domingo, novembro 24, 2024

Educação sentimental [?] – Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

Educação sentimental [?] – Bernardo Soares (*)

Para quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa das suas sensações uma religião e uma política, para esse primeiro passo, o que acusa na alma que ele deu o primeiro passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária — e desmedidamente. Este é o primeiro passo, e o passo simplesmente primeiro não é mais do que isto. Saber pôr no saborear duma chávena de chá a volúpia extrema que o homem normal só pode encontrar nas grandes alegrias que vêm da ambição subitamente satisfeita toda ou das saudades de repente desaparecidas, ou então nos actos finais e carnais do amor; poder encontrar na visão dum poente ou na contemplação dum detalhe decorativo aquela exasperação de senti-los que geralmente só pode dar, não o que se vê ou o que se ouve, mas o que se cheira ou se gosta — essa proximidade do objecto da sensação que só as sensações carnais — o tacto, o gosto, o olfacto – esculpem de encontro à consciência; poder tornar a visão interior, o ouvido do sonho — todos os sentidos supostos e do suposto — recebedores e tangíveis como sentidos virados para o externo: escolho estas, e as análogas suponham-se, dentre as sensações que o cultor de sentir-se logra, educado já, espasmar, para que dêem uma noção concreta e próxima do que busco dizer.

O chegar, porém, a este grau de sensação, acarreta ao amador de sensações o correspondente peso ou gravame, físico de que correspondentemente sente, com idêntico exaspero consciente, o que de doloroso impinge do exterior, e por vezes do interior também, sobre o seu momento de atenção. E quando assim constata que sentir excessivamente, se por vezes é gozar em excesso, é outras sofrer com prolixidade, e porque o constata, é que o sonhador é levado a dar o segundo passo na sua ascensão para si próprio. Ponho de parte o passo que ele poderá ou não dar, e que, consoante ele o possa ou não dar, determinará tal ou tal outra atitude, jeito de marcha, nos passos que vai dando, segundo possa ou não isolar-se por completo da vida real (se é rico ou não, — redunda nisso). Porque suponho compreendido nas entrelinhas do que narro, que, consoante é ou não possível ao sonhador isolar-se e dar-se a si, ou não é, com menor, ou maior, intensidade ele deve concentrar-se sobre a sua obra de despertar doentiamente o funcionamento das suas sensações das coisas e dos sonhos. Quem tem de viver entre os homens, activamente e encontrando-os, — e é realmente possível reduzir ao mínimo a intimidade que se tem de ter com eles (a intimidade, e não o mero contacto, com gente, é que é o prejudicador) — terá de fazer gelar toda a sua superfície de convivência para que todo o gesto fraternal e social feito a ele escorregue e não entre ou não se imprima. Parece muito isto, mas é pouco. Os homens são fáceis de afastar: basta não nos aproximarmos. Enfim, passo sobre este ponto e reintegro-me no que explicava.

O criar uma agudeza e uma complexidade imediata às sensações as mais simples e fatais, conduz, eu disse, se a aumentar imoderadamente o gozo que sentir dá, também a elevar com despropósito o sofrimento que vem de sentir. Por isso o segundo passo do sonhador deverá ser o evitar o sofrimento. Não deverá evitá-lo como um estóico ou um epicurista da primeira maneira — desnificando-se porque assim endurecerá para o prazer, como para a dor. Deverá ao contrário ir buscar à dor o prazer, e passar em seguida a educar-se a sentir a dor falsamente, isto é, a ter ao sentir a dor, um prazer qualquer. Há vários caminhos para esta atitude. Um é aplicar-se exageradamente a analisar a dor, tendo preliminarmente disposto o espírito e perante o prazer não analisar mas sentir apenas; é uma atitude mais fácil, aos superiores é claro, do que dita parece. Analisar a dor e habituar-se a entregar a dor sempre que aparece, e até que isso aconteça por instinto e sem pensar nisso, à análise, acrescenta a toda a dor o prazer de analisar. Exagerado o poder e o instinto de analisar, breve o seu exercício absorve tudo e da dor fica apenas uma matéria indefinida para a análise.

Outro método, mais subtil esse e mais difícil, é habituar-se a encarnar a dor numa determinada figura ideal. Criar um outro Eu que seja o encarregado de sofrer em nós, de sofrer o que sofremos. Criar depois um sadismo interior, masoquista todo, que goze o seu sofrimento como se fosse de outrem. Este método — cujo aspecto primeiro, lido, é de impossível — não é fácil, mas está longe de conter dificuldades para os industriados na mentira interior. Mas é eminentemente realizável. E então, conseguido isso, que sabor a sangue e a doença, que estranho travo de gozo longínquo e decadente, que a dor e o sofrimento vestem! Doer aparenta-se com o inquieto e magoante auge dos espasmos. Sofrer, o sofrer longo e lento, tem o amarelo íntimo da vaga felicidade das convalescenças profundamente sentidas. E um requinte gasto a desassossego e a dolência, aproxima essa sensação complexa da inquietação que os prazeres causam na ideia de que fugirão, e a dolência que os gozos tiram do antecansaço que nasce de se pensar no cansaço que trarão.
Há um terceiro método para subtilizar em prazeres as dores e fazer das dúvidas e das inquietações um mole leito. É o dar às angústias e aos sofrimentos, por uma aplicação irritada da atenção, uma intensidade tão grande que pelo próprio excesso tragam o prazer do excesso, assim como pela violência sugiram a quem de hábito e educação de alma ao prazer se vota e dedica, o prazer que dói porque é muito prazer, o gozo que sabe a sangue porque feriu. E quando, como em mim — requintador que sou de requintes falsos, arquitecto que me construo de sensações subtilizadas através da inteligência, da abdicação da vida, da análise e da própria dor — todos os três métodos são empregados conjuntamente, quando uma dor, sentida imediatamente, e sem demoras para estratégia íntima, é analisada até à secura, colocada num Eu exterior até à tirania, e enterrada em mim até ao auge de ser dor, então verdadeiramente eu me sinto o triunfador e o herói. Então me pára a vida, e a arte se me roja aos pés.

Tudo isto constitui apenas o segundo passo que o sonhador deve dar para o seu sonho.
O terceiro passo, o que conduz ao limiar rico do Templo — esse quem que não só eu o soube dar? Esse é o que custa porque exige aquele esforço interior que é imensamente mais difícil que o esforço na vida, mas que traz compensações pela alma fora que a vida nunca poderá dar. Esse passo é, tudo isso sucedido, tudo isso totalmente e conjuntamente feito — sim, empregados os três métodos subtis e empregados até gastos, passar a sensação imediatamente através da inteligência pura, coá-la pela análise superior, para que ela se esculpa em forma literária e tome vulto e relevo próprio. Então eu fixei-a de todo. Então eu tornei o irreal real e dei ao inatingível um pedestal eterno. Então fui eu, dentro de mim, coroado o Imperador.

Porque não acrediteis que eu escrevo para publicar, nem para escrever nem para fazer arte, mesmo. Escrevo, porque esse é o fim, o requinte supremo, o requinte temperamentalmente ilógico (…), da minha cultura de estados de alma. Se pego numa sensação minha e a desfio até poder com ela tecer-lhe a realidade interior a que eu chamo ou a A Floresta do Alheamento, ou a Viagem Nunca Feita, acreditai que o faço não para que a prosa soe lúcida e trémula, ou mesmo para que eu goze com a prosa — ainda que mais isso quero, mais esse requinte final ajunto, como um cair belo de pano sobre os meus cenários sonhados — mas para que dê completa exterioridade ao que é interior, para que assim realize o irrealizável, conjugue e contraditório e, tornando o sonho exterior, lhe dê o seu máximo poder de puro sonho, estagnador de vida que sou, burilador de inexactidões, pajem doente da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e ele fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz ténue e última dum misterioso dia espiritual.

s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. [Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho]. Lisboa: Ática, 1982. – 308.
Fase decadentista“, segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

Fonte: Arquivo Pessoa

(*) Ortografia: Português de Portugual

Saiba mais sobre Fernando Pessoa:
Fernando Pessoa – o poeta de múltiplos eus
Fernando Pessoa (poemas e textos)


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