terça-feira, dezembro 3, 2024

Democracia racial à brasileira, representatividade e Lemonade, por Mayra Muniz

Ao contrário do que se pensa, a nossa dificuldade não está em perceber o caráter de humanidade que nos nivela. O grande desafio da nossa sociedade é admitir as diferenças e conviver harmoniosamente com elas. Quando insistimos que vivemos em igualdade, ignorando estrategicamente toda a nossa história, perpetuamos abusos e desigualdades, e afirmamos de forma velada que não há maneira de respeitar aquilo que não se aproxima do que somos.

É por isso que, apesar do racismo manifestado de diversas maneiras todos os dias, de formas mais ou menos conscientes, não perdemos nunca a oportunidade de sacar da manga a carta da miscigenação: o Brasil é, dentre todas as outras, a receita que deu mais certo.
De uma forma muito misteriosa – talvez seja algum elemento químico presente apenas nas nossas águas – três raças aqui protagonizaram a experiência mais bem sucedida de todas as experiências da natureza – dentre as demais experiências da natureza. Aqui, Deus cruzou índios, brancos e negros, que sem qualquer tipo de estranhamento ou conflito deram origem à esta perfeita mistura. Eis o mito da criação do Brasil, que tem sanado de forma eficiente eventuais problemas de gerados pela culpa por parte dos desfrutadores da herança desta história de violência romantizada.

Seria bonito se fosse verdade. Mas, por falar em beleza, acredito que Carlos Lyra e Vinicius de Moraes souberam desenhar, precisa e poeticamente, as bases em que se deu esta mistura:

“Nasci lá na Bahia
De Mucama com feitor
Meu pai dormia em cama
Minha mãe no pisador
Meu pai só dizia sim, venha cá
Minha mãe dizia sim, sem falar
Mulher que fala muito perde logo seu amor”

O mito do Brasil multicolorido é perigoso, pois dele vem a tentativa de cerceamento do que é ou não próprio de determinados grupos. Parece que cumpriu-se plenamente o objetivo de apagar os rastros dos povos trazidos para trabalhar como escravos na colônia.
Ora, se perdiam logo de cara o direito de usarem seus nomes africanos, fazendo que, com o passar dos anos, suas origens fossem praticamente indecifráveis, como querer saber agora o que trouxeram nos navios e o que foi sendo desenvolvido aqui a partir do contato com brancos e índios? E, não sabendo de onde vieram e o que de fato lhes pertence, como reinvidicar direitos sobre objetos e símbolos que, afinal, podem ser utilizados por qualquer um?

O que raramente se questiona são os motivos que fazem com que, subitamente, aqueles que demonizavam muitos destes símbolos voltem seu interesse para eles. Quando um grupo dita os modos, a língua, a religiosidade, assim como o que é esteticamente bem aceito, bonito e saudável, este grupo predomina. No Brasil contemporâneo, estas determinações não tão são absolutas. Existem grupos minoritários que buscam a autonomia possível dentro deste contexto, desta forma praticando sua religião, seus costumes e sua cultura, transmitida por meio de resistência através de gerações, como acontece com negros e indígenas.

No momento que algum traço de costume de uma cultura minoritária passa a ser explorado e difundido pelo grupo dominante, perde-se o sentido que envolve o uso daquele objeto. É a alienação do espírito daquele símbolo. Veja, eu gostaria de poder mudar de assunto, como propõem os defensores da ideia de que a apropriação não é nada problemática, já que o mundo como conhecemos é resultado de trocas e assimilações culturais. Mas, esta semana, como se não bastasse o tema ter voltado a ser motivo de debate aqui no Brasil, no domingo (12) , a performance de Beyoncè no Grammy Awards, em Los Angeles, estimula algumas reflexões.

Não se falou em outra coisa no mundo pop: a apresentação da Beyoncè, grávida de gêmeos, foi conceituada em cima dos principais arquétipos maternos da cultura yorubana. Uma mulher negra, mundialmente aclamada por seu trabalho musical, escolheu se inspirar nas deusas nigerianas Oxum e Iemanjá, chamando a atenção para a importância da representatividade na construção da autoestima de crianças e jovens. E se as imagens, para algumas pessoas, não dão conta da simbologia, apenas um trecho do discurso em que ela fala sobre seu recente trabalho, “Lemonade”, consegue fazê-lo:

“Todos nós passamos por dores e perdas, e às vezes nos tornamos inaudíveis. Minha intenção era, com o filme e o álbum, criar um trabalho que desse voz às nossas dores, nossas lutas, nossa escuridão e nossa história. Confrontar questões que nos deixam desconfortáveis.

É importante para mim, mostrar para os meus filhos imagens que reflitam sua beleza, para que eles cresçam em um mundo em que possam olhar para o espelho, primeiramente, através de seus familiares – assim como nos noticiários, no Super Bowl, nas Olimpíadas, na Casa Branca e no Grammy – e se reconheçam, e não tenham dúvida de que são bonitos, inteligentes e capazes.”

Que significado tem esta mulher estar utilizando elementos da cosmologia africana para tratar de questões tão delicadas e importantes para os descendentes da diáspora? Talvez este significado esteja oculto para maioria das pessoas. Mas representa um aprofundamento e uma reconexão da cantora com suas origens, que emergem em forma de afirmação cultural da sua identidade, influenciando muita gente negra por aí.

Voltando ao nosso país e aos nossos inegavelmente fluentes trânsitos culturais, a preocupação quando se discute representatividade e apropriação é que negar que estas questões existem e que dizem respeito ao sentimento de autovalorização de um grupo, está na base do problema do racismo e da desigualdade.

É preciso que as pessoas desenvolvam a capacidade de apreciar sua cultura através de uma perspectiva própria, e não buscarem este afeto na legitimização concedida por um grupo dominante. O fato de muitas culturas utilizarem símbolos parecidos, não minimiza a questão, se quando uma mulher branca faz uma amarração na cabeça, ela copia as usadas pelas negras praticantes do candomblé, e não as dos sikhs indianos. Enquanto brancos não entenderem que sua luta não é pelo direito de usar um adorno, que é símbolo da resistência negra, mas sim pelo direito de manter de forma indiscutível seus privilégios, este assunto não se esgota.

Pra que nós não precisemos mais gastar tanta energia em torno deste tema e foquemos no que realmente importa (isto me foi sugerido por uma rapaz que, quando me perguntou sobre apropriação cultural, ficou contrariado com a resposta), é preciso também que a gente resolva parar de gastar energia justificando dominação, sob a máscara da democracia racial. Porque, se a apropriação é relativa, o prejuízo causado pelo racismo não está sendo, não.

Mayra Muniz, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Designer e ilustradora.


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