Rosa Passos – cantora, compositora e violinista – nasceu e viveu cercada de música na capital da Bahia, Salvador. Em 1972, sua composição ‘Mutilados’ ganhou o primeiro lugar no festival da Universidade da Bahia. Seu primeiro álbum ‘Recriação’ veio em 1979, junto com o compositor Fernando de Oliveira, parceiro de longa data. Em 1991, lançou seu álbum ‘Curare’, contendo clássicos acordes da MPB de Tom Jobim, Ary Barroso, Carlos Lyra, entre outros. Em 1996, lança o CD ‘Pano pra manga’. No total são 17 álbuns. Rosa tem uma vasta experiência no exterior, tendo se apresentado na América Latina, na Europa e Estados Unidos ao lado de grandes nomes da música mundial, como Ron Carter, Paquito D’Rivera, Yo-Yo Ma, Cyro Baptista, Henri Salvador, entre outros. Em 2006 Rosa se apresenta ‘solo’ no palco do Carnegie Hall Zanken Hall em um show de voz e violão. Rosa dedicou o ano de 2007 ao público brasileiro e em novembro de 2007 apresentou-se no Blue Note de New York, prestigiada casa de jazz, uma série de seis shows que anteciparam sua participação como homenageada da Berklee College Of Music em Boston onde ministrou oficinas de música com presença do corpo docente e alunos da renomada escola. Em janeiro de 2013 gravou um cd dedicado à música de Djavan ‘Samba dobrado Canções de Djavan’, através da MdA International volta a percorrer o Brasil e mundo com apresentações junto a seu grupo. Gravou ainda os discos ‘Rosa Passos Canta Ary, Tom e Caymmi’ (2015), ‘Rosa Passos ao vivo’ (2016) e ‘Amanhã vai ser verão’ (2018).
Daniela Aragão: Como começou a percepção do som em sua vida?
Rosa Passos: Meu pai era um homem que amava a música. Cresci ouvindo as grandes orquestras americanas. Todos os meus irmãos tiveram a oportunidade de tocar um instrumento. Embora fosse engenheiro elétrico, papai sempre gostou muito de música, tocava violão. Nós fomos criados num ambiente de música. Minha irmã mais velha estudou piano. Lá em casa são três engenheiros, uma socióloga e uma ovelha negra, que sou eu da música. Todos tivemos a oportunidade de estudar um instrumento, mas eu fui a única que prossegui. Com três anos, eu estava em cima do piano. Comecei a tocar sem ninguém me ensinar. Me formei aos cinco anos em teoria infantil, com a nota mais alta da escola, de Santa Cecília, da Bahia. Há uma foto minha, que comprova isso. Eu de beca me formando e dando aula para a minha irmã.
Daniela Aragão: E na adolescência você foi prosseguindo?
Rosa Passos: Na adolescência comecei a estudar piano. Minha irmã levou para nossa casa um compacto duplo, de João Gilberto. João cantava e tocava “A felicidade”, música do “Orfeu do Carnaval”. A partir da audição, falei para papai que meu instrumento seria o violão e não o piano. Eu tinha onze anos de idade. A partir deste momento, nunca mais deixei a música.
Daniela Aragão: Você já sentia que a música seria a sua profissão?
Rosa Passos: O violão seria o meu instrumento. Aprendo muito ouvindo João Gilberto. Fui crescendo, ouvindo várias coisas, me reformulando e amadurecendo. Durante aquela fase de festivais, predominavam as músicas da faculdade. Conheci nesta época o Fernando Oliveira, que é o meu parceiro mais constante. Desenvolveu-se, a partir dali, meu lado compositora. Na década de setenta, descobri que teria capacidade para compor. Em Salvador, nos reuníamos todas as sextas, na casa de um Mecenas, o Elmo. Formamos um grupo chamado Arquipélago, entre nós fui a única que foi embora.
Daniela Aragão: Da Bahia você foi para onde?
Rosa Passos: Casei-me e fui para Brasília. Meu marido era funcionário público do Ministério dos Transportes, exerceu o cargo de ministro duas vezes. Por lá, tivemos nossos filhos e netos. Amo Brasília, minha música é do mundo. Vou muito a Europa, EUA, Japão e volto para casa. Brasília para mim é uma grande fazenda aonde descanso. Ali sou Rosa Maria.
Daniela Aragão: Você é uma artista renomada no exterior. Encontrei no youtube uma bela gravação de “Recriação”, canção que faz parte do repertório de seu primeiro disco.
Daniela Aragão: Aquilo foi uma fase da compositora muito trabalhada. Fernando de Oliveira tinha umas letras muito densas. Havia algo meio pesado. Eu era muito rebuscada, tanto que Egberto Gismonti gosta muito deste disco, assim como Ednardo e Fagner. Este disco surgiu na mesma época em que apareceram Diana Pequeno e Zizi Possi. Foi a época da Discoteca. A Diana ainda ficou um pouco, mas Zizi foi embora e eu recuei. Meu trabalho era extremamente sofisticado e eu não tinha espaço. Fiquei um tempo em casa e isso foi bom, consegui compor mais, cuidei dos filhos. Quando veio uma proposta da Velas em 1990, os meninos estavam crescidos. A proposta foi feita por Aloysio de Oliveira, que me procurou e convidou-me para gravar um disco de Bossa Nova. Resultou no meu disco chamado “Curare”, que entrou logo de cara no mercado americano.
Daniela Aragão: Abertura para o mercado internacional em grande estilo.
Rosa Passos: A partir deste momento, as coisas foram se abrindo muito para mim lá fora. Meus discos chegaram primeiro. Eu cheguei pela porta da frente nos Estados Unidos, com a recomendação de Aloysio de Oliveira. Quando comecei a viajar por lá, eu já tinha uma coisa fincada, um disco. O mesmo se deu na Europa, o “Festa” chegou primeiro. Quando aterrisei lá, as pessoas já conheciam. Isso é que é o legal, você ter uma referência.
Daniela Aragão: Ser apresentada ao mercado exterior com um trabalho de extrema qualidade é um diferencial considerável.
Rosa Passos: É todo um percurso que vai sendo traçado. Você possui um trabalho como artista, há jornalista que gosta e faz uma crítica sobre seu trabalho. Consequentemente, você é convidado para tocar naquele país, assim dá certo. Sair como um doido e achar que irá acontecer na Europa? É um equívoco. Há vários que tentaram assim e são frustradíssimos. Viajei dezenove anos para a Europa, conheço trinta e nove países.
Daniela Aragão: Sair com um violão nas costas e encarar a noite europeia. Imagino que seja muito complicado.
Rosa Passos: Com certeza. Muitos me procuram e dizem, que estão há anos na noite e não saem da mesma condição. É preciso ter referência, ter assinatura. Não é botar o violão embaixo do braço e sair por aí. Tem que ter um manager lá fora, um escritório que lhe represente. Hoje possuo um manager, que é brasileiro e que cuida de minhas coisas no mundo inteiro. Antes eu tinha um manager na Europa, outro nos Estados Unidos e ainda outro aqui no Brasil.
Daniela Aragão: Os artistas brasileiros, que possuem uma carreira consolidada no exterior, revelam que nem toda a travessia é feita de glamour. Há todo o empenho necessário nas empreitadas, que implicam contínuos deslocamentos entre cidades e países. Viagens de avião, trânsito entre hotéis…
Rosa Passos: Depois de 2008 adoeci em decorrência de exaustão causada por inúmeras viagens. Após uma etapa em que viajei muito. Tive que me cuidar durante quatro anos em casa.
Daniela Aragão: isso afetou a sua voz?
Rosa Passos: Não afetou nada, já voltei com “Luxo só”. No período em que estive doente, não conseguia fazer nada que se relacionasse à música. Não podia olhar para o meu violão, que me dava ânsia de vômito. Chegavam telefonemas do exterior e eu recusava. Fiz tratamento, tomei medicação, pois eu estava com carência de endorfina e serotonina. A primeira coisa que me veio foi o medo de avião. Na última turnê, que fiz em 2008 na Europa, peguei vinte e dois aviões.
Daniela Aragão: Imagino que bate uma sensação de não pertencimento.
Rosa Passos: Exatamente. Meu filho, quando ia me buscar no aeroporto, se espantava com meu aspecto de cansaço. Me dou inteira, atendo a todo mundo. Na Europa são muitos fãs, os espanhóis são muito calorosos, os italianos também. Já fui pedida em casamento (risos). Teve um cigano que queria me roubar, histórias incríveis. Eu sou uma pessoa absolutamente realizada.
Daniela Aragão: Você possui um extremo cuidado com a música, as filigranas da canção. É uma cantora pronta, com feeling de músico. Noto que vive uma busca incessante pelo aprimoramento. Você é uma ourives da canção.
Rosa Passos: É exatamente isso que tento passar aos alunos no Master Class. A pessoa deve ter o instinto de responsabilidade, qualidade que vejo em poucas pessoas. Quer fazer? Então vamos fazer direito. É preciso ter responsabilidade, nunca achar que está pronto. É necessário estudar sempre. Todos os dias estudo meu instrumento e ainda tenho a audácia de fazer um vídeo em casa. Meus colegas não fazem. Tem muita gente me pedindo, para fazer um vídeo doméstico, com “Garota de Ipanema. Compus um arranjo para este clássico e gravei com João Donato. As pessoas querem ver minha leitura de “Garota de Ipanema” ao violão.
Daniela Aragão: A sua divisão no cantar é peculiar.
Rosa Passos: Divisão é um lance que vem muito de talento. Poucas pessoas possuem a capacidade de divisão. É um dom. Deus me deu e é muito generoso comigo. A divisão vem para mim com facilidade, mas não só porque fui dotada desse dom, mas também porque ouço muito jazz.
Daniela Aragão: Quais são seus “cantores de cabeceira”?
Rosa Passos: Como articulação rítmica, gosto muito de Ella Fitzgerald e Betty Carter. No sentido profundo da canção, gosto de Nina Simone. Gosto de Shirley Horn, uma grande pianista. Billie Holiday me encanta pela capacidade, com uma voz tão pequena, ela fazia tanta coisa. A Sarah Vaughan pela elegância. Amo de paixão Nancy Wilson, há um disco dela que é meu de cabeceira: “Just Life”. Eu a amo. Nós éramos da mesma gravadora “Link Live”. Tive o privilégio de assistir Shirley Horn. Ela falou para mim “continue não respirando, você não pode mostrar a respiração”.
Daniela Aragão: Como foi seu encontro com João Gilberto?
Rosa Passos: João Gilberto me disse “Flor, você é o meu perfil com o seu perfil. Não é João Gilberto de saias, é você”. Essa fala faz parte das ocorrências inesquecíveis, que a gente revive. Depoimentos de pessoas, as quais você é apaixonada e deve manter uma responsabilidade. Devo acima de tudo manter minha responsabilidade, pois tenho o mundo inteiro atrás de mim. Fui fazer o Blue Note, todos os dias super lotado. Tinha gente que dizia, “diga a ela que a gente veio da Lituânia, diz a ela que viemos da Rússia, da Polônia, do México”. Havia uma mesa de vinte e cinco japoneses. Isso eu plantei.
Daniela Aragão: Há uma peculiaridade em sua voz de menina. Voz de uma jovialidade e frescor singulares, com uma suavidade de garota.
Rosa Passos: Isso é uma questão de saber colocar sua voz. A voz de Billie era de menina. Ela tinha aquela coisa arrastada, que era o seu grande lance. Possuía um fiozinho de voz e que dizia tudo. As grandes cantoras brasileiras costumam gritar. As consequências chegam mais tarde, vão ficando mais velhas e vão perdendo a voz. Gal Costa tinha uma voz maravilhosa e hoje não apresenta mais o brilho na voz. Como cantora, ela teria que atentar para quem fez os arranjos. Os próprios arranjadores deveriam baixar os tons. A escola da Dalva de Oliveira era muito alta, Ângela Maria. Maysa era uma cantora jazzista. Elis é minha grande paixão.
Daniela Aragão: Elis assinou toda a obra que gravou. Você aceitou o desafio de rever a obra de Elis Regina.
Rosa Passos: O primeiro convite veio do Sesc Pompeia, o segundo recebi do Teatro da Fecap. Me convidaram para comemorar 20 anos sem Elis. Fiz dezesseis shows, fiquei muito cansada, doente. Precisei tomar passe, para retomar minhas energias. Elis é maravilhosa. Ela estava lá e teve gente que a viu dançando, toda feliz. Uma senhora, sentada próxima a mim, revelou-me que Elis estava ao meu lado, de vestido vermelho com bolinha branca. Os momentos mais densos do show se davam com “Atrás da porta”, “Tatuagem” e “Fascinação”. Uma responsabilidade cantar Elis Regina. Ela é uma assinatura. Fui imensamente feliz com este trabalho. O Boccato, que tocava com ela, foi várias vezes ao show.
Daniela Aragão: Como foi gravar com Ron Carter?
Rosa Passos: Uma delícia, porque partiu dele. Eu estava fazendo um show no Lincoln Center e ele admirava o meu trabalho. Falou então, para o dono da Check, sobre a vontade de me acompanhar. Ron Carter declarou que sou uma cantora que interage com o músico, que valoriza o que o músico está fazendo. Uma cantora que está inteira na vibração, o tempo todo. Ele confidenciou isso numa revista de jazz, e me deixou profundamente feliz. Aprendo muito com os músicos. Ouço muito instrumental, ouço também muito piano.
Daniela Aragão: Seu instrumento é o violão. No entanto, o piano compõe a formação de base em seus espetáculos e gravações. Um disco inteiro dedicado ao repertório de Tom Jobim, canções de João Donato.
Rosa Passos: Com certeza, ouço muito o piano que traz todas as possibilidades de som. Tenho meus pianistas, Oscar Peterson, Bill Evans. Vou cantar agora com Keny Barral, no Lincoln Center. Ele queria cantar comigo, vamos fazer “Dindi” e “Inútil Paisagem”, só piano e voz. Tocaremos outra de Jobim, além da minha composição “Verão”. Fizemos “Por causa de você”, baixo e voz numa tomada só. Ele me chama de my baby.
Daniela Aragão: O que é a música para a sua vida?
Rosa Passos: A música é uma entidade lindíssima, que não escolhe qualquer um. Generosa, infinita. Quando ela nos escolhe, temos que ter uma responsabilidade com ela. Se não tivermos, ela some da nossa vida. E você não vai mais achá-la. Ela te dá todas as chances, todas as oportunidades. Quando ela vê, que você não está agindo honestamente com ela, recebendo a generosidade que ela lhe deu, você vai perdendo aos poucos a sua musicalidade. Vai caindo no vulgar, vai ficando no ridículo e a música vai embora. Ela não precisa ficar, pois é uma deusa. A música é uma deusa e está pouco se lixando. Se você cuidar dela, ela vem. A música, ao longo de minha vida, tem me dado tanta coisa boa. Peço licença a ela antes de cantar. Qualquer coisa que faço, peço a Deus primeiro e depois a música. Minha querida, minha música, minha deusa! Peço permissão, para poder hoje conseguir transmitir o melhor para as pessoas, que estão aqui neste momento me ouvindo.
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** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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