(Dedicado ao atual e aos futuros prefeitos do Distrito Federal)
1941, março, 22 — Mudamo-nos para o Posto 6. Casa grande, com vista para o mar e a montanha. Uma beleza. Os garotos se emporcalharam no quintal, mas um bom chuveiro lhes restituiu o aspecto primitivo. Todos adoraram este primeiro dia em Copacabana.
Abril, 1o — Acordei de madrugada, com um barulho fortíssimo. Era a água caindo na caixa do pavimento superior, como todas as noites, mas dessa vez parecia cachoeira. Para que tanta pressão? Não gosto de exageros.
Setembro, 7 — Aproveitando o feriado, meu primo da Tijuca veio com a família tomar banho de mar. Éramos quinze pessoas. Na volta, fizemos fila no banheiro, e minha patroa e eu, na extremidade, sobramos.
1942, janeiro, 10 — Estão construindo um edifício em frente. Acabou a vista da montanha.
Julho, 4 — Hóspedes em casa. Com água caindo dia sim dia não, sem força para subir, interditamos o banheiro de cima. Os meninos se esquecem, e tenho carregado baldes para remediar a situação. Que escada!
1943, dezembro, 25 — O diretor de Águas deu entrevista dizendo que água existe em abundância, mas a população é mais abundante ainda. “Todavia, dentro de seis meses a situação estará normalizada.” Feliz Natal!
1944, novembro, 15 — Faz um ano que tomei meu último banho de imersão, em homenagem à República. Os de chuveiro terminaram na Páscoa. Entramos no regime de cuia. Acabou a vista do mar: edifício aos fundos.
1945, fevereiro, 3 — O vizinho aconselhou-me a construir um depósito subterrâneo, para armazenar água. Arrasamos o quintal, e surgiu a soberba cisterna de dez mil litros, que custou cinco contos e levou sete dias a encher. Estamos felizes.
Outubro, 9 — Será o hidrômetro que não regula bem? Depois de cada vistoria, passa menos água. Retirei-o, melhorou um pouquinho.
18 — Multado por falta de hidrômetro. Ameaçaram-me de cortar a água.
1946, maio, 2 — Bobeei. Todo mundo na rua instalou bombas de sucção, sem me contar. Notei que não se carregavam mais baldes, enquanto todo o meu pessoal era mobilizado para pedir água às obras. À noite, ouvindo um ruído estranho em casa do vizinho, colei o ouvido ao muro, e percebi. Hoje amanheci na cidade para comprar uma eletrobomba: quatro contos e quinhentos. Instalação, um e quinhentos. Mas resolve!
Junho, 8 — Acidente na adutora. O diretor disse que em quarenta e oito horas o abastecimento estaria regularizado, passou-se uma semana, e não há esperança.
24 — Multado pela bomba. “O senhor não vê que está furtando água de seus semelhantes?”
1947, agosto, 6 — “O que lhe falta é um aparelho elevatório, com automático”, disse-me seu Narciso. “Boto-lhe um, e a água sobe como foguete.” Maravilha! Oito contos, mas é um conforto recuperar a banheira, usada como depósito de roupa suja.
1948, março, 15 — Inaugurada festivamente a nova adutora. A situação piorou. Assaltamos o registro da rua, fomos presos e autuados. Fiança. Processo.
Abril, 5 — A prefeitura iniciou o fornecimento de pipas a domicílio. É telefonar e esperar uma semana. Água de graça; vinte cruzeiros ao motorista. As mangueiras estão rotas, e o jato esguicha na sala. Foi-se o tapete de dez contos. Que pena, perder tanta água!
1949, janeiro, 2 — Seu Narciso orçou nova caixa-d’água, à flor da terra, para vinte mil litros. São doze contos e oitocentos. Acabo com o quintal, mas resolvo o problema da estocagem. Moramos numa caixa-d’água cercada de quartos.
1950, março, 30 — O prefeito adverte a população contra o desperdício d’água: “O carioca tem a doença da limpeza”.
1951, agosto, 1o — Fracassando a eletrobomba, instalei um superejetor, capaz de extrair água da rocha. Todos na rua fizeram o mesmo. Resultado: a água não apareceu. Custo, vinte contos. A pipa passou de cinquenta a cem cruzeiros, com preferência para o psd.
1953, novembro, 8 — Paguei com multa a conta de água da prefeitura.
1954, 5a-Feira Santa — Um advogado assassinou um public relations, no edifício ao lado. Um acusava o outro de subornar o porteiro para obter mais água.
1955, outubro, 8 — Votei em Ademar, que prometeu água em minha rua. Juscelino mora no Posto 5, e não se apiedará de nós. E agora?
1956, julho, 7 — Conselho de um engenheiro da prefeitura amigo de infância: “A solução, meu velho, é furar um poço no quintal. Não serve para beber, mas dá para a limpeza”. Abri (trinta mil cruzeiros): tenho água no subsolo! A vizinhança já fizera o mesmo. Quantos meses durará meu lençol subterrâneo?
— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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