– por Luiz Bueno*
Em meu artigo anterior, mencionei apenas de passagem que a nossa sociedade transformou a felicidade em uma obrigação. Esta é uma afirmação que carrega muito significado e exige uma melhor elaboração.
A ideia de felicidade, na antiguidade grega, está expressa no termo que a ela se refere: eudaimonia. Essa palavra, que costumeiramente é traduzida por felicidade, tem sua raiz na ideia de sermos conduzidos ou guiados por um bom espírito ou mesmo de se estar possuído por este bom espírito. Mas, diferentemente do que possa parecer à nossa mente cristianizada, trata-se aqui de um estado de espírito, não da estada de um espírito. Significa antes o gozo ou o desfrute de um bem, ou melhor, não de um bem, mas “do” bem. Um bem que se relaciona com o espírito no sentido de ser primordialmente uma atividade contemplativa relacionada a algum fim último.
Sendo assim, se a felicidade é entendida como a posse ou o desfrute de um bem, daí decorre que se pode dizer que ela define uma ética eudemonista, que quer dizer que a felicidade é alcançada na medida mesma em que se alcança o bem desejado. Se a felicidade e o bem são inseparáveis, então a felicidade será a recompensa de uma vida vivida em função da virtude. Para Platão, como para Aristóteles, a felicidade não se confunde com o hedonismo, pois, mesmo ressalvadas as grandes diferenças entre as filosofias de um e de outro, para ambos a felicidade pode ser alcançada somente mediante o pleno uso da capacidade racional do homem, pois isto é o que lhe garantirá o controle dos apetites e desejos humanos. Tal controle permite que se direcione esses desejos e apetites para atividades que assegurem o desenvolvimento da plena potencialidade humana.
Essas noções foram, em certa medida, assimiladas pela tradição cristã, no sentido de que a possível felicidade dependeria da beatitude. Mas, a beatitude presente somente produziria seu resultado no futuro, a ser vivido em um novo mundo, uma nova terra, para além da existência nesta condição humana atual.
Dessa forma, a preocupação com o presente foi, em grande medida no pensamento cristão, direcionada a entender a condição presente de uma criatura cuja existência é fruto de um erro primordial, cuja condição ontológica é precária e cuja experiência inescapável é o sofrimento no âmbito temporal. Dedicar-se à felicidade presente seria uma forma de negar a promessa da vida futura a ser vivida na presença do Criador. A busca da felicidade na presente existência era, em si mesma, uma atividade manchada pelo pecado, isto é, pelo desvio da meta, do télos (fim) divino para o mundo e para o homem. A condição humana era vista e entendida em sua situação de insuficiência ontológica, isto é, de um ser que não se põe e não se sustenta a si mesmo na existência. E por isso mesmo, um ser que deve encarar o sofrimento como inerente à sua condição de criatura.
Mas, sabemos que a modernidade subverteu estas noções clássicas. No plano filosófico, emerge no Renascimento a ideia de que o Homem possui uma dignidade própria, derivada unicamente do fato de sua existência e de sua infinita capacidade de se melhorar, de se aperfeiçoar. No campo político, a ideia de que haveria uma ordem moral prévia que impõe a obediência a princípios derivados de leis naturais ou universais é substituída, por exemplo, por Thomas Hobbes com sua ideia que o Homem é portador de um “direito” natural, que é o de lutar pela sua própria sobrevivência. A este direito de viver e continuar vivendo, o utilitarismo inglês acrescentará a ideia que o direito não é apenas de subsistir, mas que o homem possui ainda outros direitos, sendo um deles o da própria felicidade. Isto fica bem exemplificado pelo que está escrito na constituição dos Estados Unidos da América que diz que todo homem tem o direito de buscar a felicidade.
Vimos que, na antiguidade e no período medieval, a virtude e a beatitude se impunham ao homem como leis naturais com as quais ele não teria relação melhor que a de obediência. Mas, quando a modernidade coloca no centro do mundo o homem, o indivíduo livre, dotado de autonomia racional e volitiva, ela passa a entender que a felicidade é algo digno de ser buscado e que se trata de um direito que todo ser humano possui pelo simples fato de ser humano.
Assim, a felicidade se instaura como um direito a que cada indivíduo humano fazia jus pelo simples fato de ser humano.
A felicidade, na modernidade, está associada à ideia de individualidade, de liberdade e racionalidade. Este indivíduo racional, livre, senhor de seu destino, poderá construir uma sociedade em moldes tais que ela servirá para assegurar a sua felicidade individual.
O indivíduo livre e racional, sendo o senhor de seu próprio destino, não tem mais nada que se interponha entre ele sua felicidade, que, agora, é tratada como um direito universal. Sendo o indivíduo autônomo, livre e racional, o seu destino está, agora, em suas mãos. Nada mais das estruturas antigas se interpõe entre ele e sua felicidade.
Mas se o seu destino passa a estar sob seu controle e a sua felicidade depende apenas de si próprio, uma condição não prevista agora se impõe. Se esse homem depende apenas de si mesmo para ser feliz, ele já não tem mais a quem recorrer se a sua felicidade não for alcançada. Não há mais ninguém além de si mesmo a quem atribuir a responsabilidade pelo seu infortúnio.
A modernidade lhe proporcionou a liberdade política, o pleno uso de sua razão e, ainda, com as novas formas econômicas que se desenvolveram na forma da industrialização e da sociedade de mercado, ele agora tem a possibilidade da aquisição dos elementos materiais que ele julgar necessários ao seu bem-estar próprio.
O filósofo francês Gilles Lipovetsky aponta esta nova fase da vida humana em tempos de modernidade radicalizada como sendo a época em que a busca da felicidade individual se converte em um direito e constitui, assim, a nova ordem moral vigente em nossas sociedades. O fundamento da ação correta passa a ser a busca do bem-estar individual, da felicidade subjetiva. Desde os anos 60, diz Lipovetsky em A Sociedade Pós-Moralista, esta nova ordem moral que se instaura afirma o direito de cada indivíduo de agir em prol de sua felicidade pessoal. Suas ações são cada vez menos pautadas pelo bem comum e cada vez mais pelo seu bem pessoal. O individualismo se apresenta em todo o seu risco nesta perspectiva.
Outro pensador francês, Pascal Bruckner, pensa que a situação é ainda mais complexa e radical. Essa nova ordem moral que justifica as ações individualistas em busca da felicidade pessoal transforma aquele novo “direito”, o da felicidade individual, em uma obrigação. O indivíduo, que agora -aparentemente- tem todas as condições políticas, sociais e materiais, vê-se em uma sociedade que considera a felicidade presente o bem absoluto e que qualquer indivíduo que não apresente os sinais externos dessa felicidade pode se considerar alguém fora do âmbito do socialmente aceito. O sofrimento, a frustração, o erro, a dor, a tristeza, não são mais admitidos no campo das expressões sociais. Cada vez menos somos ensinados a lidar com esses sentimentos e experiências e somos cobrados a alcançar a felicidade — e expressá-la. Não é para menos que certas redes sociais têm como sua principal característica a criação de um ambiente virtual em que os indivíduos se apresentam em imagens de felicidade, saúde, beleza, prazer e sucesso. As imagens de sofrimento e tristeza não são bem aceitas e nem obtém o sinal de que agradaram a quem as viu (as “curtidas”). Quaisquer sinais de tristeza e frustração são ocultados. O que se exige é a imagem do sucesso e do bem-estar.
Mas, o que fazer quando a felicidade não está? A quem recorrer? Onde encontrar os recursos emocionais e culturais para enfrentar estas situações? Como cada indivíduo lida com estas adversidades se a sociedade em que vive busca os sinais de felicidade e não mais o ensina a lidar com a tristeza? Uma sociedade que terceirizou a lida com as situações de doença e dor, entregando o trato delas a instituições técnicas, que extirpou as práticas e os ritos sociais que capacitavam o indivíduo a processar a dor, a perda, a tristeza. Como lidar, por exemplo, com o luto, com a senilidade, ou mesmo com a doença, com o desemprego? A maioria das pessoas não quer e talvez tampouco saiba como lidar com intelectual e emocionalmente com estas situações.
Bruckner aponta, em seu livro A Euforia Perpétua, para esta grande inversão que produzimos e que se transformou numa das maiores armadilhas que criamos para nós mesmos: o fazer da felicidade primeiramente um direito e, agora, para além disso, em um dever, uma obrigação.
Quem pode dar conta desta exigência? Quem pode assegurar que esse direito seja desfrutado por todos? É isso possível? Eis as questões que saltam aos olhos quando vemos os efeitos psíquicos e sociais que esta exigência tem provocado nas pessoas. O que podemos observar é que muitos indivíduos, ao se descobrirem incapazes ou pouco preparados para enfrentar estas adversidades, recorrem ao único recurso que lhes resta: os comprimidos. Se não somos capazes de resolver os problemas causados pela obrigação de sermos felizes, que então diminuamos farmacologicamente a consciência deles. Ao olhar nos olhos dos nossos jovens, vemos que eles refletem e revelam, pesadamente, esta realidade atual.
*Luiz Bueno é Bacharel e Mestre em Filosofia e Doutor em Ciências da Religião. Professor de Filosofia na FAAP. É autor do livro “Gertrude Himmelfarb: Modernidade, Iluminismo e as Virtudes Sociais”, publicado pela É Realizações.
**Originalmente publicado no Estado da Arte, em 3 Julho 2018.
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