Leila Pinheiro (Belém, 16 de outubro de 1960) cantora, compositora e pianista brasileira..
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“”No rosto uma vontade louca de ser” seria apenas um dentre tantos versos escondidos na história da música brasileira que Leila Pinheiro vai lá e, de repente, ilumina com sua voz. Mas é também a imagem perfeita para descrever a própria Leila Pinheiro, o seu rosto sempre iluminado quando canta, uma vontade louca de ser a intérprete daquelas palavras e melodias, o sonho realizado a cada canção, o prazer que ela não consegue conter no sorriso por estar cantando ou mesmo no rosto franzido pelo achado no piano de um acorde inusitado e lindo, perfeito para aquela canção. A voz de Leila aflora também no corpo, no rosto transparente do prazer e da dor de fazer música brasileira, transmitir as emoções, tristezas e belezas das canções.”
– Hugo Sukman (Leila Pinheiro – Quarenta anos (e a eternidade) da música brasileira em cada canção). Outubro 2020.
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EIS A ENTREVISTA:
Daniela Aragão: Você é uma convidada super especial. Te assisti ao vivo duas vezes, uma no show Benção Bossa Nova, ao lado do grande Roberto Menescal e outra apresentação somente ao piano. Como começou a música em sua vida e a importância de Guilherme Coutinho.
Leila: Guilherme já tocava nas noites e tardes paraenses. Meu pai foi presidente do Clube, uma época em que se vivia muito bem em Belém dentro dos clubes. No começo da minha vida eu frequentava o Tênis Club bem garota, fui ter aula de tênis, pois a Maria Ester Bueno foi prestigiar um torneio de tênis que era o Tênis Club, nós almoçávamos nos sábados. Então eu ia a esses almoços, pois meu pai era presidente do clube e eu devo ter conhecido o Guilherme ali no clube. Na parte de cima a gente via a quadra de tênis. Minha família mudou-se para esta casa próxima ao tênis e eu tinha dez anos.
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Daniela: Quando você começou a tocar piano?
Leila: Comecei a estudar piano com dez anos, com minha tia Arlete, irmã do meu pai que tinha um instituto de educação musical. Passei então a ter aula com ela e depois o Guilherme continuou, não me lembro de um fato para lhe dizer como fui costurando essa coisa com o Guilherme, nunca pensei nisso. Como o Guilherme chegou de fato na minha vida para me dar aula de piano e eu com os meus quinze, dezesseis anos iniciando o órgão com pedaleiras, lindo. Eu me lembro que eu ganhei um piano aos quinze anos, foi de aniversário de quinze anos quando se fazia festa de quinze anos. Não houve festa de quinze anos, mas o órgão com que eu tocava e esse piano acústico de armário, que era um piano da minha avó materna foi inesquecível. Hoje até comentei com meus pais sobre essa lembrança vívida de minha avó Helena chegando e tocando as valsas de ouvido. Eu tocando valsa de ouvido, eu até digo que minha valsa Doroteia, sem perceber é parecida. Isso deve ter ficado na minha memória. Seguimos eu e Guilherme nessas aulas, mas eu acho que não durou muito tempo.
Daniela: Penso que esse seu lado fortemente intuitivo pode ter sido fomentado pelo Guilherme. Ele deixava isso aflorar, desde novinha você pegou o gancho da sua liberdade criativa.
Leila: Eu pedi ao Guilherme para me ensinar “Eu preciso aprender a só ser”, do Gilberto Gil, que é um estudo de harmonia, me lembro do Guilherme falando “Já quer começar assim” e eu ia atrás dele. A gente ficava meio lado a lado, eu tocando piano ao lado dele. Era uma coisa de ouvido, acho que isso até aprimorou a minha musicalidade, ela existia e esses nossos encontros, e as canjas foram me constituindo. Eu já estava na faculdade de medicina e de lá costumava ir para a boate do clube que se chama Assembleia Paraense. Aí eu já aparecia, dava uma pinta e ele dizia: Vamos cantar! Era um cara espetacular, muito tímido, mais pra dentro que pra fora. Acho que ele foi embora cedo, sua missão era curta. Ele era um cara muito amoroso, foi ele que me deu o toque e me levou para a decisão de largar a faculdade. Parecia um pai, pois era bem mais velho que eu, naquela altura parecia bastante de idade. Me perguntou: “- Vai ficar nessa coisa de ser médica e vai fazer o que com a música que está aí dentro?” Eu já devia estar falando que não aguentava mais essa de ser médica, muito estudo e assim pra vida inteira. Eu acho que eu nasci mesmo com essa coisa da música.
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Daniela: Você tem registros em vídeo, áudio dos primeiros tempos?
Leila: Uma fita de rolo, quando eu cheguei no Rio fui comprar um gravador de rolo. Eu comprei um aparelho chamado Geloso, isso é uma relíquia e tenho até hoje só para rodar essa fitinha. Uma relíquia muito preciosa que era o meu pai Altino e meu irmão dois anos mais velho que eu. Ele ficava as tardes com o canto e eu levei o Calhambeque numa tarde e guardei aquilo. A vida é muito louca, eu não imaginei que aquele momento seria maravilhoso, eu muito pequenininha cantando. Um pai muito amoroso e musical.
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Daniela: Ele tocou com você no Catavento e Girassol.
Leila: Meu Deus, aquele cara toca tanto e tão bem, como eu não vou ter esse cara registrado dentro da minha carreira. Me lembro de que falei: – pois venha para o Rio gravar comigo. Mandei pra ele um cassete com todo o desenho que ele tinha que memorizar, que era justamente a introdução e o final da Valsa para Leila, que o Guinga e Aldir fizeram para mim. Gravamos aqui ao lado no Discovery, um mega estúdio, maravilhoso. Gravamos com o Guilherme, ele entrou para gravar a primeira, segunda e pronto. Ele gostou daquela alma de música mesmo, os filhos todos lá em casa herdaram a musicalidade, os netos também. Os Pinheiros todos são muito bons nisso.
Daniela: A gente deu um salto lá para o Catavento, só tive acesso a um disco seu belíssimo que é independente. Tem “Espelho das águas” que eu só conhecia com Telma Costa
Leila: (Leila me mostra o disco e diz que separou pra mim). Os arranjos são de Alberto Arantes, eu não conhecia o Alberto o fiquei na minha, um homem de estatura bem pequena. Eu nunca tinha ouvido falar no Alberto, ele já partiu e eu o conheci ali no estúdio da Som Livre, que foi onde eu gravei, mas eu me lembro do encantamento do Tom Jobim com o arranjo de “Espelho das águas”, porque é uma canção onde o piano do Tom, o baixo do Luiz Alves e as cordas. As cordas são muito bem escritas e muito bem tocadas e o arranjo acontece. Ou o Jobim ia ficar meio incomodado. Acho que gravamos tudo junto.
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Daniela: O disco tem cara de ter sido gravado todo junto.
Leila: Aquelas cordas e o Luiz Alves, que já era um grande baixista em oitenta e dois. Já era mágico esse momento, eu ali com vinte e dois anos, não imaginava que poderia sonhar tão alto. Digo sempre, sonhar não custa nada e de repente propor isso, tudo flui. O Raimundo acha isso natural para uma artista jovem e vamos atrás de pessoas.
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Daniela: É um repertório com temas essencialmente densos para uma garota tão jovem.
Leila: Tudo vinha de audições em casa, o repertório fui eu que escolhi, eu não me lembro do Raimundo metendo o dedo no que eu iria cantar. Não me lembro, tirando a canção “Lua de Cetim” que viria no disco, uma composição de Francis Hime e Olivia Hime, momento em que eles começavam a estabelecer essa parceria e foi logo para uma novela. o “Bons amigos” eu já cantava, já gostava do Toninho Horta, ele estava já dentro da minha vida. Sueli Costa com a bela canção “Cão sem dono” (dela e de Paulo César Pinheiro). O “Espelho das águas” (Tom Jobim) foi inédito, então fui atrás do Gilson Peranzzetta “Vai ficar no ar” com letra da Ana Terra. Não era o Raimundo me dizendo o repertório, mas algo dentro de minha alma dizendo os caminhos.
Daniela: E você traz para o grande público a parceria Guinga e Aldir Blanc.
Leila: Eu gravei o “Esconjuro” no “Simples e absurdo” que trazia vários intérpretes. Gravei no Outras caras, a primeira parceria dos dois “Esconjuro”. Não me lembro se havia outras parcerias deles antes do Catavento. Não tenho lembrança. Acho que é um jogo que a gente propõe e provoca quando diz pros parceiros que vai gravar. Falei com o Guinga que iria fazer um álbum inteiro com sua obra e ele não parou de fazer música. |Se eu quisesse fazer, Guinga já poderia, pois eu tinha várias. Tenho um baú de Guinga de 82. O que parece que é muito natural pra mim jamais será natural. A obra de Guinga é densa e é preciso se dedicar, se debruçar sobre ela para entender aquele vocabulário. São outras letras que ele usa para formar as palavras musicais. Eu estava desde oitenta e dois ouvindo e em noventa e seis eu tinha uma vivência com esse vocabulário, essas palavras, com esse conteúdo, essa obra. Eu tive o apoio do João Augusto da Emi e fomos fazer. Foi uma cachoeira de canções, teve uma hora em que eu disse: – Chega, não dava mais para receber nenhuma porque eram maravilhas. E fui pensando Meu Deus como vou fechar esse repertório. E acaba que as músicas vão se costurando.
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Daniela: A introdução de Catavento e Girassol ficou no inconsciente, embora não seja uma harmonia simples, mas ele se sedimentou.
Leila: Ela é da canção, Guinga já fez a música assim. O Jorge Calandré que fez as cordas é um grande arranjador, é Argentino, morava em Los Angeles e acho que mora ainda. Eu e João Augusto fomos a Los Angeles para mostrar a ele o que foi a obra, esse investimento da gravadora no tempo do artista. Meu tempo artístico, esse olhar sobre a obra de um grande artista.
Daniela: Tem músicas elaboradíssimas ali,. Estou sem o encarte e será que é isso que estou ouvindo? O humor, acho fantástica essa mutação do Aldir da parceria com João Bosco para o trabalho com o Guinga. Ele vai desenvolver uma outra vertente completamente diferente.
Leila: De fato a canção de Guinga com todo esse intrincado, não é qualquer um que consegue escrever, fazer sentido e ser cantável. Daniela, o que está no disco foram meses e meses e meses. Tinha ensaio, na verdade eu gosto muito de ensaiar e acredito muito nisso, na convivência com as canções pra ter uma intimidade real com elas.
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Daniela: Você tem essa grandeza de ler o outro, de trazer filigranas de canções que às vezes o compositor fez e não viu a beleza de sua criação. Por exemplo a leitura que você faz da obra de Renato Russo, é incrível como você desponta com um lirismo e força.
Leila: Eu mostrei pro Renato no estúdio da EMI as fotos do “Meu segredo mais sincero”, são registros desde 1988, no estúdio da Emi, aqui no Rio. Quando eu fiz o “Alma” gravei “Tempo Perdido”. Mostrei pra ele e disse que a memória não era dele. Eu via a letra e ela é densa, “Tempo perdido” é um melodrama. Esse encantamento pelas palavras que me move, eu vou pra elas.
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Daniela: Quando ouvi Andrea Doria com você pensei, Leila Pinheiro transformou a canção num diamante.
Leila: A palavra, eu escolhi gravar o Renato pois ele é um poeta, e era um disco comemorativo dos meus trinta anos de carreira. Ele é da minha geração, ele nasceu em outubro como eu e acho até que era libriano também. A minha ideia era exatamente o que aconteceu fazer com que até os loucos pelo Renato, ou que talvez perdessem aquela atitude vigorosa do rock and roll. Nem precisa ficar agarrado na letra.
Daniela: De onde você extrai aquele sumo sonoro ꝗue leva até o autor a perguntar?
Leila: Neste caso específico eu divido esse trabalho profundamente com Claudio Farias, que infelizmente partiu tão cedo. Um mineiro de Belo Horizonte. Ele já sabia da minha alma, era pianista e trabalhou anos a fio com Beto Guedes, foi arranjador dele e tudo mais. Claudinho depois se mudou para o Rio e tivemos uma relação de profunda comunhão de almas. Tinha também a Cláudia, uma musicista de Belo Horizonte.
Daniela: Seu papel de arranjadora
Leila: Talvez esse disco tenha dado mais trabalho que o de Guinga e de Aldir. Não é o meu universo, totalmente intuitivo. Eu fiz com o Renato uma música que gravei “Nos Horizontes do mundo”, deve ter sido dois mil e uns quebrados. Renato me perguntou se eu tocava Bossa Nova no violão. Ele disse: “- fiz uma letra”, falei: – venha pra cá. Ele veio e eu não estava no violão, mas já postada sobre o piano. Ele pegava a minha mão e me mudava a nota. Ele botava uma sexta no acorde sem saber que era sexta. Era uma coisa de intuição e ele não sabia se era dó, ré, coisa nenhuma. No final ficou uma balada, já era final de 2005. “Nos horizontes do mundo”, mas eu gravei em 2005.
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Daniela: Seus discos em preto e branco são mais densos, enquanto os mais coloridos são mais solares, exceto o disco com Antônio Adolfo.
Leila: Acho o disco do Antônio Adolfo solar, mas em preto e branco
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Daniela: Como você tem produzido nesses tempos de pandemia. A gente pode jogar a questão de como muda a configuração do artista, você começa independente, vai para a gravadora Polygram, vai para a Emi, Biscoito Fino, cria um modo independente. Tacaca é o mais recente. Gostei muito de “Por onde eu for”.
Leila: Fico muito agradecida por esse trabalho, um dos melhores que eu fiz e dar a oportunidade as pessoas de participar do trabalho de um artista e às vezes fica a pergunta. Será que eu deveria ter gravado mais? O que fica pro final das contas é essa comunhão com o público que chegou para saber do meu trabalho. A gente precisa dessa contribuição para seguir vivendo. Naquela altura podia ser feito pela Biscoito Fino, mas me lembro do impacto ao ler a matéria com Amarildo Powell. Essa artista foi a primeira que li a matéria, contribuição colaborativa. É dar oportunidade das pessoas aqui contribuirem para o trabalho. Faço muito isso com colegas, causas que mesmo eu sei o que são. Digo que não precisa ser muito dinheiro, você vai se mexer para colocar um milhão de dólares no trabalho. Coloca ali 22 reais.
Daniela: Cada um dá o que pode. Seu disco Melhor que seja rara é um primor
Leila: Esse disco iria se chamar Disco de Tristeza em referência a uma canção do Paulinho da Viola. Aqui eu te conto um pouco do lance com o Zé Pedro, eu o conheci em 2004. Ele foi a um show meu e no camarim devíamos ter trocado telefones e eu já mandei música. Tenho costume de mandar para os meus amigos coisas que me arrebatam, eu gravo e saio distribuindo. São os meus laboratórios, vou gastando as canções, você me diz alguma coisa, as vezes não bate. Ou alguém não ouviu, não bateu, ou alguém se encanta com a canção. Essa é a minha relação com o Zé Pedro, que é um profundo apaixonado por cantoras. A música cantada. Ele conhece tanta coisa, comigo ele começou a montar o que ele chama de Baú da Véia, e bota música lá dentro. No baú não estão só coisas minhas, como coisas da vida toda. Pego daqui, pego dali. A música da Zélia acho que foi de 2016, ela me mostrou esse ano. O disco ‘Melhor que seja rara‘ começou a ser gravado em 20h. Esse disco é um disco pandêmico na essência, aconteceu pois de ouvir tanto minhas próprias lives (eu vejo no dia seguinte ou dois dias depois) comecei a achar que o meu piano estava bonito, antes eu não achava. Bonito no sentido de vestir a canção o suficiente. Ele foi ficando cada vez mais visceral e eu nunca toquei tanto quanto venho tocando de março pra cá.
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Daniela: Você chegou num ponto de maturidade musical. Esse registro é precioso demais. Se começar a colocar muita coisa destrói a beleza crua.
Leila: Deixei no osso. Eu não sei consertar e ao mesmo tempo no protools tem nota errada. Eu nunca larguei no mundo um acorde errado, nem mesmo o acorde que escapuliu do dedo. Mais importante que eu não consertar uma notinha, ao mesmo tempo que eu tinha que apertar o dedo no protools. Eu ainda não consegui passar dessa etapa no computador. Isso no final vai a favor da minha escolha. Uma coisa muito preciosa, pra esse momento de piano e voz é um casamento.
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Daniela: Música tem muita cor, o que me remete agora ao poema de Rimbaud Voyelles. Esse disco tem muitos voos ascencionais, voos epifânicos, não à toa que você buscou Clarice Lispector.
Leila: Eu me lembro de meu impacto quando abri “Na saudade”, eu devo ter tirado xerox, não coloquei no computador. Pus a página impressa e foi um jorro, olha que essa fala da saudade, sentimento que temos vivenciado tanto. Blues total, é também o que cabe no piano, na minha técnica nenhuma. Eu não fico preocupada e só tenho que saber resolver. De alguma forma isso tem que acontecer no piano e resultar bem. Essa canção nasceu muito facilmente, mas é uma voz de 2016, ou antes. Voz e gravação.
Daniela: O casamento entre a poesia e a canção, tem aquele filme da Helena Solberg “Palavra encantada” que passa por Arnaud Daniel, tem Wisnik, Chico Buarque, os artífices da palavra e do som. Fica a sugestão pra você fazer um trabalho de leituras poéticas.
Leila: Com o maior prazer. Estou começando assim, essa possibilidade de compor tem saído de uma forma cada vez mais natural. Não estou preocupada, acabei de fazer uma canção de ninar para o Bernardo, que é o filho de uma grande amiga que vai nascer. Sentei no piano e fiz, a letra me veio a noite e isso não acontece comigo com frequência, não tenho essa coisa dos compositores, dos poetas, dos criadores. Tenho até musicalmente. Fiz uma trilha para a peça da atriz Ana Beatriz Nogueira, cinco temas, foi um exercício de criação pois eram temas muito curtinhos, o que tenho a dizer em um minuto, um minuto e meio no máximo. Também dentro de uma peça de teatro é tão bonito. Abria a cena já com o piano tocando ao fundo e entravam as atrizes Ana Beatriz Nogueira e Aline Moraes. Cada momento diferente tocava um tema e foi tão interessante pra mim. Foi um exercício de composição com direção. Quando já vem o tema é mais fácil de fazer, tipo Bernardo vai nascer, já sei o assunto.
Daniela E Clarice é prosa poética
Leila: Me enlouqueci com o que eu li e tem uma métrica pronta. Musiquei o poema da Adélia Prado “Briga no beco”, não tem harmonia, só melodia. Eu fiz na década de noventa. Tenho adoração por Adélia Prado. Li, reli, de trás pra frente. Foi um exercício bem bacana. Você é de Juiz de Fora, eu cantei em sua cidade num festival e o Gonzaguinha fazia parte do júri. Cantei no Teatro Central, a mesma música com a qual me inscrevi no Festival dos Festivais. Era Becos
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Daniela: Tem Becos e Ribeirinha.
Leila: Acho que a Mônica Salmaso gravou Ribeirinha no “Corpo de baile”. Um dos trabalhos mais bonitos que vi foi Mônica Salmaso cantando Guinga e Paulinho Pinheiro. A canção Ribeirinha eu conheci quando Guinga chegou aqui na década de noventa. Em 82 o Pepê Castro Neves o trouxe aqui e então eu conheci o Ribeirinha. Aí eu fiz um cassete que a gente chamava de demo naquela altura do festival. A primeira canção era o Ribeirinha, essa canção que caiu nas mãos de César Camargo Mariano. Nesta noite que eu participei estava o Cazuza e eu cantei o Ribeirinha. César era tão apaixonado e o programa era dele “Um toque de classe”. Eu inscrevi Becos, ela se classificou neste festival de Juiz de Fora, ela se classificou antes do Festival dos festivais. Enfim, o Becos não ganhou nada, mas o Gonzaguinha disse “-gostei da sua voz”, me lembro que me iluminou. Eu era muito jovem.
Daniela: Você se inscreveu no Festival dos Festivais com Ribeirinha que não classificou, mas o César Camargo te procurou pra você defender o Verde.
Leila: Eu cantei no Beco da Pimenta, um lugar no Rio de Janeiro muito bacana. A Claudia Miranda estava por lá. Eu fui com Dom Jean Ri, ele tocava um surdo e eu completamente me jogando na minha carreira. Numa noite estava a Claudia de Miranda e ela trabalhava na casa do Festival e o Ruy Quaresma grande compositor e violonista. Eles dois fizeram com ꝗue meu cassete chegasse no César, eu cantando Ribeirinha e o César desmontou. A minha música Becos já não tinha entrado no festival e eu estava bem triste. Recebi um telefonema do César perguntando se podia contar comigo numa canção no Festival. Demorou demais pra ele me dizer que seria o Verde. Eu estava no Mistura Fina, na Lagoa, quando ele me ligou. Parece até aquela história do Sinatra com o Tom. Quando vi que era ele quase tive um troço, César me mandou a gravação de Lula Barbosa cantando o “Verde”. Quando ouvi o Verde senti ꝗue a música foi feita para mim, dentro da minha história era a minha cara.
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Daniela: Você assinou
Leila: O César que era grande produtor e arranjador, com toda a bagagem que já tinha foi muito sensível porque ele ouviu Ribeirinha, Becos, Podres poderes e escolheu o Verde. Naquela época eu ainda tinha muito Elis dentro de mim, a Elis tinha morrido em 82. A minha referência era Elis e quando estamos começando precisamos de uma base e Elis é referência de tanta coisa. Muito amplo o que Elis nos oferecia e oferecerá para qualquer geração que venha. Pra mim não tem nada igual a Elis. Eu estava muito impregnada dela, me contam que quando o César ouviu Ribeirinha ele de alguma forma encontrou Elis ali. Eu não acho impossível isso ter acontecido. Na verdade o pensamento dele era para a Elis e como eu era referência ele escolheu Verde acertadamente. Isso me vem agora em pensamento.
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Daniela: No Outras caras você já está totalmente desprendida tanto que diz “Outras caras / outras taras / outras casas”
Leila: Gosto muito dessa minha letra, vou mexer um dia nessa música. A letra é minha, penso às vezes em pegar essa canção e mexer no arranjo. O arranjo é do Luizinho Avellar. Arranjo danado.
Daniela: Sua visão sobre a Bossa Nova em um disco produzido por Roberto Menescal Benção Bossa Nova, uma homenagem a João Gilberto, ele com a mão no queixo e você também.. Esse disco do João Gilberto é antológico.
Leila: Concordo totalmente com o que você disse, o Benção Bossa Nova é sim isso, como Tárik de Souza disse: “O Benção Bossa Nova” é um disco que toma a Bossa Nova do Beco das Garrafas e leva para a praia.
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Daniela: Muito poupourri, já o Isso é Bossa Nova tem um trabalho bem elaborado de arranjo
Leila: O propósito do BENÇÃO Bossa Nova é homenagear a Bossa Nova e o Menescal propôs que gravássemos dez compositores.
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Daniela: Durval Ferreira, Carlos Lyra…
Leila: São dez compositores e seus parceiros e 30 canções homenageando os 30 anos de Bossa Nova. Eu acho esses poupourris tão bem construídos, pra mim hoje é difícil tirar uma canção. Dia desses fiz o barquinho e ele ficou solitário. Para mim ele é carregado nas outras “Ah se eu pudesse” e “Você”.
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Daniela: Tem poupourris que são realmente relâmpago. Sei de cor esse disco que me guiou na adolescência.
Leila: o disco é muito bem construído, pois não é uma canção só. Entra a genialidade do Menescal, ele continua cantando a mesma harmonia. Menescal mexeu e mexe nesse barquinho muitas vezes. Lembro que coloquei um F menor com 6. É um grandioso compositor e músico com essa versão ampla da música. Vai com Bossacucanova toca aqui, esse encontro com ele foi definitivo na minha vida. Não canso de repetir, louvar e agradecê-lo.
Daniela: Aquele trabalho seu com Agarradinho que é lindo, o som do Menescal parece | Barney Kessel
Leila: Ele é totalmente influenciado pelo Barney Kessel, aquela guitarra dele, os acordes, os blocos harmônicos. Influência total. O Agarradinhos fizemos aqui no meu estúdio . Foi uma loucura, tinham 24 pessoas aqui, Roberto de Oliveira da WEA fez um trabalho primoroso de video. É um trabalho bonito que eu entro como compositora em 2 canções, fiz letra para 2 músicas dele, uma homenagem ao Tom chamada Luz da natureza, a letra eu fiz para ele pensando no Tom, a outra não me lembro. Céu que nos protege, letra minha e música do Menescal. Eu vou fazer muito mais coisa que tinha feito no sentido da criação. Não tenho dúvida nenhuma de que a maturidade traz esse desprendimento. Tenho liberado muito mais do que antes.
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Daniela: Você é muito rigorosa com você?
Leila: Rigorosa e criteriosa. Sou libra, com ascendente em câncer, lua em virgem e o meio do céu em áries. Mas sou uma confusão, graças a Deus.
Daniela: Fale um pouco da Website
Leila: Foi um convite do Nelson Faria, que é esse grandioso músico. Ele tem um projeto lindo que é Um café lá em casa, se você canta ele acompanha, se toca, toca junto. Conheci o Nelson quando cheguei ao Rio, ele tocando guitarra com a Cássia Eller. Nos tornamos amigos e seguimos amigos pela vida à fora. Tínhamos muitas parcerias e fizemos até o Céu e mar, trabalho lindo de guitarra e voz, produzido pelo Marcos Fernando. Nelsinho veio e me fez o convite para dar um depoimento sobre a minha carreira. Ideias muito embrionárias do que acabou resultando num mergulho de cabeça para contar a minha história, no meu encontro com ele “A construção do artista”, ele iria pra lá e pra cá e durante esses dias eu saí contando e cantando a minha história desde o calhambeque até hoje. Mostro muito profundamente o uso de ferramentas na internet, aqui no celular para poder me ajudar a tirar os tons, não tirar os tons. Como ensaia, como não ensaia, tudo o ꝗue eu pude dar, quando acabou esse material ele estava completamente fora do ꝗue vem fazendo dentro da Fuga Films, essa empresa ꝗue tem crescido. Está tudo na internet, é uma riqueza ꝗue o Nelson joga no mundo da informação. A Websérie foi fechada em 17 capítulos. Falo do meu equipamento, meu microfone, o processo todo com as canções. Eu acho que se torna um material importante para todo mundo, independente de ser cantor ou não, porque é um depoimento de vida, do artista ꝗue eu sou e com as minhas ferramentas de trabalho. Toca algumas coisas ꝗue me vieram na hora, a parte musical dele é muito intuitiva, era o ꝗue aparecia no momento, eu não planejei a parte musical. São dezessete capítulos, cada um com um nome, é muito bem realizada. A luz é linda.
Daniela: Você está divulgando material de arquivo seu como fotos antigas
Leila: Fotos sim. Eu vim guardando meus vinis. Antes da internet a gente tinha os jornais e tudo e saía da minha carreira . Eu tinha um tio aposentado do exército, muito caprichoso, guardou as pastas ano a ano. Minhas coisinhas vieram comigo há 40 anos de Belém. Esses vinis, grande parte deles eram os meus originais e o dos meus pais que fizeram tanto da minha formação. Tem mais de dois mil vinis. Na verdade tem os encartes, essa coisa preciosa com as fotos e fichas técnicas.
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Daniela: Eu tenho tido muita dificuldade com essa virtualização, a gente perde a ficha técnica.
Leila: Muito triste isso. Acho injusto ficar uma lacuna, pois tem tantos artistas, um trabalho nunca é uma pessoa só. Acho um grande problema, pois a informação vai se perdendo. Uma vez e veio esse lance da música do Ipad, ꝗue você sai andando. Eu não consigo ouvir música andando, entro no taxi e peço para tirar o som. Música é música e na hora ꝗue ela existe é soberana. Eu não consigo me entender ꝗuando vira roído.
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Daniela: E o trabalho com o Casca?
Leila: O grupo é maravilhoso. Tem violino, piano, uma riꝗueza de timbres individuais ꝗue eu jamais pensei que poderia cantar na vida. Mayler, Kurt Weill, todos versados para o português pelo Carlos Rennó. Grande escritor e letrista fenomenal. Foi uma costura, meses e meses e meses. Ele fazia a versão e mandava pra mim, analizavamos a palavra ꝗue poderia ficar boa. Um trabalho de ourives e a gente tem praticamente o show pronto. Foi muito desafiador pra mim esse trabalho, não posso comparar com o trabalho do Renato Russo. No caso as canções eruditas eu estudei, trabalhei, tive ꝗue me aprofundar nas diversas gravações, um vasto universo musical. O Seis com Casca são cinco músicos e uma musicista. Eles são todos formados pela USP, com mestrado, doutorado, todos de excelência em formação e estudos. Eles me trouxeram isso e aí ficavam me cutucando um universo completamente novo ainda, tudo é música, foi muito desafiador bater nessa coisa e eu tenho. Essa minha sede de desbravar, de conhecer e eles todos são muito iluminados, pessoas muito ꝗueridas, nos tornamos grandes amigos. Imagine um grupo ꝗue é experimental por natureza. Eu acho ꝗue três ou ꝗuatro discos tem de repente uma voz no meio como solista. Como você vai arrumar isso? Como é manter a sonoridade do Com Casca introduzindo uma intérprete? Esse trabalho foi de filigranas, gravado em 2014.
Daniela: Em toda a sua trajetória você é uma mulher ꝗue pensa a canção. Um pensamento musical ꝗue te possibilita ter uma amplitude
Leila: Sim. Tem ꝗue ter essa visão e meter a cara, sem ousadia não vai a lugar nenhum. Agora nesse mundo estamos nos reinventando, tentando achar um caminho possível de sobrevivência pessoal e artística. Eu sempre tive essa sede, isso é da minha natureza. Eu saí de Belém, poderia ter ficado lá, me Casado e virado médica. É bacana a gente ter esse movimento, ꝗuero ter isso sempre.
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Daniela: Fernanda Montenegro disse ꝗue é uma coisa ꝗuase doente, obsessiva a vocação. Você não consegue sair nunca.
Leila: Nada vai te impedir, aliás o livro dela deveria ser lido por todo mundo, artistas e não artistas. É uma lição de vida acima de tudo. A gente faz anos no mesmo dia 6 de outubro. Ela é um ser humano gigante e deveria ser eterna. Imortal de verdade. Para mim a leitura do livro dela me encorajou muito, pois podem ꝗuerer destruir a arte, não adianta, não vão conseguir. A arte é soberana, maior. Existe esse bicho dentro da gente para sobreviver, para continuar tocando, escrevendo, produzindo, fazendo coisas de verdade. Deixo isso aí como depoimento. Sou feliz com a minha escolha. Esse caminho de ter acreditado nessa possibilidade. Eu saí de Belém com vinte anos, eu não era artista e fui atrás. Persegui esse sonho e vou perseguir até meus cento e poucos anos. Vou seguir cantando. Principalmente essa sede ela não acaba e ela faz a gente produzir. Fiꝗuei encantada com a sua crônica Daniela, eu sou leitora de poesia e a minha coisa de poesia é muito disso. Comecei a ler romances tardiamente. Eu não conseguia ficar agarrada nas histórias e caí na poesia ꝗue nem uma louca. Ezra Pound, os concretos, eles acabaram mostrando as minhas buscas pela palavra cantada, para ꝗue ela seja perfeita. Eu estou sempre na busca da poeticidade do verso na palavra cantada. Enfim, são muitas buscas.
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** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos. Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita Lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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