quinta-feira, dezembro 19, 2024

A democracia é difícil – Sérgio Buarque de Holanda

A democracia é difícil

Sérgio Buarque de Holanda: A democracia é difícil, entrevista concedida a João Marcos Coelho|Revista Veja, em 28 de janeiro de 1976. Sempre atual.

A caminho dos 74 anos, que completará em julho (1976), Sérgio Buarque de Holanda é, ao mesmo tempo, um impecável historiador e um fascinante contador de histórias. Grande viajante, entremeia reflexões sobre o exercício da História com finas observações do tipo: “Me diverti muito quando estive na Grécia. Lá, os carregadores de bagagens são chamados metaphoras, e os que esperam na fila do ônibus estão em ekstasis. É agradável, mas também chocante, você se deparar de repente com as palavras sendo utilizadas em seu sentido rigoroso, não é?

Seu primeiro livro, “Raízes do Brasil” (1936), forma, junto com “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, e “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Jr., o grande tripé básico da cultura brasileira no século XX. Começou a lecionar na Universidade do Distrito Federal, transferindo-se em 1938 para o Instituto Nacional do Livro. Dez anos depois passou a ocupar a cadeira de História Econômica do Brasil na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. A partir de 1956, assumiu o posto de catedrático de História da Civilização na Universidade de São Paulo. Pronunciou conferências e deu cursos nos Estados Unidos, França, Itália, Suíça e Chile. Entre as universidades americanas, lecionou em Colúmbia, Harvard, Califórnia, Indiana, Yale e na New York State University.

Desde 1960 dirige a “História Geral da Civilização Brasileira”, já em seu sétimo volume publicado: “Do Império à República”. Embora negue predileção pelo período do Segundo Reinado, Sérgio diz que “basicamente a coleção é um trabalho de equipe, mas este volume é apenas meu. Eu ia fazer apenas uma resenha do aspecto político do Império, mas ela acabou virando um livro, publicado como último tomo do século XIX. Um pouco cansado com o trabalho de coordenar uma coleção desse porte, pedi um sucessor para a parte da República. E Bóris Fausto foi o escolhido”. Contudo, ainda este ano Sérgio pretende publicar uma nova versão de “Do Império à República”, consideravelmente ampliada.

Confortavelmente sentado em uma poltrona, numa das salas – todas literalmente atulhadas de livros – de sua casa normanda no bairro do Pacaembu, em São Paulo, Sérgio (ou o “pai do Chico Buarque”, como adora ser chamado) falou sobre a História. E também contou muitas outras.

O que o senhor modificaria, hoje, em seu livro “Raízes do Brasil”, escrito na década de 30?
Muita coisa. Eu escrevi dois de seus capítulos na Alemanha, quando lá morei, entre 1928 e 1931. A ideia básica era a de que nunca houve democracia no Brasil, e de que necessitávamos de uma revolução vertical, que realmente implicasse a participação das camadas populares. Nunca uma revolução de superfície, como foram todas na História do Brasil, mas uma que mexesse mesmo com toda a estrutura social e política vigente.

E a ideologia brasileira do homem cordial, que vem da passagem do século e o senhor de certa forma adota, ainda valeria?
Critica-se muito, mas poucos entenderam o verdadeiro sentido da expressão homem cordial. Quando falo cordial, não é no sentido de “cordiais saudações”, como Cassiano Ricardo o fez. A cordialidade com que caracterizei o brasileiro pode ocorrer mesmo em situações de confronto, fatos comuns em nossa história. Nesse sentido, ela tem sido incruenta. Tem havido muita discussão, recentemente, a respeito da História do Brasil, se ela é cruenta ou incruenta. Considero esse debate bizantino. É inegável, porém, que a independência, a proclamação da República e mesmo as revoluções de 1930 e 1964 se fizeram sem derramamento de sangue. Portanto, a cordialidade continua valendo para a nossa História.

O que o levou a tentar explicar globalmente o caráter nacional brasileiro?
Hoje, eu não me aventuraria mais a tentar uma empreitada dessa espécie. Simplesmente porque os tempos são outros. Eu estava muito influenciado pelo sociólogo alemão Max Weber. Aliás, foi naquela mesma década de 30 que surgiram outras obras brasileiras cuja característica também era a de tentar a grande síntese: “Casa Grande & Senzala”, “Formação do Brasil Contemporâneo”. Há pouco tempo uma editora francesa, a Gallimard, me propôs a tradução de “Raízes do Brasil”. Pediram-me também um ensaio, que seria publicado na edição francesa, atualizando minhas idéias. Tentei, mas acabei desistindo. O livro está superado e plenamente datado. Minhas preocupações eram outras. Não tem sentido reescrever eternamente uma mesma obra.

Quando o senhor afirma que no Brasil nunca houve democracia, isso talvez signifique que, num certo sentido, as massas populares jamais participaram do jogo político nacional?
Claro. No Brasil, sempre foi uma camada miúda e muito exígua que decidiu. O povo sempre está inteiramente fora disso. As lutas, ou mudanças, são executadas por essa elite e em benefício dela, é óbvio. A grande massa navega adormecida, num estado letárgico, mas em certos momentos, de repente, pode irromper brutalmente.

Em quais momentos esse despertar teria ocorrido?
Até agora, todas as revoluções dentro da História do Brasil foram de elites, civis ou militares, mas sempre elites. E, quando a questão se restringe a querelas elitistas, o processo caminha como numa briga de família: aparece um primo, um tio, ou um amigo da família com bom relacionamento com ambas as partes capaz de contornar diplomaticamente o confronto direto. E é exatamente no conchavo que pode surgir a figura do homem cordial. Por isso a democracia, que nasceu aqui num mal-entendido, percorreu em nossa História um caminho inusitado. Ou seja, foi murchando aos poucos.

Como se deu esse esvaziamento?
Pela Constituição de 1824, somente os escravos (porque dependiam do senhor), os religiosos em regime claustral, as mulheres e os menores não votavam. Ela permitia o voto dos analfabetos, dos libertos. O censo pecuniário (mínimo de renda mensal para poder votar) era de 100 mil-réis – esta quantia, só os indigentes não conseguiam obter. Era uma Constituição relativamente democrática. Em 1846, houve uma reforma, mas só para aumentar a renda mínima, devido à desvalorização da moeda, de 100 para 200 mil-réis. Havia duas espécies de participantes do processo eleitoral: os votantes, que tinham o direito de escolher os eleitores; e estes, que, por sua vez, elegiam os deputados e senadores. Os primeiros constituíam toda a massa ativa da população, mal ou bem participando realmente do jogo político. Na década de 70, em pleno Segundo Reinado, os partidos Liberal e Conservador se uniram para lutar por eleições totalmente diretas. Com a passagem dos votantes, grande maioria da população, para a condição de eleitores, entretanto, a democracia sofreu um golpe, pois a renda mínima foi muito aumentada (400 mil-réis, sujeitos a comprovação), que por sua vez era discutível. Isso alijou os antigos votantes e restringiu o número de eleitores de 1,5 milhão para pouco menos de 300 000. Tanto é que um estudo, coordenado por Santana Nery, publicado em Paris, em 1889, afirmava: “O Brasil é o país que tem menor número de votantes: apenas 1,5% da população tem esse direito”. Computando-se as habituais abstenções, não se chegava a 1 %. Somente em 1930, quando a massa popular votava, subiu-se para 5%. Então, veio o freio da revolução, que sustou o processo eleitoral por algum tempo.

Seria correto afirmar que no Brasil sempre se confundiram as palavras democracia e liberalismo?
Evidente. O liberalismo pode perfeitamente sobreviver sem a prática da democracia, e isso é o que sempre aconteceu no Brasil. O substantivo liberal surgiu nas Cortes de Madrid, entendido como oposto ao servil, ou iliberal. Dicionarizado em 1803, no Brasil ainda significava pessoa generosa, dadivosa. Em toda a História do Brasil, porém, a palavra é frequentemente usada como sinônimo de concessão por parte das elites dominantes. O próprio dom Pedro I, quando dissolveu a Assembleia Constituinte de 1823, afirmou que a Constituição que outorgaria era duplicadamente mais liberal do que a elaborada pelos constituintes. “Quero uma Constituição para o povo, não pelo povo”, chegou a dizer, deixando claro que apenas com sua permissão se podia praticar a liberdade. Isso pairou idealmente em todo o Segundo Reinado, embora jamais tenha existido na prática.

Quer dizer que a democracia sobreviveu no Brasil apenas quando era bom o humor das elites dominantes?
Sim. E alguns políticos mais lúcidos perceberam isso já no século passado. Nabuco de Araújo, em 1869, dizia que nós tínhamos liberdade, ou liberalismo, mas só nas capitais. No interior, quem resolvia era o capanga, o prefeito ou o chefe de polícia. Em um discurso particularmente inflamado, chegou a afirmar que “a liberdade existe para nós, homens de gravata lavada, e não para o povo”. Na época, usava-se uma gravata de seda ou linho, com colarinho alto, com um nó triplo bastante saliente, colorindo o peito e forçando a pessoa a uma posição sempre altiva. E a cor, obrigatoriamente branca. Com o calor do Rio de Janeiro e sua situação urbanística (para chegar ao Senado, na antiga rua do Areal, era preciso passar pelo Campo de Santana, onde haviam capim, brejos e burro soltos), o consumo de gravatas diárias chegava a cinco ou seis. E naturalmente era preciso ter dinheiro para manter esse enorme estoque. Outro político contemporâneo de Nabuco de Araújo, Teófilo Otôni, cognominado o “Tribuno Liberal”, numa circular para seus eleitores mineiros, usou expressão semelhante: “O que eu quero é a democracia de classe média, a democracia de gravata lavada”.

Ao que parece, eles só pensavam numa democracia higienicamente asseptizada.
Na verdade, a palavra democracia era mal vista pelos liberais brasileiros no começo do Império. Talvez devido a uma identificação com os ideais de Robespierre, o que, os levava a associar democracia com anarquia. Quando ganhou status, em meados do Império, a palavra já tinha perdido seu sentido original. E passou a significar liberalismo. Aliás, outro bom exemplo é o de frei Caneca, que em um de seus escritos afirmou: “É impossível viver com esta gentalha composta de mulatos e mestiços”, deixando entrever um nítido desprezo pelas classes populares.

E a partir da República? Continuou o processo de esvaziamento da democracia?
Sim. O período republicano se iniciou entre nós com uma vitória de Rui Barbosa: o chamado censo literário, com que, finalmente, se barrou o acesso dos analfabetos ao voto. Um dos argumentos constantes do grupo vitorioso era o de que uma parte da população ainda não estava preparada para participar do jogo democrático. Era preciso esperar o progresso, que naturalmente elevaria a massa à condição de ‘alfabetizada e, portanto, apta a votar. Esta, no fundo, é uma ideia reacionária: não é preciso lutar, o progresso há de vir, independentemente de nossa vontade. Mais de oitenta anos se passaram e nem com o Mobral o problema foi resolvido. Aliás, José Bonifácio, “o Moço”, que adotou posição contrária à de Rui Barbosa (um seu ex-aluno a quem muito respeitava) usava argumentos bastante convincentes: “Por que os analfabetos não podem votar? Amanhã vão dizer que os surdos também não podem, depois os mudos, e depois ainda só votarão as pessoas formadas em universidades: depois os epilépticos, conhecidos ou desconhecidos”. Em seguida, dirigiu-se ao governo: “Eu sou a Democracia… fostes para as alturas e eu fiquei. Não vos acuso.., neste país há lugar para todos. Pois bem, deixai também lugar para mim”.

Como encarar a história brasileira, de 1930 em diante?
Certamente como uma nova versão, modernizada, da democracia de gravata lavada. Falar em democracia, hoje, todo o mundo fala. Inclusive os países comunistas. Até durante o nazismo mais de 90% da população alemã votava. Claro que pressionada e num jogo de cartas marcadas. Mas votava. A fachada da democracia sempre está presente, inclusive nos regimes autoritários e totalitários.

Parecem coexistir hoje dois grandes grupos de historiadores preocupados com o Brasil. De um lado, os brasileiros, que, numa posição extremamente critica, procuram, grosso modo, reconstituir o que chamam de história da dependência. E, de outro, os chamados brazilianists, estrangeiros que têm dado preferência a certos temas da nossa História, como por exemplo, a escravidão, o Estado Novo e os governos da Revolução de 1964. Eles se completam, de alguma maneira?
Primeiro, é preciso esclarecer que o interesse pelo Brasil não é novo. Na década de 40, quando o presidente Roosevelt pôs em prática o que chamou de política de boa vizinhança, houve muitas teses sobre o Brasil. Até eu fui convidado a visitar os Estados Unidos para participar de um congresso sobre estudos brasileiros, durante três meses. Em 1965, em nova ida aos EUA para dar cursos, vivi como um nababo: me hospedei no Waldorf Astoria, um carro do ano com motorista à disposição, tudo por conta do governo americano. Agora, porém, essa nova vaga parece ter raízes mais profundas e duradouras. Os historiadores Richard Morse, Thomas Skidmore (autor de “De Getúlio a Castello”), Stanley Stein e Richard Graham me parecem os melhores. A explicação para a escolha de determinados temas é relativamente fácil: a escravidão, por exemplo, é um dos temas americanos permanentes. Quando ouviram comentários de que tinha havido no Brasil o bom senhor, e escravos unidos – graças a um livro de Frank Tannembaum, “Slave and Citizen”, e a edição inglesa de “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre -, rapidamente o assunto virou moda. Já quanto aos temas contemporâneos, de Getúlio para cá, tive uma boa resposta quando, na Universidade de Berkeley, Califórnia, fiz esta pergunta a um brazilianist. Sua resposta: “Cuba”. A posição do Brasil como país estratégico, política e militarmente, tem se reforçado cada vez mais nos últimos tempos e por isso é preciso, do ponto de vista americano, conhecê-lo muito bem.

Em que consistiu a contribuição dos brazilianists para a historiografia brasileira?
Existe um preconceito com relação aos historiadores americanos de que são ingênuos e pouco teóricos. Isso não é muito correto mas tem um fundo de verdade. Um amigo me contou que um dia encontrou um rapaz numa biblioteca americana preparando uma tese sobre o Renascimento. Perguntou-lhe se ele já tinha lido o celebérrimo livro de Jacob Burckhardt a respeito e obteve esta resposta: “Ainda não cheguei lá. Estou nos autores cujos nomes começam por A”. Isso ilustra a capacidade de coleta de material deles, espantosa em seu rigor e meticulosidade.

Uma das críticas que se fazem, não somente ao historiador mas ao intelectual brasileiro em geral, é a de que ele tem a obsessão de ultrapassar rapidamente a realidade empírica e partir para a ensaística, ou interpretação teórica, sem bases sólidas.
Concordo integralmente, e é por isso que eu jamais escreveria de novo “Raízes do Brasil”. Principalmente porque o livro ficou no nível do ensaio. Não sou contra a ensaística ou a interpretação, mesmo hoje. Mas a pesquisa deve ser rigorosa e exaustiva. Se não, o resultado são apenas elucubrações, às vezes brilhantes, mas desvinculadas da realidade.

De qualquer modo, não há jeito de escapar da ideologia?
Não. E é engraçado observar como diversas vezes, na História do Brasil, pessoas mascararam suas verdadeiras posições em função do momento político. Quando Dom Pedro I abdicou, devido a inúmeras pressões, no período imediatamente seguinte – a Regência – os grupos dirigentes permaneceram unidos, porque tinham pavor da volta dele ao poder. Somente depois de 1834, quando dom Pedro morreu, é que se revelaram as verdadeiras posições. Tanto que os conservadores fundaram seu partido em 1837, opondo-se aos moderados. O próprio Gilberto Freyre, quando surgiu, era tido como altamente revolucionário apenas porque usava palavrão, falava da vida sexual e era contra os jesuítas e a maçonaria. Grande parte do clero se voltou, decididamente, contra ele e contribuiu para forjar dele uma falsa imagem revolucionária.

Os historiadores brasileiros têm tentado detectar as ideologias que determinam os fatos de nossa história e fazer uma revisão de tudo o que já foi dito?
A revisão da História não tem que ser absolutamente um momento privilegiado. Ela tem que ser feita a todo instante. A história não é prisão ao passado. Ela é mudança, é movimento, é transformação. E por isso estamos irremediavelmente presos a ideologias que na maioria das vezes são exóticas, pois não nasceram aqui. A atual geração de historiadores considera que a ideologia representa um pensamento falso. Mas eu pergunto: será possível assumir uma ideia que seja válida? Cada um de nós tem, no fundo, uma certa ideologia, um certo conceito de tempo. Para transcender isso, somente um gênio. E não devemos ficar eternamente de braços cruzados à espera desse ser excepcional, devorador de ideologias, que assumiria o ponto de vista da eternidade.

Então, fazer história é reescrevê-la perpetuamente?
Eu diria, junto com Benedetto Croce, que toda história é história contemporânea. Ou seja, nós sempre privilegiamos um aspecto em função de nossa realidade. Por exemplo, quando Bismarck governava todo-poderoso a Alemanha, a Escola Prussiana de História, ao estudar a Grécia antiga, privilegiou muito as qualidades de Alexandre Magno, o homem forte que dominou toda aquela região por um bom tempo. Tudo isso em função de Bismarck. Nós contamos a história a partir da vivência cotidiana de nossos problemas, de nossa realidade. Os historiadores sempre foram e serão presa fácil de seu tempo.

Fonte: Sérgio Buarque de Holanda: A democracia é difícil. [entrevista concedida a João Marcos Coelho]. Publicada originalmente na Revista Veja, em 28 de janeiro de 1976.

Saiba mais sobre Sérgio Buarque de Holanda:
Sérgio Buarque de Holanda – raízes do Brasil


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