Assisti ao filme “Era o Hotel Cambridge” já alertada de que, embora necessário, tratava-se de um filme triste. À saída do cinema, recordando as observações sobre a obra, notei com surpresa: ao longo das quase duas horas de duração, não senti tristeza com relação à história narrada, mas sim admiração motivadora.
O filme retrata, em mistura de ficção e realidade, a ocupação de um hotel abandonado por refugiados (os dois tipos de refugiados, como é explicado em uma das cenas: os refugiados brasileiros, a quem é negado o direito à moradia, e os refugiados estrangeiros). Nessa narrativa, claro, escancara-se sem pudor a truculência policial direcionada aos ocupantes.
Em leitura mais ampla, o filme denuncia a existência do que Marcelo Neves chama de “cidadãos subintegrados” ‒ aqueles que entram em contato com o sistema jurídico exclusivamente por meio das estruturas punitivas do Estado. Sujeitos de deveres, os cidadãos subintegrados não podem reivindicar direitos para si; ao contrário, têm seus direitos fundamentais constantemente violados, em especial pela atividade repressora da polícia.
O tema do filme, portanto, não se esgota na ocupação do Hotel Cambridge: perpassa indiretamente a história de Maria de Deus Peixoto (moradora de Cidade Ademar, cuja casa foi demolida em abril de 2017 em razão de ‘suposto’ equívoco no cumprimento de ordem judicial proferida em reintegração de posse ajuizada por uma construtora), as histórias de Felipe Farias Gomes e Paulo Henrique de Moraes (dois dos muitos adolescentes assassinados por bala perdida nos episódios de tiroteio ocorridos no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, em 2017), a história de Amarildo e de tantos outros cidadãos subintegrados, na maioria das vezes sequer noticiadas.
Contudo, se bem recordam, iniciei o texto afirmando que o filme não me havia causado tristeza, mas admiração motivadora. Explicarei, prometo.
Neste Brasil-em-colapso, evidenciou-se no dito Estado Democrático de Direito a cidadania subintegrada e, em contraste, a cidadania sobreintegrada (destinada aos cidadãos sujeitos de direito, e não de deveres, aos quais o sistema punitivo não alcançava). Desde as Jornadas de junho de 2013 (na verdade, desde antes das Jornadas), as ruas vêm sendo tomadas, em resistência. “Era o Hotel Cambridge”, as ocupações e os protestos, todos estes, os mais e os menos organizados, são contra a subcidadania e a sobrecidadania – os dois lados da mesma moeda ‒, ao mesmo tempo causa e consequência uma da outra.
Ao lado da revolta, entretanto, também o medo. Falando por mim: desvelada a violência policial e a perseguição do Estado (não nos esqueçamos da recente condenação de Rafael Braga, e nem do Processo dos 23, nos quais se sabe que a sentença será condenatória, ao menos para a maioria dos réus), a cada passo, o receio.
A resposta aos atos de resistência há tempos segue o mesmo roteiro, bem próximo ao narrado no filme. De início, a calmaria. A apreensão. A chegada da polícia, fechando o cerco e anunciando o caos. A primeira explosão. Explosões sequenciais. Os gritos, primeiro espaçados e depois quase uníssonos. O desespero. A lacrimação, a dor e a cegueira. A vontade de se proteger e a vontade de ficar. Vultos correndo ‒ conscientes de que, naquele momento, são todos ali cidadãos subintegrados, sem direito a direitos, agonizando no Passeio Público. Reconheci na cena a mim mesma, sufocada em tantas manifestações, tentando continuar e ao final, buscando uma forma de escapar.
O filme, contudo, sem deixar de abordar o desespero do confronto com a polícia, narra micro-histórias de ocupantes que não se deixaram paralisar pelo medo. Buscaram todas as formas de serem ouvidos (o próprio filme, em metalinguagem, é uma forma de fazê-los ouvidos). Não desistiram, até hoje, apesar da improbabilidade da vitória. E se a vontade é capaz de fazer anjo virar homem (já nos ensinava Wim Wenders), um filme sobre a força dos refugiados não me gera tristeza, mas me motiva a seguir lutando. Continuemos resistindo ao medo.
* Juliana Ludmer, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Sociologia e Direito pela UFF.
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