Fátima Guedes - foto: Gee Galvão
Fátima Guedes, cantora, compositora e violonista, carioca, nasceu em 6 de maio de 1958. Vários artistas gravaram músicas dela, como Simone, Maria Bethânia, Nana Caymmi, Ney Matogrosso, Leila Pinheiro, Mônica Salmaso, Elis Regina, Zizi Possi, entre tantos outros. Entre suas músicas estão ‘Autora de Absinto’, ‘Chora Brasileira’, ‘Passional’, ‘Meninas da cidade’, ‘Flor de ir Embora’, ‘Cheiro de Mato’, ‘Desejo’, ‘Artigo de luxo’, composições reconhecidas pela sensibilidade. Fátima Guedes começou a carreira em 1973. Três anos depois, “Passional” venceu um festival de música da Faculdade Hélio Afonso.
Daniela Aragão: Você é uma compositora excepcional soube que sua mãe era professora, de quê?
Fátima Guedes: Minha mãe era professora de literatura e por isso eu tenho tanta paixão assim pelo trabalho das letras. Comecei muito cedo a ler muito, então eu li Machado de Assis, Jorge Amado, Eça de Queiroz, os grandes romancistas, até hoje sou apaixonada pela literatura brasileira, portuguesa e mundial. Eu lia Balzac, muita coisa que tinha história permeada e produzida por personagens maravilhosos. Eles fizeram parte do meu imaginário de uma maneira muito viva e esses sentimentos são meu material de trabalho até hoje.
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Daniela Aragão: Muito jovem você desponta num festival na escola. Já com uma riqueza vocabular, uma sustança. Dá um bom caldo, pra gente poder se expressar melhor, ter um bom vocabulário e uma boa argumentação, leitura é fundamental. O que você ouvia quando criança?
Fátima Guedes: O meu avô gostava muito de Luiz Gonzaga, minha mãe cantava muito Dolores Duran, a minha irmã foi crescendo e me apresentou a MPB. O meu padrasto mais tarde me conduziu para a música erudita que eu amo de paixão e então é uma mistura de tudo isso, mas a MPB me pegou, pois além das melodias maravilhosas de trabalho melódico, harmônico, sofisticado que ela apresenta, ela tem o texto pra gente poder trabalhar e é uma arte que eu considero uma das grandes artes brasileiras. Essa MPB que a gente identifica como uma expressão ao mesmo tempo muito popular e muito elegante, sofisticada no seu formato.
Daniela Aragão: A Joyce costuma dizer que a MPB tem resposta pra tudo.
Fátima Guedes: É também filosofia na medida em que você evolui um texto ele também vai pensando e ajudando a pensar. A MPB pra mim é uma arte maior.
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Daniela Aragão: Tem uma imagem sua linda muito jovem cantando junto com Elis Regina sua canção Meninas da cidade. Como é bonita sua expressão emocionada, você entrega para Elis sua música.
Fátima Guedes: Na verdade eu queria ser uma compositora e não uma cantora, eu comecei a cantar porque eu fui sendo levada pro show, queria poder trabalhar para criar canções para os cantores, mas aí as coisas foram acontecendo e fui sendo conduzida para o palco. Comecei então a ficar apaixonada pelo palco, pois o palco é apaixonante. Esse contato direto com a plateia, esse olho no olho. Esse contato direto com a plateia, esse olho no olho, essa coisa de trabalhar e concluir o pensamento de uma audiência, roteiro meticulosamente caprichosamente concluída. Comecei a estudar minha performance no palco a partir da observação do trabalho de meus colegas, técnicas de voz, tanto que acabei virando professora. Hoje a gente tem alunos na oficina de canto brasileiro.
Daniela Aragão: O que me encanta é a sua divisão no cantar que é a sua assinatura. Única.
Fátima Guedes: Pois cada voz é única. O jeito a personalidade do canto, as escolhas que você faz no repertório. Cada um é um. É muita riqueza, cada pessoa é um universo, cada cantor me traz milhões de personagens, toda a sua memória afetiva, evocada ali pros maiores trabalhos. É muita riqueza, a MPB é um baú de coisas lindas e não tem fim. Tem muito o que trabalhar e também preservar a memória de nossa geração para a geração seguinte, numa ocasião melhor em termos de cultura, governo, educação, mesmo pra nossa geração saber o quanto é rica artisticamente, falando apenas por ser brasileira. O que nós estamos fazendo é muito inconstante. O que você está fazendo Daniela é muito importante, transmitindo, compartilhando, divulgando as nossas experiências, isso tudo faz parte de um trabalho de resistência.
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Daniela Aragão: Estou levando essa grande música para a juventude.
Fátima Guedes: Quando os acessos ficarem liberados, os acessos para uma arte mais bonita, mais bem feita. No momento está muito restrito, esse momento a juventude vai descobrir, uma riqueza enorme.
Daniela Aragão: Você gosta de trabalhar em parceria na composição?
Fátima Guedes: Eu sempre fiz letra e música tudo junto. É esporádico mas eu tenho meus colegas parceiros e volta e meia a gente vai produzindo uma parceria. O diferente normal é eu fazer a letra e música juntas porque quando eu pego uma frase bonita a melodia logo chega pra acudir, pego o violão e vou fazendo um caminho harmônico, melódico. É um trabalho um pouco solitário pra mim mas me acostumei a isso. Pra mim é mais fácil compor letra e música do que fazer uma parceria, mas a parceria é uma experiência deliciosa.
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Daniela Aragão: Você tem grandes compositores que te gravaram como o Dori, Nana Caymmi.
Fátima Guedes: Nana gravou, Alcione gravou. Toda a MPB gravou praticamente. É mais fácil dizer quem não gravou. Fico muito feliz, pois era isso que eu queria fazer a princípio. A gente foi sendo levado pro palco e o palco requer mais trabalho, mais entendimento da coisa cênica toda e foi aí que eu me descobri.
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Daniela Aragão: Em suas oficinas acredito que seu trabalho é conduzido para a performance, a linguagem do corpo. E você usa pouco o violão que creio que limite a sua expressividade.
Fátima Guedes: No palco uso pouco o violão e como costumo me apresentar com grandes músicos eles dão conta do recado. Meu violão é muito simples e no palco num show inteiro eu costumo tocar três, quatro canções no máximo. Eu procuro deixar para a banda, os meus acompanhadores que fazem um trabalho musical muito mais bonito. Eu me solto uma pouco como interprete e como atriz também. O lance do autor aparecer mais na música é comum e até aqui mesmo dentro desse quadradinho que a gente está tentando agora, que é o quadradinho virtual, mesmo aqui estamos representando personagens. Todo cantor tem um pouco de ator também e isso a gente vai descobrindo, as mil pessoas que movem dentro da gente. A gente trabalhar na técnica vocal, na emissão, na percepção, na divisão e também o lado todo de incorporar aquele texto que estamos falando.
Daniela Aragão: Esse seu encantamento pelo lado cênico também está aquele seu disco de cinema. Uma homenagem ao universo cinematográfico.
Fátima Guedes: Sou apaixonada por cinema e literatura. Cinema é literatura o tempo todo, é arquitetura, é fotografia. Cinema é uma arte completa e aí essa vivencia dos filmes também fazem parte do meu imaginário. A gente passeia por onde quiser. A MPB tem isso, é muito múltipla, ela é um conceito. Eu explico para os meus alunos que a MPB surgiu por volta dos anos sessenta quando ganhou essa alcunha MPB por conta dos inúmeros festivais que aconteciam pelo Brasil à fora e festivais locais de prefeitura, de cidade, de televisão como o da Bandeirantes. Mil lugares, então esses festivais reuniam muitos autores do Brasil inteiro. PR exemplo um festival internacional tinham 200 mil canções para serem tiradas e sobrarem vinte, trinta canções para as etapas que vão participar. E pra finalizar e premiar algumas poucas canções. Nessa triagem você imagina a qualidade era imensa. E aí os festivais aconteciam no Brasil inteiro. Por exemplo, festival de música brasileira de Mogi das Cruzes. Eles faziam o festival de MPB de Mogi das cruzes. O festival era tão triado que o nível ia lá em cima. Excelentes melodias e harmonias, excelentes letras era o que acontecia nos festivais de praticamente todos os festivais do Brasil. Aí a MPB ficou associada a essa qualidade máxima, então MPB quer dizer qualidade máxima, só que ela é imensa no Brasil, abrange a música regional, a salsa e a bateria daqui da América Latina. A MPB é também referência das músicas do exterior, é a bossa nova que está dentro da MPB, se ela cumpre essas situações que a gente está falando. Tem muitos artistas há anos atrás que se incluíram na MPB sem ser MPB, porque não cumpriram a virtude maior da MPB que é ser inteligente, bem acabada, bem feita, bem bolada, bem contextualizada.
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Daniela Aragão: Há alguns anos o Chico Buarque deu uma entrevista em que disse que o gênero canção com letra e música bem acabadas estará extinto num futuro possivelmente breve.
Fátima Guedes: Uma preocupação um pouco inútil, pois estamos ainda construindo a MPB dentro desses parâmetros de beleza que a própria geração do Chico nos presenteou. Parâmetros altos de acabamento e beleza que a gente replica. O samba não vai acabar, nada disso. Essa tragédia não vai acontecer, pois continuamos trabalhando muito. Eu dou aulas há vinte anos e vejo a rapaziada produzindo e reproduzindo a grande MPB e não vejo nem de longe essa sensação de que a MPB está em crise. A gente tem produção de acesso, aliás não somos nós, o público tem um problema de acesso. É um trabalho que deveria ser encampado pela educação, não só pela cultura. Eu sou cria de festival de colégio e é uma coisa maravilhosa que mobiliza uma escola durante um ano inteiro. Mobiliza o imaginário, a coletividade, os grupos, os autores potenciais que aparecem ali. Não vejo nem de longe esse fatalismo ali, a MPB acabou. Sucessos são complicadíssimos, a MPB quer produzir shows bonitos, subvencionados para que possa chegar a plateia gratuitamente, então para mim não interessa um público que pode pagar 200, 500 reais por um show meu. Me interessa num público o que se pode pagar, 10, 20 esse é o público que eu quero. Esse público que a MPB precisa sentir que tem acesso a ela. A nossa música é tão boa que você vai apresentar a uma pessoa que está acostumada a escutar uma música ruim, essa pessoa não vai poder dizer que não gosta, não tem como. Se você mostrar um trabalho maravilhoso, maravilhoso é. E qualquer pessoa pode ter acesso a MPB, ela cria intervalos melódicos que mexem com o coração. Não tem como não entender, estamos aqui prontos quando o acesso ficar liberado. De lá para cá, de cá para lá, nós somos o público que a gente quer.
Daniela Aragão: Tem um Vox Populi com Elis Regina em que um rapaz muito humilde lhe pergunta quando que irá cantar em São Paulo. Elis derrama algumas lágrimas ao se emocionar com o rapaz.
Fátima Guedes: Pois é, o povo vai conhecer essa produção maravilhosa que não é coisa de agora, de 1940, 50, 60. Tudo o que tem sutilmente e entra década sai década e fazendo o melhor que a gente pode. Português é lindo, ele combina com o que a gente faz na música.
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Daniela Aragão: Fátima você no início de carreira foi uma das compositoras mais censuradas. Você resgatou essas canções?
Fátima Guedes: As canções foram resgatadas na medida em que foram gravadas algumas no início de carreira porque quem ia negociar suas liberações eram os advogados e a Emi Odeon principalmente no início. A maior parte das canções era censurada mais por causa dos costumes. Foi na ditadura e ainda tinha muito censor que não tinha o que fazer e ficava tentando explicar o inexplicável. Eu tenho uma música chamada “casa maicais” que é do primeiro LP que fala assim “ um dia eu abro essa porta e o diabo e a minha faca te entra e a minha raiva te corta” aí o censor muito inteligente falou que essa música está censurada pois ela faz apologia a violência doméstica. Então você vê como era a cabeça dos censores daquela época. Mas elas foram liberadas, foram sendo utilizadas, jamais me senti cerceada.
Daniela Aragão: Estranho você não participar dessas audiências, não perguntarem o que você escreveu
Fátima Guedes: Ficava tudo confuso por que submetiam o trabalho a censura federal que fazia o registro das músicas. Não existiam as sociedades arrecadadoras e elas estavam se formando na época Compunha-se uma música e se ela não fosse imediatamente gravada ela poderia se perder. Na censura federal você apanhava um número de música onde você entregava a letra datilografada numa fita cassete, aí o censor ouvia com aquela inteligência toda e ditava um número. Eu não queria ser censurada, é óbvio. Assim a gente registrava as canções . Hoje em dia acontece diferente, dependendo da data que você faz uma postagem o registro fica, mas a gente tinha essa coisa da autoria. Tinha que dizer essa música que tem esse título, que tem essa letra, essa melodia. Essa música é de minha autoria.
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Daniela Aragão: Às vezes a música era aceita mediante a troca de uma palavra.
Fátima Guedes: Acontecia isso sim na negociação dos advogados. O Mestre Sala dos Mares tinha essa situação, o almirante negro acabou virando navegante negro. Então muitas situações que a gente tinha que fazer um jogo. Estas entidades são muito datadas. Temos muitas questões a resolver ainda hoje na época. A censura é inócua.
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Daniela Aragão: Ficam falando que isso vai voltar, mas acho improvável.
Fátima Guedes: Eu acho que não no sentido da criatividade como você está falando da criação da MPB em si moderna, atual, contemporânea. Eu não tenho nenhum problema em dizer que não tem nenhum problema. É a gente continuar compondo e construindo as nossas canções de MPB. Na parte criativa não temos problema. A parte mecânica é à disposição das pessoas. Os nossos caminhos tem que ser pensados. Essa via virtual por onde a gente comunica. Tem o show de rua, a gente tem também que cantar na rua.
Daniela Aragão: Você está com novos planos além das oficinas?
Fátima Guedes: Estou começando a fazer um CD somente com músicas inéditas, tudo novo, zero bala. Estou num momento de minha vida em que ficar produzindo e conduzir certa autocobrança não faz mais sentido. Essa cobrança que a gente faz da gente mesmo que é ter que ficar fazendo é uma mentalidade muito capitalista. Eu a minha vida inteira fiquei me achando devedora de produzir ainda mais. Estou começando a descobrir outras facetas de uma vida mais interna. Viver melhor, fruir. Eu estava conversando com uma amiga hoje à tarde e acontece uma coisa interessante nessas crises, nessa pandemia. A gente abaixa o nosso padrão de vida e aumenta a nossa qualidade de vida. E isso é novo. Esse tipo de cobrança ah eu tenho que fazer um CD a cada dois anos já não faz o menor sentido para mim. Eu tenho que fazer um show por ano, na verdade estou mais para o Zeca Pagodinho “Deixa a vida me levar”. Conversando com você tenho o mesmo espaço que Caetano que está conversando numa outra live. Aí vem a maravilha do advento da internet, o circuito alargou muito.
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Daniela Aragão: Perdeu-se em parte a glamourização, quem quiser viver no glamour e ser inatingível vai perder espaço.
Fátima Guedes: Não dá mais. Estamos bastante igualados, irmanados e é diferente, mas é bacana. É trabalhoso, é produtivo, é diferente. Então a gente vai se adaptando. Eu proponho que a gente continue trabalhando com muito amor, mas sem neura.
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