O táxi ia rodando devagar pela rua mal iluminada, para que eu pudesse ir vendo os números das casas. Quando vi o 108, mandei parar. Tinha de ir ao 250 e perguntar por dona Judite. Era quase certo que não me seguiam; de qualquer modo não convinha parar o táxi diante da casa para não chamar a atenção. Tive, além disto, o cuidado de deixar o carro se afastar sem que o chofer pudesse ver a casa em que eu entrava. Naquele tempo vivíamos cercados de precauções. O menor descuido era a prisão – e as notícias que vinham lá de dentro eram de fazer tremer.
Andei pela calçada. Era uma rua sossegada, em um bairro onde antigamente viviam famílias ricas. Agora os ricos moravam em outras partes da cidade, e aqueles casarões envelhecidos, com seus parques de grandes árvores, pareciam dormir. Uma vez ou outra passava um auto; depois o luar aumentava o sossego da rua.
Apertei a campainha. Uma mulher gorda me disse que fosse pelo jardim, ao lado da casa; era uma porta que tinha uma escadinha nos fundos.
Ao bater, ouvi um rumor lá dentro. Depois senti que alguém me espiava pela veneziana, sem dizer nada. Bati outra vez. Ouvi ainda uns rumores dentro do quarto e, por fim, uma voz nervosa:
– Quem é?
Marina não me havia reconhecido e com certeza estava inquieta. Tranquilizei-a:
– Sou eu, Domingos.
A porta abriu-se.
Tinha visto Marina poucas vezes, sempre em companhia do marido, na rua. Nunca havíamos trocado mais de duas ou três palavras. Não se podia dizer que fosse bonita, mas era agradável com seu ar um pouco seco, um pouco nervoso, e seu jeito de vestir-se com severidade. Agora estava diante de mim e não pude deixar de sorrir quando a vi metida em um macacão.
– Trago notícias do Alberto.
Dei o recado que um político solto no dia anterior havia trazido. Alberto mandava dizer que estava bem, que há muito tempo já não o interrogavam, e que não tinha nenhuma esperança de ser libertado tão cedo. Era bom que ela tentasse sair do Rio, onde podia ser presa a qualquer momento, e fosse para o Nordeste, onde morava sua família. A viagem de avião ou por mar seria impossível. O melhor era ir de trem até Belo Horizonte e seguir para Alagoas pelo São Francisco. Havia uma pessoa que podia arranjar uma parte do dinheiro, e um endereço em Belo Horizonte onde talvez conseguisse mais. Era preciso abrir o caixote de livros. e queimar um papel que estava dentro das Poesias de Olavo Bilac. Dei-lhe um número para onde devia telefonar.
– Acha que eles vão deixar o Alberto preso muito tempo?
Dei minha opinião com sinceridade. Alberto estava comprometido. Quando o pegou, a polícia não sabia grande coisa dele, mas lá dentro sua situação tinha piorado muito. Parece que tinham aparecido umas histórias velhas, de São Paulo…
– E você, como vai?
Ela fez um gesto desanimado. Podia continuar naquele quarto com direito a comida, mais uns oito dias. Já não tinha dinheiro nem para cigarros. Ofereci-lhe dos meus:
– Não sabia que você fumava.
Não fumava antes. Mas ali, obrigada a ficar dentro do quarto dias e dias, semanas e semanas começou a fumar. Há mais de três meses que não saía. Andava apenas pelo velho e pequeno parque, nos fundos da casa, quando não chovia. Havia lido todos os livros e estava cansada de ler.
– Isso aqui é pior do que prisão. Às vezes tenho vontade de sair, tomar um ônibus, andar por aí, ir a uma praia…
Arriscara-se a ir a um cinema do bairro, e quase morrera de medo. Na volta, um homem a seguiu. Teve certeza de que ia ser presa; quando estava perto de casa, o homem, mal-encarado, apertou o passo e a deteve, tocando-lhe o braço com a mão. Parou, trêmula, e logo saiu correndo e entrou em casa; jogou-se na cama chorando, num desabafo nervoso. O homem lhe havia feito uma proposta amorosa…
Contava essas coisas sentada na cama, um pouco excitada; e estava engraçada assim, metida no macacão do marido, com uma régua na mão, contando o seu susto. Rimos, mas logo ela se pôs a andar no quarto para um lado e outro, batendo com a régua na coxa.
– Que é que você acha que devo fazer?
Acendi um cigarro. Fazia calor. Na parede havia um quadro sem interesse, de um pintor amigo do casal. Ela pensava em procurar alguém que fosse amigo do governo. Talvez o doutor Antunes conseguisse…
– Também está preso.
– O doutor Antunes? Não é possível!
Vi que estava mal informada do que acontecia, e lhe dei várias notícias. Nenhuma era alegre. Sentou-se novamente na cama, batendo com a régua no joelho. Ficamos em silêncio. Achei que devia me despedir, mas ela me deteve:
– Espere, quero saber de uma coisa…
Perguntou-me pelos Amaral, se era verdade que a mulher tinha se suicidado. Era boato, ou pelo menos, parecia. Havia quem dissesse que o casal estava no Paraguai; outros diziam que ele estava preso no norte do Paraná, em Londrina…
Surgiram outros nomes. Eu quase não podia dar informações sobre ninguém, e muitos eu não conhecia nem de nome nem de vista. Voltamos a falar de Alberto. Ela havia perdido o nervosismo; falava agora no seu tom habitual, um pouco seco, um pouco distante. Falava do marido e de si mesma como se estivesse examinando um problema alheio, com frieza e lógica. Tinha na gaveta um velho Guia Levi, e consultou preços de passagens e horários. Certamente deveria tomar o trem em alguma estação do estado do Rio, se resolvesse ir para o Norte.
– Vai?
– Isso é que estou pensando. Em Alagoas posso ficar na fazenda de minha tia, perto de São Miguel. Ali não haveria nenhum perigo, mas…
Voltou a perguntar se não haveria mesmo nenhum jeito de fazer alguma coisa pela libertação de Alberto. Talvez aquele ex-deputado, amigo do Amaral, pudesse…
Balancei a cabeça. A polícia não estava soltando ninguém. Prendera gente demais, inocentes e culpados, e enquanto não interrogava todo mundo, não apurava as coisas, não queria soltar ninguém. Uma ou outra pessoa conseguia sair quando tinha proteção muito forte e estava completamente inocente. Alberto já fora preso antes, era um elemento marcado. A única esperança estava na mudança que diziam que ia haver no Ministério. Mas estavam sempre dizendo essas coisas, e ninguém saía do governo. Dava a impressão de que ia ser assim eternamente…
– Que coisa!
Voltou a falar de Alberto, contou detalhes de sua prisão. Ela havia escapado por milagre. Mas estava ali, sozinha, sem poder sair de casa… Começou quase a lamentar-se e subitamente pareceu de novo tranquila. Os cabelos despenteados e o macacão lhe davam um ar ao mesmo tempo gracioso e cordial de rapazola. Devia ter uns trinta anos. Agora sua voz parecia ter cinquenta:
– A situação é esta: se não fosse por causa do Alberto eu poderia ter fugido para o Sul. Mas perdi a oportunidade. Mais tarde, na hora de alugar este quarto, estive quase resolvendo outra vez fugir. Mas queria esperar Alberto… Está visto que não posso ficar esperando a vida inteira. O senhor acha que há possibilidade…
Era engraçado que me chamasse de “senhor”, quando começara me tratando de “você”. Mas logo, na frase seguinte, com uma pequena hesitação na voz, voltou a me chamar de “você”.
Levantei-me e procurei com a vista um cinzeiro para pôr o cigarro. Não havia. Abri uma banda da janela para jogá-lo no jardim.
– Posso deixar a janela aberta? Está quente…
Sentada na cama, ela ficou em silêncio. Resolvi ir-me embora, e fiquei pensando se devia lhe dar o pouco dinheiro que tinha no bolso. Eu voltaria de ônibus. Tirei a nota do bolso. Ela aceitou secamente e me deu um aperto de mão rápido.
Sua voz era tranquila, quase fria.
– Obrigada. Se tiver alguma novidade estes dias, apareça outra vez. Meu nome aqui é Judite de Sousa.
– Sei. Tem telefone?
– Não. Ah, um momento! Pode pôr uma carta no correio para mim?
Tirou uma carta da gaveta, meteu-a em um envelope e começou a escrever o endereço. Junto à janela, lá fora, eu via as grandes árvores gordas, beijadas pelo luar, enquanto ouvia o ranger da pena no papel.
Comentei ao acaso:
– Bonito luar…
Ela acabara de escrever o endereço e respondeu, dando um olhar à janela:
– É.
Foi um “é” tão seco que me arrependi do que havia dito, como se tivesse sido alguma coisa inconveniente. Depois de fechar o envelope ela veio para junto da janela onde eu estava. Para ver melhor lá fora, abri o outro lado da janela e a lua apareceu, redonda, branca, entre as copas das árvores. Foi apenas um instante. Ela fechou os dois lados da janela com brutalidade:
– Não faça isso! Estúpido! Não vê que eu não posso com isso? Que estou sozinha desde que Alberto foi preso?
Ficou um momento diante de mim, pálida, os lábios trêmulos; eu não sabia o que dizer.
– Vá-se embora!
Lançou-se na cama, escondeu a cabeça nas mãos e começou a chorar. Os soluços agitavam seu corpo magro e nervoso sob o macacão azul.
— Rubem Braga, no livro “Melhores contos”. seleção de Davi Arrigucci Jr.; direção de Edla van Steen. São Paulo: Global Editora, 2013.
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