ARTES

A escultura de 700 anos que está sendo ‘engolida’ por árvores

Um rosto se destaca através de uma cortina de raízes. Seu olhar é sonolento, tranquilo e aparenta estar lutando contra o lento fechar de pálpebras de pedra. Apesar da presença claustrofóbica da vegetação por todas as partes, um sorriso leve e fossilizado sobrevive na escuridão.

Capturada em preto e branco, essa imagem de fios e pedra – de sombras retorcidas e luzes entalhadas – é estranhamente tocante.

A imagem, tirada pelo fotógrafo de viagem Mathew Browne, foi selecionada para o Prêmio de Melhor Fotografia de História do Ano, cujos vencedores foram anunciados recentemente.

Browne encontrou a cabeça encravada na vegetação durante uma visita ao templo budista Wat Mahathat, construído no centro da Tailândia no século 14, saqueado em 1767 pelo exército birmanês e deixado em ruínas.

O mais fascinante é a sensação de apagamento gradual que parece se acentuar diante de nós – da natureza erradicando cada traço deixado pelo antigo escultor que criou a estátua do Buda há quase 700 anos atrás.

A foto de Browne vibra com a mesma pungência sentida em um cemitério quando os nomes gravados nas lápides vão sendo apagados com o tempo, escondidos por trás de teias de aranha e musgo.

Mas, mesmo com toda essa melancolia, há uma resiliência curiosa no semblante do Buda.

Olhe mais uma vez para a expressão impenetrável de sabedoria – a estátua parece chegar a um equilíbrio inesperado com as raízes, como se revigorada pela força vital que a embala. De repente, essa relíquia não parece tão ameaçada pelas árvores, mas cuidadosamente esculpida por elas.

No Retrato de Ambroise Vollard (1910), Picasso pintou o negociador de arte em lascas, fragmentando seu rosto | Foto: Pushkin Museum, Moscou, Russia/Bridgeman Images

Suspenso em um quebra-cabeça de dobras geométricas e sombras acotoveladas, o rosto de Buda que parece uma máscara com uma mandíbula angular e um nariz bem definido. Mais que isso, parece uma obra cubista, como se estivesse prestes a se dissolver na densidade das formas que a cercam.

A visão pioneira de Paul Cézanne foi central no surgimento do Cubismo no começo do século 20. Especialmente um conjunto de obras de mulheres nuas tomando banho em um rio, que inspirou pós-impressionistas durante sua última década de vida mas, que só foram exibidos após a sua morte, em 1906, e inflamaram as imaginações de Pablo Picasso e Georges Braque.

Inspirado pela habilidade de Cézanne de cristalizar a carne em pedras esculpidas e petrificar a atmosfera em torno de suas figuras em algo mais ousado e palpável, Picasso começou a se aventurar em novos experimentos.

Entre seus primeiros trabalho que devem a Cézanne está o retrato do negociante de arte Ambroise Vollard, que admirava o trabalho de ambos os artistas e ajudou a promover Paul Gauguin e Vincent van Gogh.

Pela visão de Picasso, o mundo se torna nem orgânico nem inorgânico, mas uma vibração de ritmos.

Tudo acaba entregue a essa energia subjacente. Postos um ao lado do outro, a foto da escultura da Tailândia e o retrato de Ambroise Vollard parecem uma boa combinação. As duas imagens oferecem uma sensibilidade de que todas as coisas, quer estejam vivas ou inertes – enraizadas ou esculpidas – são aspectos de um padrão mais profundo.
A visão fragmentada da pintura de Picasso e o Buda na foto de Browne habitam um espaço compartilhado onde carne e pedra são invocadas em nós de escuridão luminosa e luzes sombreadas.

*Leia a versão original desta matéria (em inglês) no site da BBC Culture.

Fonte: BBC Brasil

Revista Prosa Verso e Arte

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