Estás desempregado? Teu amor sumiu? Calma: sempre pode pintar uma jamanta na esquina.
Tenho um amigo cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos há muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.
Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele — humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou esta: — “Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim…” — Descemos o elevador rindo feito hienas. Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas.
Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: — “Por favor, preciso de uma jamanta às 20h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque vai estar no bolso esquerdo da calça”. Às 20h14, na tal esquina (uma ótima é a Franca com a Haddock Lobo, que tem aquela descidona), você olha para a esquina de cima. E lá está — maravilha! — parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: — “Morro feliz. Era tudo que eu queria…”
Dia seguinte, meu amigo dark contou: — “Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada…” Rimos até ficar com dor de barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele “Consolo na praia”, sabe qual? “Vamos não chores/ A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu” — ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além de mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema — Drummond, o Carlos, pergunta: “Mas, e o humour?” Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?
Deus é naja — descobrimos outro dia.
O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou o Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu às vezes, só às vezes, também consigo.
Ultimamente, quase não. Porque também me acontece — como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora — de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.
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Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma linda e fatal jamanta. A mil por hora.
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O Estado de S. Paulo, 15.7.1986
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— Caio Fernando Abreu, no livro “Pequenas epifanias”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
SOBRE O LIVRO
“Caio sentia a dor profundamente, falava de solidão, de suicídio. Mas ao mesmo tempo não se deixava levar. Debochava da dor e a superava.”
— CÁSSIO SCAPIN”Muitos jovens se interessam pelo Caio porque ele joga com uma certa vontade transgressora e, ao mesmo tempo, contrabalança com um discurso de afeto. Ele se dirige muito a quem é inquieto, crítico, tem talento artístico e a quem é intenso e passional.”
— ITALO MORICONI”Se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então.”Epifania é a expressão religiosa empregada para designar uma manifestação divina. Por extensão, é o perceber súbito e imediato de uma realidade essencial, uma espécie de iluminação. As crônicas escritas por Caio Fernando Abreu retêm essa qualidade, levam o leitor a enxergar, como num clarão, verdades bem-escondidas.Este livro apresenta uma seleção dessas epifanias. Suas crônicas têm um caráter de urgência, expondo angústias e inquietações pessoais. Elas revelam o lado significativo de fatos como os horrores da descoberta da aids, abrindo-se para visões poéticas como a da morte que se aproxima na forma do último trem — que também pode ser o primeiro.A primeira fase de Pequenas epifanias foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo entre 1986 e 1989. Depois de um intervalo de três anos, Caio voltou ao terreno da crônica instigado por Antonio Gonçalves Filho, então editor do “Caderno 2” do jornal. É aí que sua escrita de cronista se torna mais visceral, mais atada aos fenômenos da vida e da morte. Como lembra Gonçalves Filho, na apresentação da obra, Caio vinha “disposto a fazer da crônica uma narrativa explicitamente autobiográfica e escandalosamente literária”. Pequenas epifanias foi publicado originalmente em 1996, poucos meses depois da morte de Caio.
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FICHA TÉCNICA
Título: Pequenas epifanias
Páginas: 188
Formato: Digital – ebook (kindle)
Lançamento: 31/10/2014
Selo: Nova Fronteira
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Caio Fernando Abreu – retratos da subjetividade e a pós-modernidade