Senta, pega uma xícara de café que lá vem a história. Recentemente o estado estridente e calamitoso do sistema prisional brasileiro voltou às manchetes dos jornais. O ano de 2017 mal começou e mais de 100 (cem) mortes foram registradas oficialmente nas instituições penais do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte. O cenário escandaloso não retrata apenas uma situação emergencial, mas um quadro descritivo de natureza estrutural e crônico do processo de gestão da superlotação penitenciária. Segundo dados de 2014 a taxa de ocupação é de 161%.
A inflação carcerária é denunciada e relatada oficialmente no Brasil desde 1828, período do Império. Segundo relatório da Comissão Inspetora da época a prisão de Alajube (Rio de Janeiro) já em 1835 chegou a apresentar problemas para alocar todos os sujeitos apenados: “embora a capacidade normal da prisão fosse de 192 prisioneiros, ela alojava então 390”[1]. A inércia política que gerencia as condições da superlotação carcerária brasileira não é exclusiva dos últimos tempos, como muito se imagina, há todo um conjunto de engrenagens, disposições, manobras e estratégias que se atualizam, se integram e se diferenciam no cenário da sociedade escravista brasileira desde o século XIX, marcada pelo começo da expansão cafeeira, até às denúncias frequentes do abandono do Presídio de Urso Branco (Maranhão) à Corte Interamericana de Direitos Humanos em meados de 2002.
A inércia na implementação de políticas públicas efetivas para combater e reduzir o superpovoamento do sistema prisional não existe apenas como alegoria, mas existe e age como poderoso vetor produtor de uma realidade estável que gerencia e regula o abandono de grupos específicos – basta lembrar que segundo diversos relatórios oficiais a população carcerária brasileira possui um perfil rigidamente demarcado: jovens (cerca de 56% deles são jovens com 18 a 29 anos), negros (representando mais de 60% do total de presos) e de baixa escolaridade (metade não frequentou ou possui ensino fundamental)[2].
Segundo dois grandes nomes do estudo da violência e controle social no Brasil, Gizlene Neder e Nilo Batista, o liberalismo à brasileira acontece com a legitimação da combinação do disciplinamento com suplício, e serve de garantia para uma organização social rígida e hierarquizada. Com efeito, o estado catastrófico do sistema prisional brasileiro, marcado principalmente pela superpopulação carcerária, não pode e não deve ser configurado como mera consequência de falha ou ineficiência da gestão do Estado, mas como uma condição de formação e de desenvolvimento do capitalismo e da sociedade brasileira sedimentada em grandes desigualdades duráveis. Nessa perspectiva, a superlotação carcerária e a tragédia contada e recontada do sistema prisional funciona como uma espécie de tecnologia política movida por uma aparente inércia que se estende ao longo dos anos no Brasil e sedimentam a (re) produção de uma determinada realidade ao agir de dentro/sobre indivíduos, no interior do campo econômico movimentando o sistema produtivo capitalista.
Assim, o conformismo político já não deve mais ser encarado como um escândalo, mas como uma escolha política. A estratégia de garantir a manutenção da superlotação no contexto nacional funciona como um convite ao oportunismo a projetos de políticas de privatização das instituições prisionais que chegam ao Brasil em meio à fúria neoliberal que procura (e almeja) tornar todos os setores da vida social organizados e atuantes segundo a lógica de mercado. É nesse contexto que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão subordinado ao Ministério da Justiça e encarregado da formulação de diretrizes para a área, propõe formalmente em janeiro de 1992, adoção das prisões privadas no Brasil. Em uma entrevista o próprio presidente do CNPCP afirmava que o objetivo era “converter as prisões em fábricas”[3].
A primeira experiência efetiva teve início em 1999 no Paraná e hoje temos cerca de 30 prisões privatizadas que se distribuem entre os estados de Santa Catarina, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Alagoas, Sergipe, Amazonas – sem contar as empresas privadas responsáveis pelo monitoramento eletrônico do sentenciado. Ressalte-se que uma única empresa, a Spacecom, tem contratos com secretarias de segurança de mais de oito estados o que lhe garante o monitoramento de 37.251 sentenciados e sentenciadas, segundo dados de 2015. Vale ressaltar que dentre todas as prisões incluídas no projeto (não oficial) de privatização do sistema penitenciário, destaca-se Ribeirão das Neves (Minas Gerais), fruto de uma Parceria Pública Privada (PPP) desde sua licitação e projeto. O slogan do complexo penitenciário, inaugurado em 2013, é “menor custo e maior eficiência”[4].
Nesse continnum histórico de discursos pró-privatização, os argumentos sempre se centraram, de forma resumida, na redução de encargos e gastos públicos, melhoria da qualidade de vida dos presos e da infraestrutura e incentivo à reinserção social. Esta propaganda da racionalização do sistema penitenciário, baseada na propaganda do gerencialismo[5], retórica da eficiência e da produtividade, é um velho conhecido fundado principalmente no exemplo estadunidense de privatização. Entretanto, o elemento, que não é novo, porém mais explorado na atualidade pelos defensores da política da privatização transcende ao mero discurso de mercado. O discurso está mais “sofisticado”, vez que vem se debruçando mais e mais sobre os Direitos Humanos, ou melhor, sobre a ressocialização. Se antes militantes de direitos humanos utilizavam (e utilizam) a ressocialização como tática (e às vezes como estratégia) para diminuir o nível de vulnerabilidade dos presos e presas frente ao poder punitivo, hoje ao evocar esse mesmo discurso, interesses privatistas o mobilizam como um dispositivo jurídico-político de poder apto a justificar e abrir portas para o processo de privatização dos presídios brasileiros.
A ressocialização aparece na Lei de Execuções Penais (7.210/84 – LEP) no artigo primeiro ao estabelecer que um dos objetivos da pena é proporcionar condições para a harmônica integração do condenado. Somando-se a essa descrição, nem um pouco esclarecedora, é possível observar o item 13 da Exposição de Motivos da LEP que alega a necessidade de ofertar meios pelos quais os sentenciados e as sentenciadas venham a ter participação construtiva na comunhão social. Este conteúdo universal da legislação com traços de “civilidade” e noções de “humanidade” no fundo não explica nada, e acaba por funcionar como uma engrenagem de poder teatralizada ou mascarada pelas sombras da normatividade da justiça penal.
A roupagem técnica e humanista da ressocialização, fortemente influenciado por teorias defensoras de direitos humanos, dissimula a clara e incisiva utilização deste dispositivo como estratégia de controle social destinada a determinadas classes sociais com o fim precípuo de manter a escala vertical da sociedade, pela via da disciplina social que se circunscreve em torno de interesses econômicos e políticos amplamente segmentados[6].
É exatamente nesse jogo de forças que a ressocialização se arregimenta com o discurso favorável ao projeto oportunista de privatização dos presídios brasileiros, quase como se fosse uma valsa. A grande arbitrariedade que subjaz a tecnologia jurídica-política da ressocialização evidencia-se primordialmente pela falta de definição do que seria a ação de regenerar alguém, bem como pela discricionariedade a ser utilizada para alcançar seus fins. O Projeto de Lei 513/2011 estabelece normas gerais para a parceria público-privada e apresenta como primeira diretriz para a contratação a ressocialização do preso e da presa, além de ter como uma de suas justificativas a “real possibilidade” de ressocialização no sistema, vez que se coloca trabalho a disposição da pessoa presa. Entretanto, é preciso ressaltar que esse trabalho supostamente apto a promover a ressocialização dos apenados e apenadas não é uma faculdade, é obrigatório no regime das PPPs. Nas palavras da referida PL em seu artigo 11, o concessionário tem “liberdade para explorar o trabalho dos presos, assim como utilizar ambientes do estabelecimento penal para a comercialização de produtos e serviços oriundos desse trabalho, e dos lucros advindos será deduzida a remuneração devida”. Vou repetir, pois talvez não tenha ficado óbvio: “liberdade para explorar o trabalho do preso”. O que é isso? Escravidão a olhos vistos? Lembrando que o trabalho do preso não está sujeito ao regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e não gera relação de emprego – sem qualquer reconhecimento do vínculo empregatício ainda que presentes os elementos do contrato de trabalho como pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade, não tendo direito a férias, 13º salário e outros benefícios concedidos ao trabalhador livre.
O trabalho do preso e da presa que sai até 54% mais barato do que trabalhadores e trabalhadoras não presos assalariados são as bases da engrenagem da ressocialização do projeto de privatização dos presídios. Segundo Laurindo Minhoto[7], a exploração da mão de obra cativa vem do fato de que os presos e presas se tornam uma espécie de consumidores cativos dos produtos vendidos pela indústria da segurança e da infraestrutura necessária a construção de complexos penitenciários. O que é produzido dentro das instituições prisionais apresenta preços certamente mais competitivos, o que cria um mercado que alimenta a própria infraestrutura da unidade. A capa dos coletes à prova de balas que os funcionários do GPA usam é fabricada ali dentro mesmo, a módicos preços, realizados por um preso ou presa que custa menos da metade de um trabalhador comum a seu empregador.
Assim, é preciso ter atenção aos jogos de forças que se colocam à nossa frente. O projeto da privatização dos presídios brasileiros hoje orquestra um discurso para além de elementos específicos do mercado como, por exemplo, eficiência, gerencialismo, risco e produtividade. Hoje o discurso arregimenta também elementos da luta dos chamados Direitos Humanos. E veja bem, essa dança não é propriamente uma novidade. Menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e ‘humanidade’. O suposto afrouxamento da severidade penal no decorrer da história dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Como ensina Foucault, em Vigiar e Punir: o nascimento da prisão (1975), o modelo prisional ao suplantar a lógica dos suplícios na verdade apenas promoveu novo tipo de funcionamento dos mecanismos punitivos, deslocou-se apenas o objeto da ação punitiva. O suplício do corpo foi sofisticado para intervenções profundas sobre o coração, intelecto, vontade e disposições.
A provocação que pretendo ao desemaranhar as linhas do dispositivo da ressocialização não é fazer uma cartilha contra ou à favor da ressocialização na atual realidade política prisional brasileira, nem muito menos numa ode ao niilismo. É apenas uma problematização voltada para as relações de forças e acontecimentos da atualidade sem nenhum apelo a valores transcendentais, mas pesado segundo critérios imanentes. Trata-se de um alerta para pensar a prática jurídica da ressocialização como uma tecnologia de dominação em disputa. Uma disputa em que os defensores da privatização dos presídios brasileiros estão saindo na dianteira ao ponto de angariar vozes antes discordantes pelo simples fato da “ressocialização” ser discursada como uma “possibilidade”, uma possibilidade de “salvação” pelas vias do mercado.
Termino reafirmando que a ressocialização se projeta como um dispositivo de poder a qual pertencemos e nele agimos. Trata-se um de uma tecnologia jurídica-política que deve ser explicada, vez que por si só não explica nada, como muitas vezes se quer acreditar. Nessa disputa pela “explicação” estão os militantes dos direitos dos presos e presas, os defensores da privatização dos presídios e agora também pelos que associam ressocialização com evangelização, disciplina e trabalho dos sentenciados e sentenciadas – projeto da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) -, mas este último é conversa para um outro dia, uma outra xícara de café.
* Julia Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada por filosofia.
Referências
[1] ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
[2] Cf. Juventudo.gov. Disponível no link. Acessado em: 22/1/2017
[3] Gazeta Mercantil, Fleury vai anunciar privatização de presídios. p.35
[4] Vide in: apublica.org. Disponível no link. Acessado em: 22/1/2017
[5] Dieter, Maurício Stegemann. Política Criminal Atuarial: A criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
[6] GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdde no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
[7] Vide in: apublica.org. Disponível no link. Acessado em: 22/1/2017
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