição”, como a da chacina da Candelária, mais de duas décadas atrás. O recado: crianças na rua que incomodam clientes, essas podem ser exterminadas sem má consciência.
Dias atrás, uma travesti foi morta por espancamento em Fortaleza. Chocou, porque parte do linchamento (que aqui tem contornos de crime de ódio, um pouco diferente do “linchamento convencional”, no qual a malta de ressentidos bovinos ataca covardemente um acusado de furto) foi filmada e seu vídeo ainda circula na internet. Novamente, “Crueldade mortal” parece adequado, no país dos justiceiros e dos brucutus da covardia.
São dois incidentes recentes, mas longe de excepcionais. Outro caso semelhante ocorreu ano passado no Maranhão. E quem não se recorda da apresentadora do SBT elogiando o linchamento? – num arroubo de sinceridade que, justiça seja feita, tem a coragem que os apresentadores dos policialescos vespertinos não costumam ter em se assumir como justiceiros, insistindo em fingir que realizam um “serviço público” ou algo assim.
Recentemente, o mais famoso troglodita da política brasileira passou a figurar em pesquisas para a presidência da República (aliás, um belo incentivo ao beócio, não?). E nem chega a surpreender que o citado neandertal tenha números expressivos, e que sua versão mirim tenha tido 15% dos votos para a prefeitura do Rio de Janeiro. Nem seria necessário acrescentar a contribuição das redes sociais, espaço difuso no qual os “tribunais de Facebook” parecem ter encontrado morada segura.
Fato é que “Crueldade mortal” é um filme excessivamente incômodo, por sua abordagem sem rodeios dos hábitos justiceiros que caracterizam o país desde a chegada das caravelas e, relegado ao esquecimento, como se tivesse desaparecido, é como se ele próprio tivesse sido “linchado” da memória do cinema brasileiro. Até as resenhas e críticas sobre ele parecem ter ficado no passado, nas páginas de revistas como a Filme Cultura. Uma bela exceção se encontra no blog da crítica Andrea Ormond, neste link.
Por conta de tudo isso, suas qualidades, ao assisti-lo, revê-lo como crônica de uma história tristemente banal, ficam mais evidentes: para além de trazer um tema que, infelizmente, não envelhece neste país de gente menos cordial e mais violenta que se supõe, o esquecimento da película demonstra nossa singular vocação e inegável talento em negligenciar a produção cinematográfica dessas terras – e por extensão, artística. Como se houvesse um conluio perverso em que linchamentos e torturas ganhassem certa legitimidade graças a um eficiente mecanismo de “assassinato da memória”, de restrição ao debate político e artístico, de conveniente esquecimento de nossa cultura.
* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.
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