Em texto (*) inédito em português publicado pelo Estado da Arte, Ian McEwan alerta: “a liberdade de expressão sustenta todas as outras liberdades das quais desfrutamos. Sem ela, a democracia é uma farsa.”
Trata-se do seu discurso aos formandos do Dickinson College em 2015. Em um contexto de crescente intolerância ideológica nos ambientes universitários e intelectuais em geral — quadro que apenas se agravou nos últimos dois anos — e de desconfiança em relação às convicções liberais que sustentam o princípio da liberdade de expressão, seu texto traz uma reflexão clara, direta e poderosa sobre o que significa efetivamente estar comprometido com a liberdade — e qual seu papel para uma verdadeira democracia. O texto foi publicado originalmente na revista Time.
Eis o texto:
“Os meus mais sinceros cumprimentos aos formandos que aqui se encontram. Vocês conseguiram. Vocês receberam um diploma de uma instituição excelente. Muito leram, escreveram, deitaram na cama (refletindo, é claro). E agora chegaram a um dos muitos ápices de suas vidas. Como sabem, há apenas uma maneira de sair de um ápice – mas esta é outra história. Não se deixem enganar por quem diz que a vida é curta. Ela é extraordinariamente longa. Eu tinha vinte e poucos anos quando minha mãe me surpreendeu dizendo, melancolicamente, “eu daria qualquer coisa para ter 45 de novo”. Quarenta e cinco me parecia uma idade avançada. Agora eu entendo. A maioria de vocês ainda tem mais de 20 anos pela frente até atingir o auge. A menos que ocorra uma guerra nuclear ou uma colisão meteórica catastrófica que elimine a todos, uma significativa minoria de vocês encostará o dedo no próximo século – um dedo muito enrugado, com artrite, mas é o mesmo dedo que vocês têm agora. Há um saldo de muitos anos no banco da vida – mas não se preocupem, não estou aqui para dizer como devem gastá-los.
Em vez disso, gostaria de compartilhar algumas ideias com vocês sobre liberdade de expressão (e liberdade de expressão, aqui, inclui ler e escrever, ouvir e pensar). Liberdade de expressão – a força vital, a condição essencial da educação liberal que vocês receberam aqui. Comecemos com um ponto positivo: é provável que haja mais liberdade de expressão, liberdade de pensamento, liberdade de questionamento no mundo hoje do que em qualquer momento anterior de que se tem registro na história (mesmo considerando a era dourada dos chamados filósofos ‘pagãos’). E vocês estão amadurecendo em um país onde a consagração da liberdade de expressão na Primeira Emenda não é uma frase vazia, como em muitas constituições, mas uma realidade efetiva.
Mas a liberdade de expressão foi, é e sempre será atacada – pela direita, pela esquerda, pelo centro. Virá debaixo dos seus pés, dos extremos da religião, bem como de ideologias não religiosas. Nunca é conveniente, especialmente para um poder arraigado, muita liberdade de expressão.
As palavras associadas a Voltaire (que provavelmente expressam seus sentimentos, mas não sua verdadeira frase) continuam sendo cruciais e jamais devem ser esquecidas: eu desaprovo o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo. Raramente é apropriado suprimir o discurso daqueles de quem você discorda. Como meu falecido amigo Christopher Hitchens costumava dizer, quando você conhece alguém que acredita na teoria da Terra plana ou no criacionismo, pode ser bom refletir por que você acha que a Terra é arredondada, ou se é capaz de defender a seleção natural. Por isso, não é bom o princípio, adotado em alguns países civilizados, de encarcerar aqueles que negam o Holocausto ou os massacres armênios, por mais desprezíveis que eles sejam.
É importante lembrar disto: a liberdade de expressão sustenta todas as outras liberdades das quais desfrutamos. Sem ela, a democracia é uma farsa. Toda liberdade que possuímos ou queremos possuir (habeas corpus, devido processo legal, sufrágio universal, liberdade de reunião, representação sindical, igualdade sexual, preferência sexual, direitos das crianças, dos animais – entre outros) deve ser refletida, debatida e escrita livremente. Nenhum indivíduo pode gerar esses direitos sozinho. O processo é cumulativo. Foi um contexto histórico de relativa liberdade de expressão que possibilitou o trabalho daqueles que estavam determinados a expandir a liberdade. John Milton, Tom Paine, Mary Wollstonecraft, George Washington, Thomas Jefferson, John Stuart Mill, Oliver Wendell Holmes – é uma lista longa e ilustre. E é por isso que uma educação nas artes liberais é tão vital para a cultura à qual vocês estão prestes a contribuir.
Saiam para longe destas fronteiras – e sei que muitos de vocês irão – e verão que a liberdade de expressão está em condições desesperadoras. Em quase todo o Oriente Médio, a liberdade de pensamento pode levar à punição ou à morte, por parte de governos, de multidões nas ruas ou de indivíduos com causas próprias. O mesmo ocorre em Bangladesh, no Paquistão, e em grandes extensões da África. Nos últimos anos, o espaço público para a liberdade de expressão na Rússia tem encolhido. Na China, o monitoramento da liberdade de expressão feito pelo Estado ocorre em escala industrial. Para censurar diariamente apenas a internet, o governo chinês chega a empregar cinquenta mil burocratas – um nível de repressão de pensamento sem precedentes na história humana.
Paradoxalmente, é ainda mais importante estar atento à liberdade de expressão onde ela prospera. Em nenhum lugar ela foi resguardada com tanto zelo quanto na Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. E é por isso que foi tão desconcertante ver dezenas de escritores americanos publicamente dissociando-se do baile de gala da fundação PEN America em homenagem aos jornalistas assassinados da revista satírica francesa Charlie Hebdo. A PEN America existe para defender e promover a liberdade de expressão. É decepcionante que tantos autores americanos não tenham conseguido apoiar seus corajosos colegas em tempos de tragédia. A revista é mordaz ao tratar do racismo. Também é mordaz ao tratar de religiões organizadas ou de políticos, e pode não ser do seu gosto – mas é aí que vocês devem se lembrar de Voltaire.
Os escritórios da Charlie Hebdo foram bombardeados em 2011, e os jornalistas continuaram. Eles recebiam ameaças de morte constantemente – e continuaram. Em janeiro [de 2015], nove colegas foram assassinados, a tiros, em seu escritório – a equipe de redação continuou e, em alguns dias, produziu uma edição cuja capa perdoava os agressores. Tout est pardonné, tudo está perdoado. Tudo isso quando nos Estados Unidos e no Reino Unido uma ameaça telefônica pode ser suficiente para interromper o trabalho em uma grande editora.
O ataque à revista Charlie Hebdo veio de fanáticos religiosos cujas filiações ficaram claras quando uma cúmplice dirigiu-se da França, passando pela Turquia, para o ISIS na Síria. Lembrem-se: essa é uma forma de fanatismo cujas vítimas, na África e no Oriente Médio, são majoritariamente muçulmanas – muçulmanos gays e feministas, muçulmanos reformistas, blogueiros, ativistas dos direitos humanos, dissidentes, apóstatas, romancistas e cidadãos comuns, incluindo crianças, que são assassinadas ou sequestradas em suas escolas.
Há um fenômeno na vida intelectual que eu chamo de pensamento bipolar. Não vamos defender a Charlie Hebdo porque pode parecer que estamos apoiando a ‘Guerra ao Terror’ do George Bush. Essa é uma forma sufocante de tribalismo intelectual e uma maneira pobre de refletir sobre si mesmo. Como me escreveu um amigo romancista alemão, angustiado sobre o baile da PEN: “os anos 70 voltaram: não vamos apoiar os dissidentes russos porque isso pode ser ‘aplaudido pelo lado errado’”. Aquela frase terrível.
Mas observem o final dessa situação: o baile aconteceu, e os jornalistas sobreviventes foram tremendamente ovacionados pela PEN America.
Timothy Garton Ash nos lembra, em um novo livro sobre liberdade de expressão, que “a Suprema Corte dos Estados Unidos descreveu a liberdade acadêmica como uma ‘preocupação especial da Primeira Emenda’”. É preocupante, também, o caso de Ayaan Hirsi Ali, ex-muçulmana e crítica ferrenha do Islã – crítica demais para alguns. Como vítima, ela tem feito campanhas contra a mutilação genital feminina e a favor dos direitos das mulheres muçulmanas. Em um livro recente, ela defende que, para o Islã conviver melhor com o mundo moderno, precisa repensar suas atitudes em relação à homossexualidade, à interpretação do Corão como palavra literal de Deus, à blasfêmia, às punições severas àqueles que abandonam a religião. Ao contrário do que algumas pessoas têm sugerido, esses argumentos não são racistas nem são alimentados pelo ódio. Mas ela tem recebido ameaças de morte. Em muitos campi americanos ela não é bem-vinda e, inclusive, a Universidade Brandeis retirou o convite para lhe conferir um diploma honorário. O Islã merece respeito, assim como o ateísmo. Queremos respeito em todas as direções. Mas a religião e o ateísmo, e todos os sistemas de pensamento, todas as grandes reivindicações de verdade, devem estar abertos a críticas, sátiras e até mesmo, às vezes, ao escárnio. Certamente não esquecemos as lições do caso de Salman Rushdie.
A intolerância universitária a palestrantes inconvenientes não é novidade. Nos anos 60, minha própria universidade impediu um psicólogo de promover a ideia do componente hereditário na inteligência. Nos anos 70, o grande biólogo americano E.O. Wilson foi silenciado por sugerir a existência de um elemento genético no comportamento social humano. Pelo que me lembro, ambos foram chamados de fascistas. As ideias desses homens não se encaixavam nas ideologias predominantes, mas hoje suas visões são irrepreensíveis.
De maneira mais ampla, a internet tem, é claro, fornecido possibilidades extraordinárias para a liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, tem nos colocado em um terreno um pouco complicado e inesperado. Levou a um lento declínio dos jornais locais, e então removeu uma voz cética e bem-informada das políticas locais. A privacidade é um elemento essencial da liberdade de expressão; os arquivos de Snowden revelaram um nível extraordinário e desnecessário de vigilância de e-mails por parte de agências do governo. Outro elemento essencial da liberdade de expressão é o acesso à informação – a internet tem concentrado um enorme poder nas mãos de companhias como Google, Facebook e Twitter. Precisamos cuidar para que não haja abuso desse poder. Grandes empresas farmacêuticas são conhecidas por reter informações de pesquisas vitais ao interesse público. Em outra escala, a morte de jovens negros sob custódia policial pode se enquadrar como a principal pena imposta à liberdade de expressão – assim como é a pobreza e a escassez de recursos educacionais.
Todas essas questões precisam da contribuição de homens e mulheres com educação nas artes liberais, e vocês, formandos, estão bem posicionados para tirarem suas próprias conclusões. Possivelmente irão concluir, com razão, que a liberdade de expressão não é simples. Nunca é algo absoluto. Não damos espaço a pedófilos proselitistas, a racistas (e, lembrem-se, raça não é o mesmo que religião) ou àqueles que desejam incitar a violência contra os outros. O hipotético ‘grito de incêndio em um teatro lotado’ de Wendell Holmes ainda é relevante. Mas pode ser um pouco fácil demais, às vezes, desconsiderar argumentos que você não gosta como sendo ‘discurso de ódio’ ou reclamar que um palestrante o fez sentir ‘desrespeitado’. Sentir-se ofendido não pode ser confundido com um estado de graça; é o preço que, de vez em quando, todos nós pagamos por viver em uma sociedade aberta. Ser resiliente não é ruim. Envolvam-se com argumentos – não com banimentos e, definitivamente, não com armas – ou, como um professor muçulmano americano recentemente disse nas orações de sexta-feira, ignore a coisa toda.
Ao se decidirem sobre essas questões, espero que lembrem da época em que estudaram aqui na Dickinson e dos romances que provavelmente leram. Isso os impulsionará, espero, na direção da liberdade mental. O romance, como forma literária, nasceu do Iluminismo, da curiosidade e do respeito pelo indivíduo. Suas tradições levam ao pluralismo, à aceitação, a um desejo solidário de habitar as mentes alheias. Não há um homem, mulher ou criança no mundo cuja mente o romance não possa reconstruir. Os sistemas totalitários têm razão com seus interesses mesquinhos ao encarcerarem romancistas. O romance é, ou pode ser, o principal meio da liberdade de expressão.
Espero que vocês dediquem a excelente educação liberal que receberam à preservação, para as gerações futuras, da nossa bela e preciosa, mas também estranha e, às vezes, inconveniente e até ofensiva, cultura da liberdade de expressão. Levem com vocês as palavras célebres de George Washington: “quando perdemos a liberdade de expressão, devemos, em silêncio, ser guiados como ovelhas para o matadouro”.
Podemos ter certeza de que a Dickinson não os preparou para serem ovelhas. Boa sorte, formandos de 2015, no que escolherem fazer de suas vidas.”
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(*) Originalmente publicado na revista Time, **traduzido para o português e publicado pelo “Estado da Arte“. ** tradução de Ana Beatriz Fiori
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