A questão do trabalho no contexto do Cinema Novo se impõe de forma natural, necessária: desde os vinte minutos de “Aruanda” (1960) de Linduarte Noronha, rodado numa comunidade quilombola, as mãos e a labuta estão em evidência. Outro curta, “Pedreira de São Diogo” de Leon Hirszman, incluído no projeto “Cinco vezes favela” (1962), aponta os dilemas e limitações dos trabalhadores: ou obedece a ordem espúria, ou está na rua.
Em “O desafio” (1965) de Paulo César Saraceni e “O bravo guerreiro” de Gustavo Dahl (1969), a política já ocupava o coração do debate – no filme de Dahl, a greve entra em questão. “São Paulo S/A” (1965) de Luís Sérgio Person trazia a situação do trabalhador precarizada num contexto de expansão urbana de êxodo rural. Sem falar nos filmes de Glauber, no qual a política também ditava a tônica.
A questão da luta dos direitos dos trabalhadores e a necessidade de greve ganham espessura, como não poderia ser diferente, no final dos anos 70, com as grandes greves de metalúrgicos do ABC paulista e o questionamento do papel dos sindicatos, no contexto da abertura política do país. Tanto a ficção como o documentário se ocupariam do assunto, cuja relevância e urgência permanecem.
Hirszman lança em 1981 “Eles não usam Black Tie”, adaptação de peça de Gianfrancesco Guarnieri. Aqui, uma família dividida entre o pai grevista e o filho, com tendências “fura-grevistas”. Numa coloração realista, é um filme-compêndio dos dilemas da classe trabalhadora, desde a caracterização dos personagens, sua vida na periferia, os problemas caseiros, até sua luta política, suas greves, o embate com a polícia, a presença dos alcaguetes, o despreparo de parte do movimento. Perdura o clima de insatisfação com o regime militar, em processo de decrepitude.
O assunto apareceria antes no documentário. Em 1979 surge “Braços cruzados, máquinas paradas”, de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo. Com imagens das greves de 78, ou seja, ainda no engatinhar do movimento, trata-se de um filme cujo mote está em denunciar o peleguismo, o sindicalismo oficial, e daí seu personagem principal e vilão da peça ser o lendário Joaquim Santos de Andrade, o Joaquinzão, liderança “oficial” do regime, figura truculenta e trapaceira. Ao acompanhar as eleições sindicais do ano e as evidências de fraude, o longa registra o processo impugnado e o começo de uma esperança para a luta dos grevistas.
“Greve!” (1979), de João Batista de Andrade, inaugura uma espécie de “trilogia das greves”, com “Linha de montagem” (1982) de Renato Tapajós e “ABC das greves”, de Hirszman, filmado no calor dos eventos no ABC, mas lançado somente em 1990, após a morte do diretor. Em pouco mais de meia hora, “Greve!” mostra a posse de Figueiredo e seu “compromisso com a democracia”, mas logo depois um operário se refere ao ABC como uma “praça de guerra”. Fica evidente o descompasso entre as promessas de abertura política e as dificuldades em realizá-la por parte do governo, e como as greves metalúrgicas das grandes montadoras foram o teste essencial para a redemocratização. A figura de Lula surge ao final, com menos espaço que nos dois outros filmes citados.
“ABC da greve”, que só surgiria após uma década, traz registros preciosos. Hirszman o rodou poucos anos depois do belo ciclo de curtas “Cantos do trabalho”, em que documenta a relação de trabalhadores rurais e a cantoria, com narração de Ferreira Gullar, e na época em que preparava “Eles não usam Black Tie”. Talvez não haja registro melhor do “calor” dos acontecimentos, em meio à grande greve liderada por Lula, que se projetava como figura principal e liderança incontestável. Assim como “Black Tie”, busca entender o operário em suas condições de vida, seu bairro, os barracos que habitam, suas origens migrantes. A presença feminina se faz forte no filme, bem como do apoio da Igreja ao movimento sindical nascente, além da presença de artistas e intelectuais.
“Linha de montagem” tem uma singularidade em relação aos anteriores: lançado apenas após 1980, apresenta não apenas a greve, mas também uma reflexão dos próprios personagens sobre os erros e acertos do movimento e sua importância. Lula ressalta a necessidade de organização partidária, e um grevista crítica a ainda escassa politização de boa parte dos grevistas. Se em “Greve!” os trabalhadores parecem excessivamente confiantes e até experientes, em “Linha de montagem” fica evidente que havia erros, contradições e sobretudo falta de experiência. No entanto, a avaliação geral é altamente positiva e o movimento é tido como vitorioso. Não faltam, claro, referências à prisão de Lula, e também à constante intimidação policial que vigorava naqueles dias. Aliás, a presença de Lula em “Greve!”, “Linha de montagem” e “ABC da greve”, possui tamanha eloquência que “Lula, o filho do Brasil” (2009), de Fábio Barreto, parecerá uma imitação barata, quase infantil. A realidade venceu a ficção, de goleada.
Quando Eduardo Coutinho realizou “Peões” (2004), seu objetivo era, partindo sobretudo do material de Tapajós e Hirszman, identificar os anônimos que surgiam nas multidões na Vila Euclides e demais palcos de gigantescas assembleias do ABC. Rodado na época em que Lula era franco favorito nas eleições presidenciais de 2002, é como se continuasse o trabalho dos documentários anteriores, dessa vez com duas décadas de reflexão e amadurecimento, no depoimento de “companheiros anônimos”, no auge das manifestações.
Encontraremos em “Passe livre” (1974), de Oswaldo Caldeira, uma importante reflexão sobre a relação entre trabalhador e empregador, a partir do caso do jogador de futebol Afonsinho, primeiro a obter o chamado passe livre no país. E se migrarmos para a Boca do Lixo paulistana, veremos que as referências à redemocratização estão às pencas. Em “Palácio de Vênus” (1980), de Ody Fraga, temos uma greve num bordel. Enfim, desnecessário citar a atualidade da reflexão sobre as relações de trabalho, seja no cinema ou em qualquer outro meio que incite o debate. Ainda mais neste contexto de reformas que tendem à precarização das condições de trabalho, afunilamento da aposentadoria, e até revisão do conceito de trabalho escravo, dentre outras estultices.
Abaixo, uma pequena relação de filmes que permitem que essa reflexão continue. Metade está no Youtube, a outra em sites como Making Off.
“São Paulo S/A” (1965), dir. Luís Sérgio Person. Os dilemas de uma cidade em expansão, sua transformação arquitetônica e social, seus novos atores e o papel dos trabalhadores.
“O desafio” (1965), dir. Paulo César Saraceni;
“Terra em transe” (1967), dir. Glauber Rocha;
“O bravo guerreiro” (1969), dir. Gustavo Dahl. Compõem a indispensável “Trilogia política” do Cinema Novo.
“Passe livre” (1974), dir. Oswaldo Caldeira. A partir da polêmica envolvendo o boleiro Afonsinho, há uma discussão sobre a liberdade do jogador de futebol e seus direitos, que pode ser transferida para as demais profissões.
“Cantos do trabalho” (1975/76). Cantoria de trabalhadores braçais da cana-de-açúcar, cacau e de mutirões para fazer casas de pau a pique. Clima poética e narração de Ferreira Gullar.
“A queda” (1976), dir. Ruy Guerra e Nelson Xavier. Discussão forte sobre o poder do capital, direitos trabalhistas e a miséria dos operários.
“Damas do prazer” (1978), dir. Antonio Meliande. Um olhar da Boca do Lixo sobre o cotidiano das prostitutas e seus dramas, assim como “Dama da zona” (1979) e “Palácio de Vênus” (1980), ambos de Ody Fraga.
“Braços cruzados, máquinas paradas” (1979), dir. Roberto Gervitz e Sérgio Toledo. Para conhecer Joaquinzão, ícone-mor do peleguismo e da truculência sindical após o golpe de 64, e o crescente encorajamento de um nascente movimento de luta por direitos dos trabalhadores.
“Greve!” (1979), dir. João Batista de Andrade;
“Linha de montagem” (1982), dir. Renato Tapajós;
“ABC da greve”, dir. Leon Hirszman. Trilogia essencial para entender as grandes greves dos no ABC paulista.
“O homem que virou suco” (1981), dir. João Batista de Andrade. Dispensa apresentações; manual para um operário nordestino não ser triturado em São Paulo pela miséria e pelo preconceito.
“Cabra marcado para morrer” (1984), dir. Eduardo Coutinho. Após duas décadas, Coutinho retorna ao local onde filmara os camponeses à época do golpe de 64, interessado nas Ligas Camponesas, e retoma as filmagens.
“Terra para Rose” (1987), dir. Tetê Moraes. Documentário sobre a ocupação da Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, nos anos 80, a repressão aos sem-terra e suas conquistas.
“Garotas do ABC” (2003), dir. Carlos Reichenbach. Olhar pra lá de reichenbiano sobre o cotidiano de um grupo de jovens tecelãs.
“Peões” (2004), dir. Eduardo Coutinho. O diretor colhe depoimentos de figuras que participaram das greves no ABC e que conviveram com Lula naquele período, mais de vinte anos depois.
“Que horas ela volta?” (2014), dir. Anna Muylaert. Reflexão essencial sobre as relações de trabalho a partir de uma doméstica e seu dia a dia numa família rica.
* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.
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