ENTREVISTAS

Eduardo Giannetti: “O Brasil ideal não é um país do hemisfério norte. Temos que valorizar nosso dom de celebrar a vida”

Economista, que lançou o livro ‘Trópicos Utópicos’, diz que a sensação de fracasso do país é passageira. Defende que é possível se desenvolver sem abrir mão dos valores e particularidades nacionais
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“Temos que buscar um caminho que é nosso e que reflete os nossos valores”
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Poucos intelectuais brasileiros compatibilizam duas facetas que, ao menos para algumas pessoas, parecem ser antagônicas: a de um economista liberal atento à realidade política e econômica e a de um filósofo defensor das particularidades brasileiras. Eduardo Giannetti da Fonseca (Belo Horizonte, 1957) é um deles. Aos 59 anos e após uma etapa como assessor econômico da ex-senadora Marina Silva (Rede) durante a campanha presidencial de 2014, acaba de lançar o livro Trópicos Utópicos (Companhia das Letras). A obra, dividida em quatro partes e composta por aforismos, critica vários aspectos da vida humana e do ocidente em particular (economia, política, meio ambiente, religião, entre outros) para em sua parte final idealizar um Brasil que se apresenta como alternativa aos modelos já conhecidos; uma nação que percorre o caminho rumo ao desenvolvimento pautada pelos seus próprios valores.

O tema é um dos preferidos deste economista, formado em Cambridge e professor do Insper, há algumas décadas. Em uma entrevista a Caetano Veloso no programa Roda Viva em 1996, Giannetti perguntou ao cantor baiano sobre a possibilidade de o Brasil chegar a “uma ordem civilizada” ao mesmo tempo em que preserva suas características culturais mais marcantes, como a “alegria de viver”, e levantou a hipótese de que a civilização “entristece a alma”. Na última semana, abriu a porta de sua casa ao El País para ele mesmo, sempre de maneira didática e ao mesmo tempo assertiva, responder esta e outras perguntas.

Mudou de ideia? Ou ainda acha que nossa alma pode se entristecer à medida que o Brasil alcança o desenvolvimento?
Continuo achando que é uma ameaça. A civilização é acompanhada de um crescente mal-estar do ser humano consigo. Naquela época estava com a obra O Mal-estar na Civilização, de Freud, na cabeça. E pensava: a utopia brasileira é a civilização sem o mal-estar. Mas a essa utopia corresponde uma distopia, que é o mal-estar sem a civilização. Quando eu estou muito melancólico em relação ao Brasil, acho que podemos ter o mal-estar do civilizado sem ter alcançado o padrão de convivência, de conforto e de segurança que a civilização permite.

Acha então que corremos este risco?
Acho que sim, mas ninguém pode dizer que tem certeza do que será. O que estou fazendo no livro é me perguntando se existe um sonho brasileiro que nos une. E tentando elaborar com base na história do pensamento e da experiência brasileira o que poderia ser esse sonho, à luz de uma crítica ao ocidente, que está em crise. Se não exercitarmos a faculdade do sonho coletivo, não temos nenhuma chance. E me chama atenção que a tradição brasileira de intérpretes do Brasil é muito retrospectiva, sempre buscando nossa identidade no passado, na história, na formação, nas raízes… E um país que sempre se imaginou do futuro exercitou muito pouco a sua faculdade utópica e a sua visão de futuro compartilhado. Tento fazer esse movimento no livro. Se tudo der certo, o que é o Brasil? Um Estado do sul dos EUA, do sul da Europa… Ou é alguma coisa original na qual se misturaram elementos ocidentais com elementos de culturas não-ocidentais de forma única, com a possibilidade de ter algo a dizer ao mundo?

A Inglaterra da época do Renascimento tinha toda uma linhagem de utopistas. A de Thomas More está fazendo 500 anos. Nos EUA, o sonho americano foi algo muito elaborado coletivamente, embora a expressão seja recente, da época da grande depressão. O Brasil quase não fez isso ainda. Um dos que mais fez este movimento, mas de uma forma muito desorganizada e muito anárquica, foi o Oswald de Andrade.

E na música?
Acho que o tropicalismo é herdeiro do modernismo oswaldiano neste aspecto. E o Caetano Veloso, na obra dele e no que ele representa na cultura brasileira, é a corporificação desta junção: de um aprimoramento de altíssima qualidade, sofisticação e civilização com uma pulsão e vitalidade, uma espontaneidade e alegria que é caracteristicamente brasileira. Costumo dizer que é a vitalidade Iorubá filtrada pela ternura portuguesa.

Você evoca os conceitos de “nação” e “cultura nacional”. Mas num mundo globalizado, onde barreiras caem e tudo tende a ser mais homogêneo, qual a importância desse debate? Tem sentido?
Tem todo o sentido do mundo. O ocidente está vivendo uma crise de grandes proporções. O problema de ordem ética (a incapacidade do crescimento econômico e do avanço tecnológico de propiciar ao ser humano vidas mais plenas e felizes) se junta ao problema objetivo dos limites impostos pela natureza. Há um padrão de consumo e de crescimento que não são universalizáveis. O ocidente está em um beco sem saída. Neste momento, é muito importante para a humanidade ter alternativas. E o Brasil é uma delas. Gostaria de estar em um mundo onde os variantes a esse padrão iluminista ocidental são inúmeros. Não se trata de que nosso modelo deva ser copiado. O que é bom pra nós é o nosso bem, e o nosso bem não é simplesmente repetir o que faliu.

Você traz a utopia para o debate num momento em que, após parecer que vivíamos o sonho de construir um país mais justo, parece que caímos do cavalo. Por que falar de utopia justo agora?
Não podemos confundir o circunstancial da conjuntura com o permanente da cultura. Já vi essa ciclotimia na vida brasileira muitas vezes. Na segunda metade dos anos 50, o Brasil parecia destinado a um futuro glorioso: vivíamos um grande momento de florescimento cultural, da arquitetura moderna, do cinema novo, a construção de Brasília, a industrialização, a vitória na Copa do Mundo… E deu tudo errado: uma crise fiscal, um presidente desequilibrado que renuncia, um impasse constitucional, inflação muito alta e finalmente o golpe militar. Um retrocesso de grandes proporções à luz do que se anunciava. Depois tivemos a época em que regime militar foi hegemônico culturalmente. Foi a época que o milagre econômico, o sonho (muito grotesco) do Brasil como potência nuclear, a forte indústria siderúrgica, a Transamazônica e o crescimento de dois dígitos pareciam empolgar a nação brasileira. Era o momento do “ame-o ou deixe-o”, do “ninguém segura esse país”. Como terminou esse delírio de grandeza? Com uma crise da dívida externa e uma década 80 perdida. E agora vivemos um terceiro exemplo disso após a Segunda Guerra Mundial: o país estava em um momento que parecia esplendoroso, crescendo 4% ao ano entre 2003 e 2010, preservando um equilibro macroeconômico, incluindo milhões de brasileiros ao mercado de consumo e diminuindo a desigualdade, conseguindo o direito de sediar a Copa e as Olimpíadas, tudo parecendo o melhor dos mundos… E de repente desabou. O desastre de política econômica do primeiro mandato da Dilma e o descalabro de corrupção que tomou conta das estatais, do governo, das mais diferentes instâncias do poder. E agora estamos em plena ressaca. Não éramos tão bons quanto nos imaginamos antes, mas não somos tão ruins quanto acreditamos hoje.

Eduardo Giannetti, durante a entrevista. foto: Luís Simione/El País

Parece que alguma coisa se rompeu nos setores mais politizados da sociedade. Como recuperar uma agenda de Brasil com essa polarização que estamos assistindo?
Alguma coisa realmente se rompeu a partir da campanha de 2014. O grau de violência foi um trauma na vida pública brasileira. As feridas ainda estão abertas. Mas tenho certeza que o Brasil vai sair dessa crise maior do que entrou. Com a Lava Jato e tudo o que se está apurando, é muito importante que tudo apareça com clareza. O pior dos mundos é isso existir e ninguém saber ou aceitar que existe. E agora é incontornável. Tenho a esperança de que todo esse processo tenha um efeito pedagógico, e não só para o estamento politizado, mas para toda a sociedade. As pessoas se dão conta de que algo muito grave aconteceu num governo que prometeu algo que era completamente irreal e falso tendo em vista a situação que o país já se deparava.

É possível falar em um ideal brasileiro, em um sonho e projeto que nos une, com a fratura social imensa e interesses de classes tão divergentes?
Esse projeto não é algo que vai ser implantado. É algo que a sociedade constrói e ela se encontra nisso. Sem dúvida a precariedade da vida de milhões de brasileiros nos fragiliza e nos prejudica de maneira irreparável. E isso tem de ser enfrentado. Mas a redução da desigualdade não vai vir por um decreto. Temos de fazer uma grande reforma fiscal para direcionar os recursos do Estado brasileiro a quem realmente necessita deles para viver melhor. O Estado brasileiro arrecada hoje 35% do PIB, e tem um deficit nominal de 10%. Ou seja, 45% da renda brasileira transitam pelo setor público, e o Estado brasileiro não atende as necessidades mais elementares dos 20% mais pobres da população. Ou seja, ele foi capturado por setores da sociedade e do empresariado que não deveriam estar recebendo recursos. Temos que redirecionar esse Estado para que ele atenda de fato as necessidades de saneamento, saúde, educação e segurança da grande maioria de brasileiros.

São grandes grupos de interesses, lobbys muito poderosos. Temos condições políticas de enfrentá-los?
O Governo tem de criar. São grupos de interesse, mas eles não são a maioria. O Bolsa Família, o mais emblemático e importante programa de transferência de renda, representa apenas 0,5% do PIB. É a migalha que cai na mesa. E o Governo quando fala em ajuste fiscal, inclusive na época da Dilma, diz que vai ter que cortar do Bolsa Família. É espantoso que se faça chantagem diante de um programa que representa 0,5% do PIB num Estado pelo qual transitam 45% do PIB. Isso aí é um Estado patrimonialista: um Estado que foi capturado por setores da sociedade que vivem de transferência de renda e de caça às rendas que são intermediadas pelo setor público. Os beneficiários são grupos menores com interesses muito concentrados e focados. Os prejudicados por essa situação são difusos, não têm representação e estão dispersos na sociedade. Muitas vezes nem se dão conta do que de fato está acontecendo. Uma liderança política tem de mostrar com clareza a gravidade da situação fiscal de um Estado que agrava a péssima distribuição de renda.

Em uma passagem do livro você fala que a medição do PIB não capta todo o bem-estar que é possível. Mas ainda somos muito dependentes do crescimento do PIB para distribuir riqueza, não? Como construir uma alternativa tendo ainda uma questão material seríssima para resolver?
Há muitas coisas que pioram a nossa vida e aparecem numericamente no PIB como benéfico. Não só com questões ligadas ao meio ambiente. Por exemplo, se ganho pouco trabalhando com o que amo fazer, o PIB registra o pouco que eu ganho. Mas se eu passo a ganhar mais trabalhando com algo que é um tormento, então o PIB aumenta. Não está captando o que de fato aconteceu na vida dessa pessoa. A burrice é achar que a métrica do PIB significa sucesso ou fracasso das nações. Não significa de modo algum. O Brasil não precisa ter o PIB alemão ou americano para dar condições de vida adequadas para toda a sua população. Temos uma agenda de século XIX que o Brasil do século XXI ainda não enfrentou. O mais gritante de tudo é o saneamento básico. Praticamente metade dos domicílios não tem coleta de esgoto. É inaceitável e vexaminoso. Igualmente grave é a deficiência do nosso ensino fundamental, que condena muita gente a uma vida precária e de baixa produtividade porque não capacita para uma vida mais rica, livre e produtiva. Mas esses problemas não requerem um crescimento que nos coloque na ponta da renda per capita mundial. As evidências sobre a felicidade humana são muito conclusivas: a partir de certo nível de renda, não há nenhuma evidência de que acréscimos se traduzam em ganhos de bem-estar subjetivo. O PIB pode continuar crescendo, mas a proporção de pessoas que se declaram felizes, medianamente ou infelizes permanece estável. Na Europa, há um descontentamento, uma falta de ousadia, uma perda de vitalidade emocional. São culturas que envelheceram, que não têm mais o que Rousseau chamava de “doce sentimento da existência”.

Você também demonstra uma imensa preocupação com o meio ambiente em seu livro. Mais uma vez: nos atuais padrões, como se desenvolver preservando-o ao mesmo tempo?
Vou responder com dois dados. Um americano de renda mediana está entre os 5% mais ricos da população mundial. E ele sente que lhe faltam mais coisas materiais do que os outros 95%. É uma coisa que não leva a nada. Será que a humanidade tem que ter esse padrão de renda? O segundo dado: o planeta tem sete bilhões de habitantes. O bilhão no topo da pirâmide de consumo é responsável por 50% das emissões de CO2 do planeta. Metade. Os três bilhões seguintes por 45%. E os três bilhões na base da pirâmide por apenas 5%. E são os que já estão pagando a conta da mudança climática. É estarrecedor para a humanidade. Que sentido tem aspirar ao padrão americano de consumo, dado que os próprios americanos não se reconhecem e questionam esta cultura? Por que a humanidade inteira tem que ficar se matando para alcançar este padrão?

Acha que o brasileiro tem como referência esse padrão de vida americano?
Ele é dividido em relação a isso. A sociedade brasileira é muito individualista, temos muita dificuldade em tudo o que diz respeito à ação coletiva e organização. Esses movimentos de protestos, por exemplo, são erupções. Não têm consistência ou continuidade, são explosões emocionais sem nenhum compromisso de desdobramento ou projeto. Além disso, o brasileiro tem como referência abstrata a aspiração de alcançar essa afluência norte-americana, mas não está preparado no seu cotidiano para o grau de empenho, dedicação e disciplina de trabalho. É como o grego querendo viver com padrão alemão sem ter a produtividade do alemão. Essa conta não fecha. Durante algum tempo as transferências de renda permitem enganar isso, mas uma hora quebra. A novidade do mundo em que estamos é que o que era uma critica ética se torna agora uma questão objetiva, biológica, de sobrevivência. A realidade se impõe. A natureza tem limites. E não só a natureza externa, mas também a natureza interna do ser humano. Esse processo civilizatório calculista, agressivamente competitivo, baseado em lógica permanente da produtividade, agride algo muito profundo no psiquismo arcaico do ser humano. Ele não aceita bem isso. Há um mal-estar difuso, um descontentamento com alguma coisa valiosa da vida que se perde nesse modelo. E o Brasil, até pelo seu atraso, mantém uma relação ainda menos danosa com esse psiquismo profundo do nosso passado evolutivo. A nossa celebração emotiva da vida é algo que temos que saber valorizar. É um dom. Temos que reconhecer essa potencialidade brasileira, buscar um caminho que é nosso e que reflete os nossos valores. Temos plena condição de viver à altura deles. Na arte e na música popular a gente alcança essa expressão. Falta traduzir isso na vida prática.

A grande maioria dos meus colegas economistas, quando pensa no Brasil ideal, pensa em um país tão bem sucedido quanto um do hemisfério norte. Mas isso não reflete a cultura da grande maioria dos brasileiros. Sou muito convicto em relação a isso. Não é esse o sonho e não é essa aspiração da coletividade e da cultura brasileira. Falta aos economistas brasileiros um reconhecimento do que há de valioso nos saberes e nos valores não-ocidentais que permeiam o psiquismo do brasileiro.

Mas quem reconhece tudo isso falta também reconhecer a importância da economia, não?
Concordo, temos que juntar isso. (Risos) Taí: o meu grande sonho na vida é poder juntar o poeta vidente com o profeta analítico, e num projeto que reconheça isso na vida pública. Temos que ser mais sérios com saneamento, educação, previdência… Mas isso não é um segredo de outro mundo, não é uma façanha que está totalmente além das nossas competências e capacidades. Temos que nos organizar para isso. Mas não sacrificar tudo o que temos em nome disso que no fim a gente nem alcança.

O RACISMO NO BRASIL ‘VERSUS’ O RACISMO NOS ESTADOS UNIDOS
Em algumas passagens do livro, Eduardo Giannetti aborda a questão do racismo no Brasil e compara com o dos Estados Unidos. Na obra, explica que o racismo no país norte-americano está ligado a um profundo ódio racial que gerou leis de segregação e que matou com os traços culturais africanos. Já no Brasil, argumenta, o racismo está mais ligado à questões sociais. Tanto é assim, segundo ele, que traços da cultura africana não só permaneceram vivos como foram incorporados pela cultura nacional. O exemplo mais claro disso é o samba.

Isso se deve a que os portugueses, ao chegarem no Brasil, “tinham oito séculos de convivência com os mouros e muçulmanos na Península Ibérica e um entendimento do outro”, argumenta Giannetti. Já os anglo-saxões, explica, “nunca tinham visto outras culturas e convivido com gente de outra cor de pele”. Para ele, “a postura é diferente: é um não reconhecimento, uma aversão que, por mais que eles condenem conscientemente, é uma sensibilidade — eles sentem isso”. No Brasil, explica, “60% dos brancos tem no DNA algum tipo de ascendência afro-indígena”, enquanto que nos EUA “apenas 1%”.

“O Brasil é tão desigual socialmente que não sabemos a extensão do preconceito de raça. A hora que tivermos uma sociedade um pouco menos desigual é que vamos poder avaliar”, argumenta Giannetti, que acredita que “ainda vamos ter uma boa surpresa: o problema brasileiro é social, e não de descriminação e de aversão racial”.

Fonte: El País Brasil

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