– por Paula Sperb, colaboração para a Folha Ilustrada, 11.2.2017.
“Garoto de recados dos comunistas.” Assim o escritor Jorge Amado é classificado em um documento confidencial da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos, no início dos anos 1950.
O escritor brasileiro era um dos intelectuais monitorados pelo espiões norte-americanos por causa da ligação com o comunismo. São ao menos 27 os relatórios que mencionam o romancista brasileiro.
Qualquer indício de simpatia aos comunistas importava aos EUA durante a Guerra Fria (1945-1981). No clima de arapongagem, os passos do baiano passaram a ser seguidos.
Jorge Amado não podia nem mesmo entrar em território norte-americano. A lei de imigração passou a barrar os vistos de intelectuais “suspeitos” a partir de 1952.
O autor de “Seara Vermelha” (1946) não estava só. O escritor colombiano Gabriel García Márquez, o mexicano Carlos Fuentes, o argentino Julio Cortázar e o poeta chileno Pablo Neruda também tiveram o ingresso impedido.
Antes secretos, os documentos que mostram o interesse dos americanos pelo baiano foram liberados ao público pela CIA no final de 2016. Cerca de 11,1 mil papéis falam sobre o Brasil.
Amado também foi o escritor mais espionado em seu próprio país, de 1936 (sua primeira prisão) até 1985 (fim da ditadura), como mostrou reportagem da Folha, em 2001, ano em que morreu, aos 88.
A espionagem do governo brasileiro iniciou em 1936, quando ele foi preso pela primeira vez no Rio, acusado de participar do levante contra Getúlio Vargas. Documentos mostram que ele foi vigiado no Brasil até, ao menos, 1985, no final da ditadura militar.
Seus livros chegaram a ser queimados em praça pública por ordem de Vargas.
Na década de 1950, ele passou a figurar assiduamente nos relatórios da CIA, aparecendo quase sempre ao lado do amigo Neruda.
Ambos atuavam no Conselho Mundial da Paz, órgão criado por intelectuais em 1949, que combatia o uso de armas nucleares, como as lançadas pelos EUA no Japão, e promovia eventos culturais, como seminários e premiações.
Foi durante um congresso organizado por Amado e Neruda em Santiago, em março de 1953, que o brasileiro recebeu a notícia de que a saúde de seu amigo Graciliano Ramos havia piorado.
Ele, que havia sido convocado a deixar o Chile de imediato para comparecer ao enterro de Stálin, optou por ir ao Rio visitar Graciliano, que morreu em seguida.
“É ridículo para qualquer um acreditar que os líderes comunistas estejam interessados em intercâmbio cultural”, dizia um dos papéis sobre as atividades dos amigos.
PROPAGANDA
Em um memorando de 1948, Amado é acusado de fazer “propaganda comunista” depois que “os russos detalharam o programa” a ser divulgado no Brasil.
O escritor foi deputado federal do PCB (Partido Comunista Brasileiro), eleito por São Paulo, e participou da Constituinte de 1946. Quando o PCB entrou na ilegalidade, em 1948, o autor se exilou em Paris.
Outro documento, de 1949, denuncia a distribuição de “literatura comunista” aos professores uruguaios e afirma que Amado teria negociado a impressão de panfletos na cidade fronteiriça de Rivera, no Rio Grande do Sul.
A incongruência de datas mostra que nem sempre os espiões acertavam, seguindo rumores que haviam escutado.
Eles, aliás, não se restringiam à espionagem política. Um relatório reconhece o talento literário de Amado, mas não perdoa o viés ideológico.
“O que aconteceu com a arte de Jorge Amado desde que ele se tornou um comunista? Um escritor de grande talento e prestígio… agora que eles [comunistas] o têm, claro, sufocaram sua criatividade e liberdade e fizeram dele um garoto de recados”, diz o texto.
“Quando eles permitem que ele tenha tempo para escrever, ele se torna confuso, atrapalhado, com histórias mal construídas”, comenta o espião feito crítico.
CRÍTICA DE FATO
Coincidência ou não, a crítica da CIA é muito semelhante à que lhe opunha uma parcela da crítica literária brasileira naquela época.
A pesquisadora Márcia Rios, da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), relembra que, quando “O Mundo da Paz” foi lançado, em 1951, o escritor Oswald de Andrade não poupou Amado.
“Procurei com tristeza nestas páginas aquele menino de gênio que 20 anos atrás aparecia no Rio com uma obra- prima na mão –”Jubiabá”. Está seco e reduzido a um alto-falante que mecanicamente repete as lições do DIP vermelho do Kremlin”, afirmou.
Os leitores, porém, não reagiam da mesma maneira. Márcia Rios pesquisou as cartas que o escritor recebia de seus fãs. “Não encontrei censura alguma pelo fato de Jorge Amado ser comunista”, comenta a professora.
O brasileiro passou a ser investigado pela CIA três anos após publicar “Terras do sem Fim”, em 1945, seu primeiro livro nos Estados Unidos por uma editora de prestígio, a Alfred Knopf.
A perseguição ao escritor também explica por que seu segundo livro nos EUA foi publicado apenas 17 anos mais tarde. O sucesso, porém, foi estrondoso. “Gabriela, Cravo e Canela” ficou um ano na lista dos mais vendidos do jornal “The New York Times”.
RUIM PARA OS EUA…
Se o engajamento prejudicou Amado nos Estados Unidos, facilitou sua recepção na antiga União Soviética, segundo Marina Darmaros, doutoranda na Universidade de São Paulo (USP). “Nem por isso, porém, suas obras estavam livres de cortes e alterações de cunho ideológico.”
A pesquisadora constatou que a tradução de “Gabriela” teve alterações tanto em trechos sensuais como em referências a Lênin, por exemplo.
Ela teve acesso a estereogramas (mensagens secretas) em que intelectuais soviéticos discutiam se deveriam ou não publicar “Gabriela”.
O debate sobre a publicação foi motivado pelo fato de Amado ter se mostrado arrependido da militância após a divulgação do Relatório Khrushchov (1956), que denunciou os crimes de Stálin.
Ainda assim, “Gabriela” acabou saindo na URSS – em 1961, um ano antes da publicação nos Estados Unidos.
Fonte: Folha ilustrada
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