SOCIEDADE

Dois séculos de história e literatura queimados na Cidade do Cabo

por Noor Mahtani / El País*

No domingo, 18, um incêndio que começou na no sopé da Table Mountain, na África do Sul, ficou fora de controle e, impulsionado por fortes ventos, atingiu o campus da Universidade da Cidade do Cabo. O incêndio arrasou a Biblioteca Jagger, que abriga uma coleção de obras africanas única no mundo. Entre elas, milhares de manuscritos e mapas, estudos da época do ‘apartheid’, teses de doutorado e pinturas indígenas da flora e fauna do século XIX.

São mais de 65.000 volumes, 26.000 folhetos e cartazes, 3.000 filmes africanos, 20.000 peças audiovisuais, milhares de manuscritos e até arquivos sonoros… Grande parte da coleção da Biblioteca Jagger, no coração da Universidade da Cidade do Cabo (UCT), na África do Sul, foi reduzida a cinzas e outra grande seleção ficou danificada e em risco pelo incêndio florestal ocorrido no fim de semana em Table Mountain, a área montanhosa do parque nacional homônimo.

Acadêmicos e historiadores do continente africano estão de luto, pois se perdeu, como lamentou a diretora executiva da biblioteca, Ujala Satgoor, uma “coleção africana única no mundo”. Embora tenha preferido ser cautelosa e esperar para ver que material pode ser resgatado, ela reconheceu, em uma entrevista à Reuters, que a perda foi “devastadora”: “Sinto uma tristeza profunda porque algumas coisas são insubstituíveis”. Entre os escombros, manuscritos e mapas, cartazes históricos, estudos contra o apartheid, teses de doutorado e até aquarelas da flora e fauna desde 1881, pintadas por indígenas, são hoje cinzas.

Nombuso Shabalala, membro da equipe da UCT, também não se atreveu a fazer uma estimativa dos danos e das peças que não poderão ser recuperadas. Mas lembrou do forte vento que atiçou o fogo e como pelo menos quatro salas da universidade eram consumidas pelas chamas. “É uma pena que a mais afetada seja a que guardava esse tesouro tão especial”, lamentou por e-mail. Ele disse que tanto as autoridades locais como as da universidade se reuniram na terça-feira para estudar as perdas e preparar um plano de reconstrução.

Mamokgethi Phakeng, a vice-reitora, procurou ser positiva em um comunicado publicado na página oficial da UCT: “Não podemos substituir os tesouros que perdemos, mas podemos criar novos. Cada um de nós pode dar um novo sentido ao propósito desta enorme tragédia”. Nas redes sociais, centenas de pessoas manifestaram seu apoio com a hashtag #UCTWillRiseAgain (“a UCT se erguerá novamente”).

Moradores e bombeiros voluntários lutam para conter um incêndio, atiçado por fortes ventos, nas encostas da Table Mountain, na Cidade do Cabo.MIKE HUTCHINGS / REUTERS

Tudo começou com um incêndio florestal ―que as autoridades acreditam que foi provocado― no domingo na Table Mountain, a Montanha da Mesa, um chapadão que domina a Cidade do Cabo, no extremo sul da África do Sul, e pouco a pouco foi ganhando terreno na cidade, informaram fontes oficiais do emblemático Parque Natural. As chamas danificaram parcialmente o restaurante vizinho e alcançaram vários edifícios da Universidade da Cidade do Cabo, fundada em 1829.

Foi afetada particularmente a Biblioteca Jagger, que abrigava mais de 1.300 coleções e cerca de 85.000 livros sobre a história da África ―obras inéditas, manuscritos praticamente sem cópias e livros sobre a independência de vários países do continente. “Perdemos uma herança incalculável”, lamentou na terça-feira Somadoda Fikeni, historiador e analista político, em uma entrevista ao canal Newzroom Afrika. “O fogo minou o esforço da África para documentar sua história.” Satgoor alertou que devido ao uso de toneladas de água para apagar o fogo, os dois andares no subsolo, que também abrigam inúmeras obras, “estão em perigo”.

Ainda sem mencionar as perdas causadas pelo incêndio (até agora não avaliadas), o site da biblioteca divulga as últimas publicações e novidades. Uma delas, um guia para seguir a Coleção Especial de Manuscritos, que conta “com material de pesquisa original relacionado com a história política, social, cultural e econômica da África do Sul”. Esses arquivos, assinala, cobrem uma ampla gama de áreas (arte, música, educação, literatura e linguagem, botânica, política e arquitetura) e incluem registros em vários formatos. Entre eles há “documentos privados de personalidades, que são um registro importante da história social do sul da África, e outros de comunidades não representadas habitualmente em arquivos”. Além de material corporativo de ONGs, empresas e instituições; trabalhos pessoais e de pesquisa dos acadêmicos da UCT; coleções de destacados arquitetos sul-africanos; livros de registro de comunidades étnicas e religiosas; partituras manuscritas de compositores sul-africanos; registros de sindicatos; arquivos de som com a história oral da África do Sul e outros materiais de movimentos sociais, históricos e culturais.

“Por razões de segurança, o campus ficará fechado e não será permitido o acesso a ninguém, exceto aos serviços de emergência”, informou a UCT na terça-feira pelo Twitter, acrescentando que os 4.000 estudantes evacuados no domingo têm alimentos e a maioria foi realojada em hotéis.

As redes sociais têm sido a principal fonte de comunicação entre as autoridades e outros afetados. Muitos moradores e acadêmicos lamentam que esse incêndio não tenha a mesma repercussão que o de abril de 2019 na Catedral de Notre-Dame, em Paris. “Lembram-se da tristeza quando Notre-Dame se incendiou? Isto [o incêndio na biblioteca] ocorre e é ignorado porque acontece em países que não são de brancos nem europeus”, diz um tuíte. O jornalista John Simpson critica em outro: “Imaginem a repercussão de uma notícia dessas se tivesse ocorrido na Califórnia”.

Apesar da pouca repercussão na mídia, um grupo de acadêmicos já iniciou, entre especialistas e professores internacionais que contribuíram para a coleção da biblioteca ou a usaram em seus estudos e pesquisas, uma campanha para recuperar qualquer fotocópia ou fotografia de algum material da UCT que possam ter em mãos.

O incêndio, que provocou queimaduras em cinco bombeiros, não deixou nenhum morto, informou a Prefeitura da Cidade do Cabo. O prefeito Dan Plato descreveu o fogo e a destruição, até agora, de 400 hectares de vegetação no parque nacional de Table Mountain como um dos maiores e devastadores incêndios da história recente da cidade. Mais de 250 bombeiros trabalharam desde domingo para extingui-lo.

Bombeiros tentam extinguir o fogo no domingo.NIC BOTHMA / EFE

“Continuamos vigiando [a situação] porque há possibilidade de que surjam novos focos. Isso não significa que o incêndio tenha acabado”, afirmou na terça-feira ao portal de informações News24 a bombeira Arlene Wehr, responsável pelo serviço de operações de resgate na Cidade do Cabo. Segundo autoridades locais, moradores do subúrbio de Vredehoek foram evacuados de madrugada como medida de “precaução” depois que as chamas se estenderam em direção a essa área residencial a partir do Pico do Diabo, um cume característico da Table Mountain.

O gerente de combate a incêndios do parque, Philip Prins, disse que o fogo pode ter sido provocado. Um homem na faixa dos 30 anos foi detido na noite de domingo por suspeita de envolvimento, informou o membro do Conselho Municipal da Cidade do Cabo responsável pela Segurança, Jean-Pierre Smith, que reiterou que as investigações continuam. Em declarações à rádio Cape Talk, Smith disse que o homem − detido perto do local do incêndio − teria confessado à polícia que provocou o fogo. “Agora isso será alvo de um inquérito criminal e, se ele for condenado, haverá consequências substanciais para ele”, acrescentou o funcionário, encorajando possíveis testemunhas a prestar depoimento.

Fonte: El País Brasil.

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