Homenagem a saudosa Heloísa Tapajós. Segue a entrevista realizada em 2011, numa das mesas da Puc-Rio entre cafés.
Heloísa Tapajós: Estou me sentindo meio “papéis invertidos” aqui, pois quem costuma fazer entrevistas sou eu (risos)
Daniela Aragão: Você vem de uma família de músicos e é pesquisadora musical. Quando começou a música em sua vida?
Heloísa Tapajós: A música sempre fez parte da minha vida, da vida da minha família, porque na minha casa se ouvia todo o tipo de música. Eu tenho quatro irmãos. Minha mãe é pianista, não pianista profissional, mas ela estudou no Conservatório Brasileiro de Música. E nós fomos criados ouvindo a mamãe tocar piano.
Ela tocava peças eruditas mas também tinha o hábito de comprar partituras daqueles standards americanos de Gerschwin e Cole Porter, e aí eu fazia um duo com ela, piano e voz. Quando eu me cansava de ficar estudando, ela ia pro piano e a gente brincava disso. E eu tinha certa intimidade com a música erudita não só por causa das peças que minha mãe tocava mas também por causa do ballet. Eu estudei ballet clássico por 12 anos.
E meu pai gostava de música popular e tinha em casa aquela coleção que nós todos escutávamos também, Maysa, por exemplo. Com relação aos meninos, sou a única mulher entre cinco filhos, o Sérgio, o Dadi, o Toca e o Mú. Cada um tinha um interesse diferente por música e, como só tinha uma vitrola em casa, todo mundo ouvia a música de todo mundo.
Então, tinha a música do Sérgio, que era aquele rock do Bill Halley e Seus Cometas, tinha a música do Dadi, Rolling Stones, etc., e depois mais tarde o caçula, o Mú, com Chick Corea… Então, apesar de eu ser absolutamente apaixonada por música popular brasileira, e hoje trabalhar nessa área, eu até tenho alguma informação musical de outras vertentes por conta dos meninos, da minha mãe e do meu pai. Enfim, de tudo isso que se misturava. Na minha vida, a música brasileira falou mais forte com a Bossa Nova.
Eu brinco com o Carlinhos Lyra que eu pulei diretamente de Celly Campello para “Pobre Menina Rica”, porque em menina eu gostava muito da Celly Campello, eu ouvia todos os discos dela que o meu pai comprava pra mim. Então, da Celly Campello, um dia eu fui cair no musical “Pobre Menina Rica”, que estava passando ali perto da minha casa, em Ipanema, naquele teatro que tinha na Rua Jangadeiros. E eu fui ver como se aquilo fosse um especial meio infantil, como se o título sugerisse algo assim. Saí de lá totalmente nocauteada por aquela trilha sonora de Carlinhos Lyra e Vinicius de Moraes… Saí maravilhada com aquilo e voltei várias vezes! Eu me lembro que eu voltava e voltava, e acabou se tornando meu programa de fim-de-semana. Eu sabia de cor todas as músicas e quando saiu o LP eu cantava todas. Sou apaixonada.
Daniela Aragão: Então “Pobre Menina Rica” foi um marco para você?
Heloísa Tapajós: Foi impactante, nocaute, e o início desta minha paixão. E, a partir daí, passei a procurar tudo o que estava perto disso. Eu cheguei a tudo da Bossa Nova. Eu tinha tudo, ouvia Bossa Nova o tempo todo. João Gilberto sem parar, Tamba Trio, as músicas de Menescal e Bôscoli, depois Edu Lobo, Wanda Sá… Me lembro que, por conta disto, fui estudar violão na academia do Carlinhos Lyra.
Não aquela primeira, já a segunda, na vila da Rua Dias da Rocha. Estudei lá com o Marco Antônio Menezes, um compositor que nem sei por onde anda, que tem uma música chamada “Manhã de liberdade” que é belíssima. Eu me fechava no meu quarto (era a única menina da casa e tinha um quarto só meu) e tocava o meu violãozinho… Eu tinha o cabelo comprido como o da Wanda Sá e costumo brincar com ela contando que, ali no meu quarto, eu jogava o cabelo pra trás, pegava o meu violão e… Eu era a Wanda Sá! “Só me lembro muito vagamente…”
Daniela Aragão: E esse desejo de seguir carreira enquanto cantora surgiu a partir daí?
Heloisa Tapajós: Não, nunca tive o desejo de seguir carreira de cantora. Era uma coisa apenas de curtição, aquilo era a grande fruição da minha vida. Era a Música! Eu sou apaixonada por música, não entendo a vida sem música. Eu nunca pensei em seguir carreira como cantora e nem imaginava que iria surgir algum artista dentro da minha casa.
Daniela Aragão: E nesse percurso seus irmãos já estavam todos encaminhados?
Heloisa Tapajós: Não, nessa época de 62,63, em que eu tinha 15 para 16 anos, meu irmão caçula, o Mú, tinha 6. Eram todos garotinhos e ouviam Bossa Nova por minha causa. Eu sou uma representante básica da minha geração, de tudo o que todas as meninas da Zona Sul, de Ipanema, ouviam. E aí quando eles começaram a crescer, eu ouvia música com o Sérgio, que é mais da minha idade. Sérgio é produtor musical, produziu vários discos do Chico Buarque.
Com o Sérgio, comecei a ouvir Beatles e algumas coisas que interessavam a nós dois. Da música internacional veio principalmente Beatles, como já estava em mim tudo anterior, o legado da minha mãe e do meu pai. Sou apaixonada por Gerschwin e Cole Porter. E aí começaram a surgir os artistas em casa e eu comecei a estar nessas platéias, Os Novos Baianos, A Cor do Som… O que aconteceu é que houve uma troca muito grande entre nós.
Cada um com seus gostos próprios influenciou de certa maneira a formação do outro ali, pois se ouvia de tudo na minha casa. Depois, quando os meninos começaram a tocar, quando o Sérgio começou a trabalhar na PolyGram, eu já estava formada, fui trabalhar na gravadora Odeon. Eu me formei em Sociologia nos anos 70 e, nessa época, era muito complicado trabalhar com Sociologia. Então, eu fui fazer uma pós-graduação em Demografia.
Era muito difícil trabalhar como socióloga, não havia trabalho… Além do mais, a gente estava no auge da ditadura, era muito complicado até estudar Sociologia. Eu me lembro que eu encapava meus livros com papel pardo para poder pegar com segurança o ônibus Gávea-Leme, de Ipanema para a PUC, porque sabia que Marx, Engels e Rosa Luxemburgo podiam me comprometer de alguma forma… Depois, eu fiz essa pós em Demografia, pois eu precisava chegar ao mercado de trabalho.
Tentei um caminho por aí mas não deu muito resultado. Aí, me apareceu uma proposta para trabalhar no Departamento Internacional da gravadora Odeon, porque eu falava inglês e sabia datilografia. Depois, fui transferida para o estúdio da gravadora, trabalhei um tempo lá também. Eu adorava! Era a época do Clube da Esquina… Depois veio um período da minha vida em que fiquei em função da minha família. Me casei, tive meus filhos Bruno e Marcelo. Vivi plenamente a minha maternidade e serei sempre grata ao Paulinho por isto. Na verdade, fui retomar minha atividade profissional já no final da década de 90, com Bruno e Marcelo já mais independentes.
Daniela Aragão: E nesse ínterim da maternidade, você teve algum envolvimento maior com a música?
Heloisa Tapajós: Profissionalmente, não. Este trabalho que exerço hoje, em 2010, teve início exatamente em 1998. Em 1990, eu comecei a fazer o mestrado em Sociologia aqui na PUC mas não concluí. Fiz os créditos obrigatórios mas em seguida me desliguei do programa. Depois, em 1998, voltei à PUC. Daí conheci a Santuza Cambraia Naves, através do Eduardo Raposo, e ela me recebeu generosamente em sala de aula.
Dei uma reciclada assistindo a algumas disciplinas lecionadas por ela. Santuza foi a minha grande fada madrinha. Tenho algumas pessoas que são fundamentais na minha vida profissional. A primeira delas é Santuza Cambraia Naves. Tive a sorte de ser generosamente absorvida dentro de um lindo projeto dela, “Da bossa nova à tropicália”.
Daniela Aragão: Interessante pois ela une a música ao conhecimento sociológico que advém da formação dela
Heloisa Tapajós: Pois é. Quando nos conhecemos, a primeira coisa que eu disse a ela foi o seguinte: “Nossa! Você é tudo o que eu queria ser! Você junta toda a sua formação em Sociologia e Antropologia com o grande barato da música popular brasileira e tudo o que isto significa!”. Ela me convidou para integrar a equipe desse projeto maravilhoso chamado “Da bossa nova à tropicália”. Este foi o meu primeiro trabalho profissional com ela. Depois veio o seminário na Cândido Mendes, que teve até o Caetano em uma das mesas.
Em seguida, Santuza foi convidada para assumir a vertente “Da bossa nova aos dias atuais” do Dicionário Cravo Albin da MPB. Ela então montou uma equipe convidando outras três sociólogas: Juliana Jabor, Micaela Neiva Moreira e eu. A gente trabalhava sob a coordenação dela. Alguns meses depois, as meninas estavam envolvidas com as provas de admissão ao mestrado, ficou complicado pra elas. Santuza com as turmas da PUC e da Cândido Mendes, e ainda trabalhando em outros projetos, me entregou a vertente e falou: “Agora vai. Peguei esse trabalho pra você. Agora vai sozinha”. E eu fui… Com o aval carinhoso do Ricardo Cravo Albin, outra referência na minha vida profissional.
Então, de 2000 pra cá, assumi a responsabilidade desta vertente “Da bossa nova aos dias atuais” e exerço este ofício, atualizando todos os verbetes e incluindo novos verbetes no ar. Neste trabalho, aconteceu meu encontro profissional com o Júlio Diniz, atuei durante sete anos sob a coordenação acadêmica dele no Dicionário. E Júlio se tornou meu padrinho querido, me levou para outros trabalhos maravilhosos, como a pesquisa para o documentário “Palavra Encantada” junto com o Fred Coelho. Então Santuza e Júlio são definitivos na minha vida profissional. Ricardo Cravo Albin também.
Dessa época pra cá, fiz vários outros trabalhos, como a pesquisa de conteúdo e a revisão do texto original do livro “Música, ídolos e poder – Do vinil ao download”, do André Midani. Tenho o maior orgulho desse trabalho, acho fundamental esse livro. Durante dez meses trabalhei na pesquisa, tinha encontros quinzenais com o André na casa dele. André me emocionou várias vezes, chegou a me fazer chorar contando a história da Chavela Vargas. Ele é um grande contador de histórias, o livro é muito lindo. A pesquisa foi em 2004. Depois o André assumiu a coordenação geral do Ano do Brasil na França e, quando se liberou dessa função, escreveu o livro. Aí me mandou por e-mail para eu checar alguns dados, fiz várias notas de rodapé e a revisão do texto original.
Daniela Aragão: Você acha que tende a crescer, ou seja, ganhar cada vez mais lugar e respaldo a música popular brasileira no meio acadêmico? Você acha que tende a ampliar esse espaço de discussão, de respeitabilidade, de crítica?
Heloisa Tapajós: Com certeza. Tem o José Miguel Wisnik e o Luiz Tatit, em São Paulo, Júlio Diniz e Santuza Cambraia Naves, no Rio, e vários outros acadêmicos super talentosos se dedicando a estudos nessa área.
Daniela Aragão: Não temos ainda aqui na PUC uma cadeira chamada Música popular brasileira
Heloisa Tapajós: Como não tem nas escolas de ensino médio. E isso é da maior importância, esse estudo da música popular brasileira, digamos assim, a parte historiográfica, isso deveria existir desde o ensino médio. Falta muita informação. Eu me considero uma pessoa privilegiada, pois tive a informação dentro da minha casa. A formação do nosso gosto musical está em função daquilo que ouvimos.
Na minha juventude, a televisão era um veículo de comunicação de massa importante, me permitiu ouvir o Caetano, o Chico Buarque, os festivais de música… Hoje essa questão é complicada, salvo algumas exceções, como aquele programa maravilhoso do Chico Pinheiro. Ele faz um trabalho bonito na TV. Hoje em dia, eu nem ouço rádio mais. Por outro lado, tem cada disco que eu recebo que eu fico encantada. E fico impressionada como aqueles discos não estão sendo ouvidos por milhões de pessoas…
Daniela Aragão: Tem a Rosa Passos por exemplo que é uma cantora fantástica e quase ninguém conhece
Heloisa Tapajós: Pois é, Eveline Hecker, Jackie Hecker, duas cantoras super talentosas. Marianna Leporace. Muitos trabalhos maravilhosos. Alberto Rosenblit, Dôdo Ferreira… Nem dá pra listar. Mas hoje se tornar visível não é como antigamente. Agora é tudo uma questão de mídia, de mercado, e com essa coisa da revolução digital ficou tudo diferente. Agora, que a nossa música continua linda, continua. Isto eu digo de peito cheio. Tem coisas maravilhosas sendo feitas hoje.
Daniela Aragão: Para voltarmos e encerrarmos a questão do cinema é interessante frisarmos que nenhum desses filmes sobre música foram filmes que exploraram um certo caráter folclórico ou fetichizante da música popular brasileira. São filmes que respeitam a essência do artista, a essência do Tom, do Vinicius, do Macalé. Que não é uma proposta assim, digamos, vamos atingir o mercado mostrando um Macalé porra louca estereotipado e tal.
Heloisa Tapajós: E quero que venham por aí muitos outros documentários, eu até tenho a ideia de fazer um. Na verdade, pretendo escrever um livro que poderia gerar um documentário, já tenho esta pesquisa finalizada, uma parceria com o Maurício Gouvêa.
Daniela Aragão: Seria interessante fazermos um documentário enfocando as compositoras brasileiras como Sueli Costa, Fátima Guedes, Ana Terra…
Heloisa Tapajós: Pois é, tem que ter este registro. E a gente trabalha com isto, não é Dani? Temos que manter a memória viva. O mais incrível nesse país, que é um país multicultural, multimusical, é que na verdade há espaço para tudo. Se você me perguntar qual música que mais gosto, eu não sei. Vou te dizer várias.
Na música, como em qualquer outra manifestação artística, o que importa é a qualidade, não o gênero. Eu estou mais ligada nessa vertente da bossa nova, do jazz, mas tem outras coisas que eu adoro. O disco da Maria Gadú, por exemplo, eu estou apaixonada. Acho essa menina um talento, ela sabe o que está fazendo, tem muita personalidade pessoal e musical. Mostra um trabalho autoral, é bonito, eu estou encantada. Enfim, tem muita coisa vindo por aí.
Daniela Aragão: E qual o trabalho atual?
Heloisa Tapajós: Continuo com minha função de pesquisadora titular do Dicionário Cravo Albin da MPB, este é um trabalho que me toma bastante tempo, de atualização de verbetes e produção de verbetes novos. Sou também pesquisadora titular do Núcleo de Estudos em Literatura e Música (o Nelim), aqui na PUC. E em abril recomeço meu trabalho na produção artística da série “Sarau Repsol”.
Daniela Aragão: E você não deixa de ser uma referência na pesquisa sobre MPB.
Heloisa Tapajós: Eu não recuso trabalho (risos).
Daniela Aragão: Adorei Losinha. Acho que os papéis invertidos funcionaram rs.
Heloísa Tapajós: Pois é… Também adorei! Super obrigada, Dani.
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** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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