Curso: “As propostas de Ítalo Calvino” com o escritor e tradutor Braulio Tavares

Para quem se interessa por cursos de literatura online: Braulio Tavares estará realizando mais um, entre 4 de abril e 9 de maio (nas quintas-feiras), através da plataforma Zoom, para o Instituto Estação das Letras (RJ).
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Serão seis aulas, das 19 às 21:00, abordando as propostas feitas por Ítalo Calvino sobre a literatura do próximo milênio – este em que estamos agora.
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Em 1985, quando morreu, Calvino estava preparando seis conferências que iria proferir na universidade de Harvard (EUA), no projeto conhecido como “Norton Poetry Lectures”. Um ótimo projeto, inclusive do nosso ponto de vista de leitores distantes. Não assistimos as palestras, mas tempos depois chega às nossas mãos um livrinho com esses textos, como This Craft of Verse de Jorge Luís Borges, Seis Passeios pelo Bosque da Ficção de Umberto Eco, Os Filhos do Barro de Octavio Paz, e este precioso volume de Calvino.

As “Norton Lectures” são sempre seis conferências. Cinco de Calvino chegaram a ser escritas, mas ele morreu antes de redigir a última, da qual só nos restou o título.
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O nosso curso de seis aulas vai dedicar cada uma delas a um dos temas propostos pelo escritor de Se Um Viajante Numa Noite De Inverno, de Cidades Invisíveis e de As Cosmicômicas.

Calvino foi um dos escritores mais populares e mais experimentalistas de seu tempo. O experimentalismo literário costuma produzir obras difíceis de ler, ou pouco entusiasmantes. Não é o caso dele: Calvino tem um temperamento parecido com o de Julio Cortázar, cujas experimentações narrativas estavam sempre envolvidas em histórias capazes de atrair o leitor e prender sua atenção até o final. Ele consegue contar uma história envolvente enquanto reflete “em voz alta” sobre os mecanismos da contação de histórias. Seu livro de maior sucesso de vendas, Se Um Viajante Numa Noite de Inverno (1979) é exatamente isto.
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Pensando no terceiro milênio ainda distante, Calvino enumerou seis ideias que ele queria discutir. Sua análise é muito ampla, recolhendo exemplos e modelos de diferentes formas artísticas. Logo na introdução ele explica:

É típico da literatura italiana compreender num único contexto cultural todas as atividades artísticas, e é portanto perfeitamente para nós que, na definição das “Norton Poetry Lectures”, o termo “poetry” seja entendido num sentido amplo, que abrange também a música e as artes plásticas; da mesma forma, é perfeitamente natural que eu, escritor de fiction, inclua no mesmo discurso poesia em versos e romance, porque em nossa cultura literária a separação e especialização entre as duas formas de expressão e entre as respectivas reflexões críticas é menos evidente que em outras culturas. (p. 9)
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É uma advertência necessária, num contexto acadêmico onde a especialização e o foco excessivo são talvez superestimados. Calvino avisa logo que não vai falar somente do romance, a arte que praticou com mais constância: vai puxar exemplos da pintura, da poesia, dos quadrinhos, de onde ele possa obter uma referência ou uma influência, e criar uma interface com outra forma de expressão que (como todos sabemos) se reflete na literatura. Escritor bebe de todas as águas.

E vamos aos temas:

1) Leveza
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Calvino explica que existem “duas vocações opostas” na literatura:
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Uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas como uma nuvem, ou melhor, como uma tênue pulverulência, ou, melhor ainda, como um campo de impulsos magnéticos; a outra tende a comunicar peso à linguagem, dar-lhe a espessura, a concreção das coisas, dos corpos, das sensações. (p. 27)
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Essa comparação entre dois impulsos opostos lembra uma comparação semelhante feita por Isaac Asimov num artigo famoso, “O Vitral e a Vidraça” (“The Mosaic and the Plateglass”). Para Asimov, existem duas linguagens: uma que é como um vitral de igreja, uma obra bonita em si mesma, que só exibe e só revela a si mesma; e existe uma linguagem que é como a vidraça: invisível, discreta, que serve somente de veículo para mostrar o que está acontecendo na história.

A formulação de Asimov é compreensível, mas simplória – ele esquece que por mais “invisível” que pareça ser a linguagem ela não “mostra” a história. A história é criada por ela, e ela parece invisível somente porque é convencional, familiar, já devidamente assimilada pelo público-alvo. A gente lê “sem perceber que está lendo”.
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Calvino busca imagens da leveza que vão para além da linguagem em si. Ele lembra que Perseu, que usa sandálias aladas (presente de Hermes, o deus “Mercúrio”), é o único herói que consegue matar a Medusa (que tudo petrifica). Comenta que em A Insustentável Leveza do Ser o autor Milan Kundera está realmente falando sobre “O Inelutável Peso do Viver”. Avisa que o mundo de hoje, o mundo da Informática, “repousa sobre entidades sutilíssimas”: tudo é muito leve, muito fluido, e o peso do hardware é controlado pela leveza do software.
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E ele faz uma recomendação, citando Paul Valéry, que acho preciosa: “É preciso ser leve como o pássaro, não como a pluma.”

2) Rapidez
Do ponto de vista físico, a leveza parece quase a mesma coisa que a rapidez, mas vamos pensar nesta frase de Valéry aí em cima. A pluma é leve mas é vagarosa, “precisa que haja vento sem parar” (como dizia Vinicius de Moraes); o pássaro tem impulso próprio, por isto é rápido.
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Calvino (organizador de uma excelente coletânea de Fábulas Italianas) usa lendas e contos populares para mostrar a importância das narrativas baseadas em “uma rápida sucessão de fatos”, uma prosa vapt-vupt, concreta, nítida:
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O segredo está na economia da narrativa em que os acontecimentos, independentemente de sua duração, se tornam punctiformes, interligados por segmentos retilíneos, num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto. (p. 48)
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Toda narrativa é uma compressão temporal dos fatos. Toda narrativa é resumo. Mesmo a mais preguiçosa das narrativas, a mais tediosa, a mais baseada em encheção-de-linguiça, é mais rápida do que os fatos que narra. O tempo é sempre comprimido pela literatura. E o tempo literário é uma sanfona, é preciso saber distendê-lo e depois comprimi-lo.
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E uma advertência meio dolorosa tanto para os principiantes quanto para muitos autores de “alta literatura”:
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Todos conhecemos a desagradável sensação que se prova quando alguém pretende contar uma anedota sem ter jeito para isso, confundindo os efeitos, principalmente a concatenação e o ritmo. (p. 51)
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Um comentário específico de Calvino nos lembra um aspecto crucial do Repente, da Cantoria de Viola, do verso improvisado em geral, o verso feito em tempo real, em cima da hora:
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“A velocidade mental vale por si mesma, pelo prazer que proporciona àqueles que são sensíveis a esse prazer, e não pela utilidade prática que se possa extrair dela. Um raciocínio rápido não é necessariamente superior a um raciocínio ponderado, ao contrário; mas comunica algo de especial que está precisamente nessa ligeireza.” (p. 58)

3) Exatidão
Calvino define este aspecto com clareza:
Para mim, exatidão quer dizer principalmente três coisas:
1) Um projeto de obra bem definido e calculado;
2) A evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; temos em italiano um adjetivo que não existe em inglês, icástico (…);
3) Uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. (p. 71-72)
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Ele faz em seguida uma análise de um trecho de Leopardi, o grande poeta italiano que dizia: “A linguagem será tanto mais poética quanto mais vaga e imprecisa for”. Ele transcreve um belo trecho em prosa em que Leopardi louva a beleza do luar quando não é visto diretamente, e sim em seus reflexos nos objetos, ou por entre obstáculos parciais (um canavial, uma floresta). No fim, Calvino comenta:
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Para podermos apreciar a beleza do vago e do indeterminado (…), para se alcançar a imprecisão desejada, é necessário a atenção extremamente precisa e meticulosa que ele aplica na composição de cada imagem. (p. 73)
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Nesse capítulo Calvino fala da influência, em sua obra, de linguagens como a Matemática e a Geometria, onde convivem a precisão e a indefinição, onde os processos de análise acabam nos conduzindo ao conceito de infinito, de dízimas periódicas, de contas que sempre deixam resto (como o número Pi), como que nos dizendo que a exatidão absoluta é impossível de obter.
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E ele contrapõe duas imagens desse conceito: o cristal, uma forma estática, e a chama, uma forma imprecisa, móvel, mas igualmente clara e contida em si mesma – nítida e exata, à sua maneira.

4) Visibilidade
Este capítulo começa com uma citação de Dante, na Divina Comédia: “Poi piovve dentro a l’alta fantasia” (“Chove dentro da alta fantasia”, Purgatório, Canto XVII). Calvino acha que a fantasia, o sonho, a imaginação, a alta poesia, a ficção, são espaços onde as imagens “chovem”.
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Ser capaz de imaginar visualmente é a marca de muitos grandes escritores. Talvez não todos; mas o escritor que é capaz de fazer projetar “um filminho” na cabeça do leitor tem meio caminho andado para conquistá-lo.
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Calvino observa dois processos criativos distintos: “o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal”. Ele comenta o caráter atemorizante da imagem e o fato de que em muitas religiões é proibida a representação visual de Deus (ou até mesmo da Natureza física). A imagem tem algo de sagrado e inacessível ao verbo, à razão.
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Calvino confessa pertencer ao time dos que usam uma imagem visual (às vezes absurda, bizarra, inusitada) como ponto de partida para um conto ou um romance inteiro. Assim surgiu, por exemplo, sua trilogia Nossos Ancestrais: um homem cortado verticalmente em duas metades, um homem trepado em árvores recusando-se a pisar no chão, uma armadura que anda e fala sem ter ninguém dentro.
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Neste Capítulo ele rende homenagem às histórias em quadrinhos, à pintura e à literatura fantástica, que tenta “capturar a alma do mundo numa única figura”.

5) Multiplicidade
Calvino era um erudito que quando ia escrever deixava a erudição no bolso do paletó. Lia literatura de todo tipo. Escreveu uma ficção científica (As Cosmicômicas; Tau Zero) que não tem similar em lugar algum; talvez alguns textos de Stanislaw Lem, Robert Sheckley ou R. A. Lafferty. Tinha a volúpia da leitura e a da escrita.
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Ele diz:
O tema desta minha conferência (…) é o romance contemporâneo como enciclopédia, como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo. (p. 121)
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Sempre recorrendo a exemplos italianos, ele comenta a obra de Carlos Emilio Gadda, onde “cada objeto mínimo é visto como o centro de uma rede de relações de que o escritor não consegue se esquivar, multiplicando os detalhes a ponto de suas descrições e divagações se tornarem infinitas”.
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Há toda uma tendência na literatura contemporânea desse romances em que deve caber tudo. Thomas Pynchon, Neal Stephenson, David Foster Wallace – escritores de real talento e razoável sucesso popular — são alguns exemplos dessa literatura cujo objetivo não parece ser apenas o de descrever a realidade, mas de fagocitá-la por inteiro.
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Por outro lado, quando Calvino se refere a “romance enciclopédico” não quer dizer necessariamente que o autor deva despejar tudo que sabe dentro do livro que está escrevendo, produzindo esses monstrengos de 1.200 ou 1.500 páginas que a gente vê por aí. Mesmo num livrinho mais fino, de meras 150 páginas – como o seu Cidades Invisíveis – ele deve ser capaz, a qualquer momento, de puxar, de qualquer área do saber humano ou da arte humana, aquela imagem de que precisa, a referência que esclarece, o mito que re-emerge, a peripécia que puxa o tapete.
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O romance não tem obrigação de conter tudo, mas tem licença para receber qualquer coisa. Sem limitação de “gênero literário”, de convenção de época, de modismo da imprensa ou da academia.
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O autor simpatiza com esse ímpeto gargantuesco:
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A literatura só pode viver se se propõe a objetivos desmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades de realização. Só se poetas e escritores se lançarem a empresas que ninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter uma função. (p. 127)

6) Consistência
Em 6 de setembro de 1985, Ítalo Calvino foi internado no Hospital Santa Maria Della Scala, em Siena, onde morreu na noite de 18 para 19, com uma hemorragia cerebral, aos 61 anos. Não chegou a escrever a última conferência, a que dera o título de “Consistência”. Sua esposa Esther Calvino afirma que ele dissera apenas que deveria fazer uma referência ao Bartleby, o Escrivão (1853) de Herman Melville.
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O que teria dito Calvino a respeito? Podemos apenas conjeturar, e acho que é um prazer fazer conjeturas – sem nenhuma ambição de “bater o martelo” – no contexto da obra e do pensamento de alguém com tanto gosto pela literatura.


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SERVIÇO
O Curso: “As seis propostas de Ítalo Calvino”
Braulio Tavares
Seis aulas, online (via Zoom), das 19:00 às 21:00
Sempre às 5as.feiras, de 4 de abril a 9 de maio.
(Perdendo a aula ao vivo, o aluno inscrito tem acesso, depois, a uma gravação.)
Informações:
Instituto Estação das Letras (Rio de Janeiro)
Via (21) 99127-4088
>> Sobre Braulio Tavares: Biografia | blog do autor Mundo Fantasma

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