sexta-feira, dezembro 20, 2024

Mia Couto: “a tribo de contadores de histórias”

Você tem contado histórias para seus filhos? Histórias de sua família, de sua vida, de seus livros favoritos? É difícil falar sobre a importância das narrativas nas vidas das crianças, mas existe alguém capaz de discutir a arte da contação e da escuta com a poesia necessária para esta bela tarefa: Mia Couto.

Nesta entrevista especial, ele foca neste que é um dos seus mais recorrentes e adorados assuntos, o valor das histórias na infância: “quando a criança pede ao pai, à mãe ou a alguém que lhe conte uma história, ela nunca é exatamente repetida. Há ali uma recriação e a criança percebe que esse momento a torna também criadora.”

Gostaria de perguntar sobre o seu processo de escuta. De que forma começou a escutar essa oralidade que transpõe para a palavra escrita?
Mia Couto: Começou em casa, quando começa tudo. Havia ali essa tentação de escutar e vivia-se em um ambiente de histórias. Meus pais, sendo imigrantes portugueses, eram contadores de histórias e sofriam daquele mal da saudade, então tinham de reinventar o país que deixaram. As primeiras grandes viagens que fiz foi por meio da escuta dessa narração. Também havia outra coisa: eu era o que ficava calado, os meus irmãos falavam. Digamos que percebi que havia quase uma repartição de funções. Cabia a mim escutar, e isso foi uma grande escola.

Quando o senhor começou a achar que era hora de transpor essas vozes para a escrita?
Mia Couto: Essa África onde eu vivo é uma sociedade que escuta. As pessoas escutam os outros e, na conversa, há uma distribuição de tempos: o tempo da fala e o tempo da escuta, como se por turnos as pessoas soubessem o que têm de fazer.

Acho que houve um momento em que eu, já jornalista, fui tentado a escrever as histórias que escutava. Essas histórias estavam tão vivas, tinham tanta força, que pediam que fossem transportadas dessa oralidade para a escrita.

Mas aí percebi que a própria escrita tinha de mudar. Aquela que eu sabia e reconhecia não acomodava essa riqueza, essa coloração e, sobretudo, a música, a prosódia. Comecei a procura de uma escrita que fosse plástica e permitisse essa inundação da oralidade.

Fiz um primeiro livro (Vozes Anoitecidas, 1987) já muito influenciado por um angolano chamado Luandino Vieira, que abriu portas à oralidade da sua cidade, Luanda, e li uma entrevista em que ele fazia referência à influência de João Guimarães Rosa em seu trabalho.

Então, fui à procura de Guimarães Rosa. Nos meus livros seguintes, como Estórias Abensonhadas (1994), já tive esse encontro, que realmente foi importante porque havia ali uma legitimação: é possível fazer isso, é possível deixar entrar essas vozes.

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Mia Couto – por Pedro Manaças

Em sua conferência ao Fronteiras do Pensamento, Edgar Morin disse que a poesia da vida é mais importante que a felicidade. O senhor concorda? Acha que falta poesia no mundo?
Mia Couto: Provavelmente a felicidade implica sempre uma poesia do mundo. Não sei o contexto dessa frase, mas dita assim parece que há uma dicotomia entre felicidade e poesia.

Não vejo outra maneira de reconquistarmos um sentido de felicidade que seja pleno, que não vá por esse caminho de nos restituir um olhar poético. O olhar poético não é alguma coisa que tenha a ver com a poesia escrita ou como gênero literário, mas tem a ver com aceitarmos que essa linguagem dos sonhos é uma linguagem válida, que nos ajuda a ler o mundo.

O senhor mencionou o perigo de entregar a máquinas — como televisão, computadores e tablets — a tarefa de contar histórias às crianças. Por que isso é perigoso e como reencontrar o tempo para contar histórias?
Mia Couto: Acho que é perigoso, porque contar de histórias não é simplesmente transmitir de alguma coisa que já está feita. No momento em que se conta a história a alguém, não há ali uma escuta mecânica, mas sim qualquer coisa que cria, sobretudo, a construção de uma relação entre pessoas e, obviamente, a máquina não pode fazer isso.

A construção dessa relação interpessoal e do apetite por ela marca: é como se a história existisse só para criar essa rede, essa capacidade de estarmos juntos, de escutarmos, de sermos outros.

Claro, há um momento em que a máquina pode estar ligada e cumpre a função de “anestesiar” a criança, mas falo é da ausência do resto. A máquina passa a ser a exclusiva ligação com a fantasia, e a criança é colocada desde o princípio só como consumidora de uma imagem que já está feita em definitivo e ela pode voltar e ver da mesma maneira mil vezes.

Mas quando a criança pede ao pai, à mãe ou a alguém que lhe conte uma história, ela nunca é exatamente repetida. Há ali uma recriação e a criança percebe que esse momento a torna também criadora.

Entre as suas identidades está a de biólogo, e o senhor já classificou a biologia como uma “indisciplina científica”. Como essa identidade entra em sua literatura?
Mia Couto: De uma forma que é absolutamente vital. Está onipresente aquilo que a biologia me entrega como uma linguagem e uma maneira de escutar.

A biologia prolongou esse apetite que tenho de escutar o mundo e de perceber que há ali vozes que tinham sido anuladas por certa visão antropocêntrica de que somos nós os únicos que temos alguma coisa a dizer. A maneira como abracei a biologia foi nessa procura de perceber linguagens e aprender códigos.

Hoje, sem ser de uma maneira metafórica, escuto a árvore, a planta, o bicho, porque de fato todas essas entidades querem dizer qualquer coisa além, não é? E por isso assumem cores e cheiros e diferenças de forma que me agrada muito escutar.

A literatura pode ser uma ponte para nos ajudar a refazer esses encontros também do ponto de vista da natureza?
Mia Couto: Sem dúvida. Assim como a biologia, porque é também uma narrativa que tem feito descobertas que deviam ser mais conhecidas nessa educação para nos ajudar a descentrar-nos de nós próprios.

Por exemplo, as recentes descobertas genéticas que mostram o quanto temos de não humano, o quanto de nosso material genético não é exatamente humano, o quanto da nossa composição celular e da constituição física devemos a outros que estão dentro de nós, e que não são tão outros assim, porque, se os tirássemos, morreríamos em segundos…

Dizemos que essas bactérias e esse mundo de micro-organismos são meros hospedeiros que estão dentro de nós. Mas percebermos que eles não são simplesmente hospedeiros, são de tal maneira simbióticos que nós somos eles, é uma espécie de cambalhota e de reviravolta do ponto de vista quase filosófico na maneira que apreendemos o mundo.

Por que a escolha por esse caminho chamado literatura?
Mia Couto: Não escolhi a literatura, escolhi a escrita, que é provavelmente outra coisa. A construção que fizeram da escrita me parece que a complicou muito, a intelectualizou e construiu um edifício com vários andares e hierarquias. Quando começamos a escrever e a querer usar a escrita do ponto de vista criativo, estamos muito longe da escolha dessa grande construção e dessa grande estrutura que é a literatura.

Eu sou salvo por ser várias coisas, e sempre que tenho de enfrentar “a” literatura, que depois se manifesta nessas coisas muito solenes dos congressos e das conferências, puxo logo o chapéu de biólogo…

Esse universo me apraz, mas na maior parte das vezes é uma grande chatice. Estão ali os grandes estudiosos, os filósofos, os próprios escritores que, algumas vezes, dão demasiada importância a si mesmos e àquilo que fazem, e estou sempre a pensar qual o momento que tenho para escapar (risos). Esse discurso parece uma arrogância disfarçada de humildade, mas na verdade não sinto que pertenço a essa construção. Sou mais de uma pequena tribo que é a dos contadores de histórias, e podem fazer isso mesmo sem usarem da escrita.

Entrevista concedida a Paulo Hebmüller/Brasileiros (8.11.2014)

:: Fonte: Revista Brasileiros

Saiba mais sobre Mia Couto:

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