Sumido há 30 anos, diário de Anita Malfatti é encontrado por acaso
– por Maurício Meireles e Silas Martí / Ilustrada Folha de S. Paulo
Na hora da abertura de sua primeira exposição, Anita Malfatti não estava no casarão da Líbero Badaró, no centro de São Paulo, onde exibiu uma série de quadros. Vinha correndo do Mappin com as etiquetas para enumerar as telas e os pregos para afixar os cartazes anunciando sua mostra de “estudos de pintura”.
A artista também se atrasou porque quis comprar sapatos novos nas Casas Clark. Quando os primeiros convidados chegavam ao vernissage mais comentado da cidade naquele 1914, ela ainda segurava os calçados na mão.
“Miss Malfatti” passou os primeiros instantes de sua estreia artística “encabulada”, sem os sapatos nos pés, falando sobre pintura moderna, a Europa e outras amenidades até que “mamãe” chegasse.
Esses detalhes estão todos num diário que a modernista escreveu narrando o nervoso dia a dia de seu début.
Desaparecido há quase três décadas, o caderno de capa preta com estudos de perspectiva, aulas de alemão, esboços de obras e relatos pessoais foi encontrado por acaso numa caixa no Instituto de Estudos Brasileiros da USP há duas semanas, no mesmo dia em que o Museu de Arte Moderna, no Ibirapuera, abria uma retrospectiva da artista.
“Esse é o único diário pessoal dela de que a gente tem notícia”, diz Elisabete Ribas, coordenadora do arquivo do IEB. “A parte mais confessional, mais memorialística dela está concentrada nesse caderno e nas cartas que ela trocou com o Mário de Andrade.”
Essa correspondência completa, aliás, será editada ainda este ano pela Edusp. Enquanto a obra não sai, o diário recém-encontrado já lança luz sobre uma outra Anita. Não a moça frágil, traumatizada por ataques de críticos ainda muito conservadores.
Na caligrafia tortuosa de seu caderno -Anita aprendeu a escrever com a mão esquerda por causa de uma atrofia de nascença na direita-, a artista se mostra vaidosa, cáustica e observadora.
Além de dar detalhes da decoração da galeria, com palmeiras e tapetes vermelhos, ela conta como perdeu manhãs inteiras escolhendo o modelito do dia. Também traça, em poucas linhas, o perfil da fauna de convidados da mostra, construindo um painel social da São Paulo do início do século passado.
“Ela é bem ácida, bem crítica”, diz o pesquisador Carlos Pires. “Descreve esse mundo artístico e também uma situação muito brasileira pós-escravidão, com esse paternalismo, a falta de estruturação de uma opinião autônoma.”
“O diário é um documento central para entender a formação do campo cultural na década de 1910, porque é escrito com bastante independência.”
Pires vinha pesquisando esse momento da história da arte no país. Fuçando as caixas que pertenceram à designer Emilie Chamie, que chegaram à USP há um ano mas ainda não foram catalogadas, ele encontrou o caderno de Anita, dado até agora como perdido.
Especialistas na modernista só sabiam de sua existência de modo indireto -alguns trechos, editados, aparecem na biografia da artista publicada em 1985 por Marta Rossetti, antiga diretora do IEB, morta há dez anos.
Não se sabe como o diário acabou nas mãos da designer, que morreu em 2000. “Esse documento foi procurado, mas tinha sumido”, diz Ribas. “A Emilie e a Marta estavam trabalhando juntas, mas morreram no meio do processo.”
VANGUARDAS
Um dos pontos fortes do caderno são os trechos que não entraram no livro de Rossetti, que, na opinião de pesquisadores atuais, atenuou os ataques de Anita ao mecenas José de Freitas Valle, todo-poderoso da cena artística da época e responsável pela indicação de pintores a uma cobiçada bolsa de estudos em Paris.
Em sua visita à mostra de 1914, Freitas Valle, que chegou rodeado de bajuladores, esnobou as pinturas da modernista. Elogiou os nus, que ela mesma julgava o ponto mais baixo da mostra, e atacou as obras mais admiradas por seus professores na Europa -ela acabara de voltar de Berlim e as obras da época chocaram uma São Paulo ainda ignorante da onda de vanguardas internacionais.
Na hora, Anita e a mãe tentaram defender as telas, mas no diário a artista o ironizou.
“Freitas Valle está tão engorgitado de injeções de vaidade que esses satélites lhe aplicam, que cairia das nuvens se percebesse que é incompetente”, escreveu. “Que pena tenho do artista que depende de Freitas Valle para seu pão.”
Nas últimas páginas do diário, Anita abandona os relatos para fazer esboços do que pode ser o início de sua fase nova-iorquina, já que ali as anotações misturam inglês e português. Depois de 1914, ela foi viver na metrópole americana, onde encontraria novos motivos para irritar a crítica.
Fonte: Ilustrada Folha de S. Paulo