quinta-feira, dezembro 19, 2024

A estória de Lélio e Lina – João Guimarães Rosa

Na entrada-das-águas, tempo de afã em toda fazenda-de-gado nos Gerais, um vaqueiro de fora chegou à do Pinhém. Era de tarde, sob um rebuço de calor — o quente de chuva — quando as nuvens descem com peso e a camisa se cola em corpo de homem; dia de meio-céu. A pulso fora o esforço: de trezentas vacas parideiras, quantia delas aviavam parição, com a passagem da lua; e as boiadas bravas, trazidas de outros sertões, já ao primeiro trovão de outubro se lembravam de lá e queriam a arribada, se alçando dos enormes pastos sem cercas; carecia rebatê-las. De torna da lufa, a vaqueirama no pátio vinha de desarrear e amilhar: ainda ali os onze cavalos se ajuntavam, todos eles cabisbaixos. Da varanda, seo Senclér tirava conversa com o pessoal. E o vaqueiro foriço apareceu, montado num animal pampa; um cachorro seguia-o.
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De pronto, relancearam o que nele havia a ver, a olho de vaqueiro: rapaz moço, bôa cara e comum jeito, sem semelho de barba nenhum, ar de novidade; com sua roupinha bem tratada: só o chapéu-de-couro baixava muito, maior que a cabeça do dono. Alforjes cheios, saco de dobro na garupa, capa na capoteira; laço estaço — uma “corda” bem cuidada; hampa de vara-de-topar que provava prestança. O cavalo — recém-ferrado dos quatro, relimpo de liso — estadava vistoso: assim alto oito palmos da cernelha ao casco, com as largas malhas vermelhas desenhadas em fundo belo branco. Mal aí o cachorro, esse triste: um miunço, rareado amarelado, mestiço de veadeiro focinho fino preto, lombo indo se eriçando, a costela se mostrando um bocadinho, atrás o rabo revirado. Contra ele a cachorrada campeira arreliou, dente e dente, por rosnando, por latindo — aqueles cães troncudos, rajados ou amarelos, mais bem apessoados, e que os homens procuravam moderar. Mas o magro esbarrara, tão seguro de simples, se alegrando com a caudinha, que os outros esperaram, rodando num diminuindo, e um mesmo ou dois, com menos coragem, que ainda latiam, recuavam para se encostar na beirada da casa.
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O vaqueiro chegado se desquadrou e esquinou na sela, como para um dormido em riba. Mas zás não armando corpo pulou no chão, macio em pé, sem traço. Tirou o chapéu e saudou. Riu de orêlha a orêlha.
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Deixara de propósito cair o cabo do cabresto, e o cachorrinho se sentou, pata em cima, enquanto o cavalo parava quieto. — “Oi guégue!” — seo Senclér falou. — “Meu não é, Patrão. Topei vagueando à avessa no oco do cerradão, em distância de três dias…” “— E estudou isso?!” “— Nhor não. Quis porque quer: eh certo ele já sabia…” Aquilo não era fantasias de vaqueiro.

— “Gente, mas é o fraldo da nha dona Rosalina, o Formôs…” — falou um dos homens. — “Que tempo que sumiço que levou…” “— A coisa, que entendeu faro com qualquer jaguaci-ninga, ou uma lobinha-do-campo…” “— Ou foi o Bereba quem furtou. O Bereba gosta de cachorro…” — outro disse. Por aí também os rafeiros já o toleravam, em torno, reconhecendo-o, apesar de sabe-se lá que cheiros hostís, de silvestre e agreste, em si ele não trazia. — “E a dona é daqui? O bichinho é de estima?” — o forasteiro perguntou. — “De aqui mesmo, umas braças. Lorindão leva, o Lorindão mora em banda…”
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Mas, seo Senclér olhando, o rapaz sentiu que ele lhe indagava a graça. — “Eu sou o Lélio do Higino. Meu pai era o vaqueiro Higino de Sás, em Deus falecido.” “— Está passando?” “— Nhor não. Estou alheio.” “— E, assim escoteiro, vindo donde?” “— Da Tromba-d’Anta.” “— A Serra?” “— Nhor sim senhor.” “— Gado por lá?” “— Muito gado cabeludo, tudo pé-duro de terra-branca. Mas trabalhei p’ra um seo Dom Borel, senhor uruguái, que botou fazenda p’ra boiada de raça fina…” “— Pois aqui o gadame é burro-bruto, a vaqueirada é que é fina, nhe sabe? “ “— Pois sei, sim. Glória daqui corre longe…”

Seo Senclér demorava. Gostava do em-ser do vaqueirinho, do rumo de suas respostas. Se já estava com bôa chusma de pessoal — aqueles ali e mais três no retiro do São-Bento — por-outra a faina concedia de um campeiro a mais, agora o rodavejo repleto, com cabeças de cria e meia-engorda, e ainda quantidade para recria, por chegar, boiadão levantado desse redor de gerais, onde a terra e o pasto pobrejam tanto, que o gado deixado lá às vezes nem cresce, fica de ossos moles, se entortando, no tempo-das-águas em muitos lugares tinham de descer com ele para as caatingas. Ah, dava pena ver, mundo a dentro, tanta vasta de sustento vazio, e o capim verde tão enganoso; as reses roendo as caveiras de outras, muitas morrendo engasgadas; dando um leite magro, o queijo feito uma cortiça de rolha, sem favos amanteigados e gordos; bois ou vacas que destruíam uma parede caiada, com o rapar de língua no lamber continuado; e que pelo resseco do salgado suor se acostumavam a mascar devagarinho o cabelo da cauda de burros e cavalos, até a arrancarem até ao toco. Mas ali, no Ribeirão do Pinhém, e no São-Bento, era a felicidade de terrão e relva, em ilha farta — capões de cultura alternando com pastagens de chão fosfado, calcáreo, salitrado — quase tão rica quanto as do Urubuquaquá e do Peixe-Manso.
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Tanto, que às vezes seo Senclér se reanimava, no entusiasmo de que dela pudesse tirar a salvação de seus negócios; mas que, outras horas, num arregalar de tristeza, pensava achando que talvez ele mesmo não soubesse aproveitar tudo aquilo, e tinha medo de ruína próxima.
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Num contempo, continuava: — “Travessou o rio no Passo-do-Porco?” “— Nhor não: no Porto-do-Quim-Reimundo.” “— Mas a Tromba-d’Anta é longe, e mais perto de cidades. Por que é que quis vir p’ra os Gerais, então? Por lá matou alguém de crime?…” “— Ah cruz-de-jesus, não. Quem havia de querer morrer de minha mão?…”
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Mas o vaqueiro Aristó desejava falar no meio, e sob olhar seo Senclér o autorizava. — “Patrão, se sabe que o pai dele, Higino de Sás, assentou nome de vaqueiro-mestre, por todo esse risco de sertão do rio Urucúia…” — então o vaqueiro Aristó disse. — “Pois, veio por caçar no Chapadão o lume da fama do pai?” “— Também nhor não. Só saudade de destino.” “— Você é solteiro, então?” “— Nhor, sim, solto, solto.” “— Tem arma alguma?” “— Assim, se não é dúvida, um revolvrim meu, na patrona…” “— Disso, próprio, gosto: é arma resguardada. Mim por mim, sou não de cobrar garrucha de algum meu campeiro, por tomar conta. Não quero é desordem… Daí, olhe: será esse cavalinho é muito seu, e pode ser bom no atual; mas aqui o que não falta é re- monta correta e cavalhada: três animais por cabeça de homem, mesmo quatro. E uma sela urucuiana, de vaquejar, mais em regra que essa jereba sua curvelana… O resto é com o Aristó, que é o capataz…”

E assim o vaqueiro Lélio do Higino estava entrado, na forma do uso, como solteiro com passadío e paga, e o mais em nome de Deus, amém. Mas já o jantar era aparecido, e foi mandado repartir gole de aguardente. Porque a chuva não vinha mas ainda podia vir — o curiango cantava, mais cedo e mais rouco, como na entrada-das-águas ele gosta de cantar: — Amanhã eu vou… Amanhã eu vou… E trovejava, repetido, no longe da Serra do Saldãe.
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Aqui Lélio apanhou também seu prato de folha e o garfo; e, enquanto comendo, o primeiro rosto amigo que lhe sorriu foi o de um Delmiro, franco — rapaz mesmo de sua idade, que era retaco, de cabeça rapada. Delmiro ajudou-o no desselar o pampa, e guiou-o até ao quarto-dos-arreios.
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Os outros estavam sendo mó de muitos, davam para se olhar a vulto, não para se ficar de uma vez conhecendo. Mas Lorindão tomara conta do cachorrinho Formôs; e esse Lorindão, branquelo baixote, meio para velho, com alguma barbicha de cavanhá, era um que parava em pé, as pernas tortas, muito abertas — não tirava as esporas: umas imensas nos calcanhares, de cachorro recurvo e roseta rosa-dos-ventos — e avisava, engraçado: — “Vai vigia sua pinga, que os outros bebem tudo embora… Aqui, a gente tem de estar com u’a mão no nariz e outra no lenço…” O alto, ruivado, era Lidebrando, que disse queria aproveitar réstia de luz, e entrou para a arrearia, onde foi fiar seda de vaca, no canzil, para fazer sedém. Soussouza era o que não esperava aqui nem ali, nervoso, pitando sempre, e que perguntava tudo em voz, pondo mão colhendo ao ouvido, por seu tanto de surdastro. E o Pernambo, trigueirão, escuro, de muito semblante, que quis saber se Lélio tinha relógio, e se tocava algum instrumento ou cantava. E mais Placidino, J’sé-Jórjo, Canuto, Tomé Cássio e Fradim — esse baixinho, desinquieto, saído, fazendo muita pergunta falando depressa, como querendo meter alguém em parapatas, e arrumando cara no contra-responder, de jeito de importância.

Também escurecia, de lusco-fusco. E Lélio subiu pelo terreiro, ao fim do pátio, onde passava o rego. Chegou, se abaixou, pegou nas mãos, lavou o rosto, bochechou, bebeu. A água dalí dava gosto, corria fria. De lá, ele avistava o volume dos vaqueiros, sempre à porta da Casa, que riam e conversavam, alguns jogavam malha. Lélio prazia em se lavar, se molhar demorado. Estava de alma esvaziada, forro de sombra arrastada atrás, nenhum peso de pena, nem preocupo, nem legítima saudade. Ia-se dar, no Pinhém. Mas tardara tempo demais, ali com os pés na grama e curvado para o estreito d’água: de repente, sentiu uma ferroada na barriga, outra na perna, e já outra no pescoço. Deu um pinote, e sapateou, se coçando. Pegou entre dois dedos uma coisica raivosa daquelas: — “Pa-pa-rá!…” — que em toda a parte era mesmo a mesma estória — eram as daniscas formigas-pretas de beira de rego, que sabem subir ligeiro às dúzias na gente.
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Lélio sacudiu a água dos cabelos, e veio vindo, voltando. Mas, a meio, esbarrou. Surso, sobre ele um laço descia no ar, jogado com destreza de movimento curto e rápido, de quem está laçando rês pequena no fechado; mas que o colheu sem chicotear, num tirão manso, escorregando — o corpo do couro não se esticou. O laçador medira de atirar e bambear, devia de ser um sujeito de toda competência. Lélio livrara os braços, imediato, e ele mesmo segurou a argola, quando o trem ia cerrar-se, à altura da barriga.
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Abriu bem as pernas. No salteio, entendera: estava alvo de um brinquedo bruto, como nem imaginava que alguém procedesse, a não ser entre meninos e demos. E o que havia era não tropeçar, não se enroscar, não estouvar na corda: não se dar de mostrado, nem joãozinho nem caturro. Pôs mãos à cintura e esperou. Se o outro quisesse teimar, que começasse por derrubá-lo. Ainda escutou a voz do vaqueiro Aristó, que advertia: — “Canuto, faz não! Divertido de homem vai nos aços…”

Durou um momento. Duraram. Enfim, o Canuto gritou de lá: — “Paz p’ra isso, amigo! Brincadeira é por bem, p’ra um aperto de mão e um abraço…” — “Aã, estou aqui, patrício, nem por isso. Agora, traz a iapa, também…” — Lélio contestou. Mas o Canuto veio, sério sendo, ele mesmo retirou a laçada, em fato declarou: — “A gente se reconhece, sincero, que nós dois somos malungos: eu sou afilhado de padrinho Higino, de seu pai…” Podia ser mentira, podia ser verdade. Aquele — um bragado rapaz, alto, narigudo, corado, meio em desengonço, seu comprido pescoço e extraordinário gogó, os olhos arregaladões.
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— “Cujo que faz assim de beócio, mas é escrivão, de mão cheia, resolve qualquer carta que se pede: capricha palavreados no papel, que dá um sentimento certo…” — o Pernambo explicou. — “Ao que é bobalhão e embusteiro…” — opunha o Delmiro, dali a pouco, enquanto alteava a candeia para Lélio, que remexia em seu dobro, dele retirando o de que precisava. Tinha trazido no meio das roupas uma rapadura de geleia-morena: — “P’ra quinhão, com todos…” — ofereceu, passando-a a Placidino, que se afoitara ao pé dali, de cócoras. — “De deveras, mano, que eu governo a custo e justo o reparto…” — um outro disse. Aí o baralho de cartas, sem uso quase. — “Tem os oitos e noves?” — perguntavam. A ver, o Canuto, já meio em nú, mas trançando por largo e cantos, desinquieto, como se com aquelas suas tantas pernas quisesse pular por cima das pessôas, aprovava: — “Eita!, que o do Pernambo já está engrossado de antigo, feito sanfona, a gente nem pode arte de arrumar um bom maço, no truque…” “— Aruê, maço? Tem é gente que, p’ra bebida, cantiga e jogo, serve pouco… Só serve p’ra barrabás…” — discutiu o Pernambo, afundado em sua grande rede de algodão azulão, com bambolins e varandas, que rojavam. — “Tio Pernambo toca violas, alegra o estado de um com modinha descantada…” — o Delmiro atravessou. — “Modinha não é p’ra se alegrar, mas p’ra um se desentristecer realegrado, meu filho de outro…” — invocou ainda o Pernambo, de bambalão na rede, vez querendo por acompanhamento o ninar dos armadores, rangente.
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O quarto-dos-vaqueiros, onde iam dormir, era um ranchão-barracão, desincumbido de tamanho, mesmo entulhado de sacos, latas de leite, pilhas de couro, caixas, cangalhas velhas e peças de carros-de-bois, espalhadas, como que um ali podia achar de tudo. O Placidino deitado noutra rede, de buriti essa, suave mas singela. O J’sé-Jórjo preferia o chão, sua enxerga sobre uma esteira de taquara. A mais dos de Delmiro e Canuto, havia, encostados nas paredes, os jiraus de ripas de buriti, e outros catres, de pau e de couro. Mesmo uma cama larga, alta, estruída, de madeira escura torneada, traste de ricos. — “Dono desta morreu ruim, faz meses…” — observou o Placidino. — “Será que gosta é de-rede? Tem, também…” — o Delmiro falando. Lélio porém escolheu aquela cama de patrões, com um colchão de palha e uma manta, e alguma coisa que parecia um travesseiro. Mas o Pernambo praguejava contra as mariposinhas que buscavam o reflexo luminoso em sua cara chata; e o J’sé-Jórjo assoprou a candeia.

Lélio se estendeu, feliz de seu bom descanso. Já se abençoava de ter vindo para o Pinhém; principalmente, se conseguia solto, dono de si e sem estorvo. Era um novo estirão de sua vida, que principiava. Antes, nos outros lugares onde morara, tudo acontecia já emendado e envelhecido, igual se as coisas saíssem umas das outras por obrigação sorrateira — os parentes, os conhecidos, até os namoros, os divertimentos, as amizades, como se o atual nunca pudesse ter uma separação certa do já passado; e agora ele via que era dessa quebra que a gente precisava às vezes, feito um riachinho num ribeirão ou rio precisa de fazer barra. A tanto sentia falta de uma confusão grande, que ajudasse a um não carecer de curtir a confusão pequena das coisas de todo o dia da gente, derredor. E ter tempo para ir se lembrando devagarinho das melhores horas, consumindo. Avante e volta, gostava de galopar, no campo, o galope, o galope. Assim queria já ter vivido muito mais, senhor aproveitado de muitos rebatidos anos, para poder ter maior assunto em que se reconhecer e entender. A um modo, quando descobria, de repente, alguma coisa nova importante, às vezes ele prezava, no fundo de sua ideia, que estava só se recordando daquilo, já sabido há muito, muito tempo sem lugar nem data, e mesmo mais completo do que agora estivesse aprendendo.
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— “Vou rezar hoje em intenção de meu padrinho Higino, que Deus o cuide e trate…” — proferiu o Canuto, afrontando. — “Ah, está aí o que você, o novo, não viu nunca: vaqueiro rezador…” — o Pernambo glosou. Daí, o Canuto: — “Rezo, tio velho, rezo, em pé e deitado! Sei o reino-do-céu? Tombo um herege, e ainda posso rezar por o vosso avio uma ladainhazinha sem responso…” Os outros, no escuro, riam. Lélio sorriu também, mas porque surpreendia essa bravata do Canuto: se mostrando para que os outros o debicassem, e então poder se demostrar ainda mais forte, de toda zombaria despicando. Até o sussurro de sua rezação se retardava, que nem um cochicho de morcegos. — “Lhér, mulher…” — depois desabafou alto o Pernambo. Ainda quis acrescentar: — “Ai, qualquer uma, gente, agora me servia…” E era. Era em mulher que Lélio estava pensando.
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Na Mocinha que tinha viajado para Paracatú. Ela era toda pequenina, brancaflôr, desajeitadinha, garbosinha, escorregosa de se ver. Quase parecia uma menina. Mas Lélio a escutara um dia responder: — “Olhem, que eu já tenho um quarto de século…” E se transformava, muito séria, de repente, o ar de zangada sem motivos, os olhos paravam duros, apagados, que perto os de uma cobra. Ela não baixava o queixo. Mas, depois, outras vezes, aqueles olhos relumeiavam de si, mudando, mudando, no possível dum brilho solto, que amadurecia, fazendo a gente imaginar em anjos e nas coisas que os anjos só é que estão vendo.
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Os outros — o Assis Tropeiro, o Lino Goduino — nem a achavam tão bonita. — “Só espevitada e malcriadinha, gostando de se sobressair…” — tanto eles diziam. — “E é até que é uma cachucha nanica, sem o ceitil de graça…” — o arrieiro Euclides falou, pelo desdém das uvas, em tom de todo desprezo. Assaz que Lélio se regozijou de ouvir esse parecer, por mais muito. A beleza dela pudesse ficar para ele só, por nada e suspendida, que mesmo assim o vencia pelos olhos. Porque, desde o momento, nessas ocasiões, ele ouviu de si e se afirmou que, sobre bonita, por algum destino de encanto ela para ele havia de ser sempre linda no mundo, um confim, uma saudade sem razão.
Ah, nos dias, bem pouquinho dela pudera ter, ou não ter, pois era moça fina de luxo e rica, viajando com sua família cidadôa; gente tão acima de sua igualha. Ele a via, modo e quando. Sabia que ela não lhe dava atenção maior, nele nem reparava. Assim mesmo, por causa dela, e do instante de Deus, tinha aventurado o sertão dos Gerais, mais ou menos por causa dela terminava vindo esbarrar no Pinhém. Ela doía um pouco.

Os companheiros dormiam. Oco, tão entregue aos passos lembráveis, Lélio se desencontrara do primeiro sono. Estava na Tromba-d’Anta, e um dia não pudera continuar ali. Por conta também de uma mulher, Maria Felícia, dela viu que não estava gostando em ponto de uma decisão; e o marido, um boiadeiro quase ausente, acabara compondo desconfiança. O marido era homem legal de bondoso, não merecia mau revento, qualquer ofensa de desgosto. Lélio pedira dispensa do serviço ao capataz de seo Dom Borel. Mas então lhe deram de último ajudar a levar uma boiada a Pirapora, de donde não precisaria de retornar. Em cidade, o melhor era ir no cinema, tomar sorvete e variar de mulheres, na casa pública. Conheceu um setelagoano, rapaz prestadiço, chofer de caminhão, esse o aconselhou a deixar o campo e aprender aquele ofício, podiam ir juntos por aí acima, até ao Belorizonte. Experimentou com o caminhão: não tinha nenhum jeito. Nem queria. Achava que precisava mesmo da vida de vaqueiro, era o que sabia, o de que gostava. Mas aí, ficou conhecendo também um moço montesclarense, que era arrieiro de profissão, estava de saída, com uma pequena tropa de comitiva, roteiro do Paracatú. Perguntou se ele queria vir junto. O montesclarense se chamava Euclides, levou-o ao Assis Tropeiro, seu patrão. E então Lélio viu, na rua, o Assis Tropeiro conversando com o pai da Moça. E viu a Moça. Naquele momento, o que ele sentiu foi quase diferente de sua vida toda. A modo precisasse de repente de se ser no pino de bonito, de forçoso, de rico, grande demais em vantagens, mais do que um homem, da ponta do bico da bota até o tope do chapéu. Tinha vexame de tudo o que era e do que não era. Ave, na vivice do rosto daquela Mocinha, nos movimentos espertos de seu corpo, sucedia o resumo de uma lembrança sem paragens. Dava para em homem se estremecer mais uma ambição do que uma saudade. Ou, então, uma saudade gloriada, assim confusa. Se ela olhasse e mandasse, ele tinha asas, gostava de poder ir longe, até à distância do mundo, por ela estrepolir, fazer o que fosse, guerrear, não voltar — essas ilusões. Ela tinha os cabelos quase acobreados, cortados curto, os pezinhos um pouquinho grandes. E nem o viu. A tropa saía na manhã seguinte, por Paredão, depois do Lajeado. Num pronto, Lélio disse ao Assis Tropeiro uma conversa de que podia ir junto, até à Novilha Brava, de onde se apartava e torava para o norte. Veio, mesmo.
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A Moça, com o pai, o senhor Gabino, a mãe, dona Luiza, um irmão doutor e outros dois rapazes, que eram do Rio de Janeiro. Lélio estava ali para a ver, agarrar de ver, às penas que pudesse, sempre, sempre. Vê-la, e a ouvir, bastava. Primeiro dia, da ponta-de-trilhos vieram até ao Lajeado. — “Será que já é o sertão?” — ela queria saber. O Sertão, igual ao Gerais, dobra sempre mais para diante, territórios. — “Mas já é o Sertão, sim!” — ela queria e exclamava: — “Tanto sol, tanta luz! Este céu é o da Itália…” Ela montava vestida de homem, como um menino. Às vezes dizia engraçadas palavras, se divertia a rodo, com os rapazes. Segundo dia, o trecho era do Lajeado ao Capão-do-Barreiro, onde tem uma vereda grande, com o buritizal, com uma lagôa. Sendo o mês de setembro, o buriti floroso — os altos cachos amarelos de um ouro. — “O burití é a palmeira de Deus!” — ela disse, disse. Lélio se lembrava dos gestos de sua mãe, e, como esses vaqueiros do Alto Urucúia, relatava coisas ao cavalo. Mais se contentava, sem pensamento, perto de tudo. Ela estava com um plastro branco na ponta de um dedo, machucado em qualquer parte. Seu nome era que lindo por lindo, qual retinia. No que não havia risco de ninguém ver, pois já estavam de saída, ele o escreveu, porção de vezes, nas costas das folhas das piteiras. Mas ao cavalinho pampa os nomes que dela disse foram outros: Minha-Menina, a Mocinhazinha, Sinhá-Linda… E vinham na terceira etapa — do Capão-do-Barreiro ao Paredão — lá iam demorar o inteiro de um dia, por descanso e porque a Moça queria encontrar coisas de vista. Ela era elegante sem querer, parece que nem sabia que era. Perguntou a Lélio o nome de um passarinho: era uma maria-tola do cerrado, ele não considerou decente responder uma bobagem dessa, achou melhor dizer que não sabia. Por que não tinha sido um sabiá ou um sofrê; mesmo o quem-quem — que em toda baixada de campo limpo navega, aos pares, pulando atrás dos bois? Os olhos dela rebrilhavam, reproduzindo folha de faca nova. O olhar, o riso, semelhavam a itaberaba das encostas pontilhadas de malacacheta, ao comprido do sol. Como podia se guardar tanto poder numa criaturinha tão mindinha de corpo? Aí Lélio não queria alçar o galho, nem dar-se em espetáculo; mas carecia, necessitava de serví-la, de oferecer-lhe alguma coisa. Como viu que ela desejava sempre provar das comidas e bebidas sertanejas — achara choco o chá de congonha, mas apreciara muito o de cagaiteira, que é dourado lindo e delicado e tem os suaves perfumes. No Porto-do-Cavalo, ele pensou o projeto, mal pôde dormir. Acordou antes do dia, montou e galopou meia-légua, até onde estavam dizendo que se conseguia achar um dôce de buriti, bom especial. Comprou, mesmo com a tigela grande — não queriam vender aquela tigela, bonita, pintada com avoejos verdes e rôxas flores. Trouxe, deu a ela, receoso, labasco, sem nenhuma palavra podida. Ela riu, provou, e sacudiu a cabecinha: disse aos rapazes que era um dôce grosseiro, ruim. Nem olhara mais para Lélio. Mas ele ouviu, desriu em cara cuja, e coube em si pelo resto do dia. Porém, no seguinte, na Fazenda da Extrema, à tarde por um acaso ele pôde ver seus pezinhos, que ela lavava, à beira de água corrente. Demorou agudo os olhos, no susto de um roubado momento, e era como se os tivesse beijado: nunca antes soubera que pudesse haver uns pezinhos assim, bonitos alvos e rosados, aquela visão jamais esqueceria. Custou assentar cabeça. Modo outro não foram todos aqueles dias, que mudavam o estranho de sua vida, e eram dias desigualados, no riso rodante do mundo, da ponta das manhãs até ao subir extenso das noites, com o milmilhar de estrelas do sertão. E força foi que enfim ele apartasse e se despedisse, no partirem do pouso na Fazenda da Novilha Brava, depois do Ribeirão do Gado Bravo, que então ele devia beiradear, rumo das nascentes. Até que se alegrava, nem sabia exato por que, na hora de pedir adeus. Talvez pela importância de ter de ser então notado, de poder dirigir-se altamente a ela, ele risonho e perturbado, em seu cavalo de duas cores. Tanto ela sorriu, estendeu-lhe a mãozinha abreviadamente, nem macia, perguntando-lhe mesmo por que não persistia junto, até ao Paracatú. Ah, sentia, não podia… — ele produziu de responder. Nem tudo podia ser como nós queremos… Mas já ela se afastava, o amesquinhando, de certo, gracejava com um dos rapazes, por último que falou ainda se ouvia: — “…Mesmo porque, ora essa!…”
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Um vivido. O resto era o que-há-de-vir. Lélio não se entristecia, sabia que nunca mais havia de encontrá-la, mas tudo de começo tinha sido mesmo sem nenhuma esperança pequena, ele não era louco, o fôgo é que corre com os pés para cima. Mas também não atinava com maneira de verdade para a esquecer, por mais difícil do que matar uma palmeira ouricurí — que até cortada e caída no chão reenraíza: guarda sua água no profundo. Pensar nela dava a sobre-coragem, um gole de poder de futuro. Mesmo agora, descido no comum da vida, querendo outras mulheres, de carinhos fortes; mas, depois, um instante, primeiro de dormir, pensava nela, ao acautelado, ao leve.

Pensava nela, assim só como se estivesse rezando.
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E ele foi o que antes de todos se despertou — nas frinchas nem clareava — mas acordado de bom repouso, e presto para se afazer. Se estirou ainda um pedação de hora, temporejando. Ouvia os bezerros e esperava os pássaros, e que os companheiros também cobrassem de se mexer. Quando o Pernambo se espreguiçou chamando que se aprontassem, ainda era manhã morcega.
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Não chovera. E na madrugada parda, com Delmiro, Placidino e Canuto, Lélio baixou ao orvalho do pasto pequeno, pelos cavalos — tarefa dos mais moços. A animalada era sã de mansa: compreendiam espertamente os grandes sons em a, e alguns já aplaudiam pés no chão, querendo vir ao curral. Montaram, em pelo, e tangeram os de que precisavam. Aconselhavam a Lélio os campeões que devia escolher para uso, e ele guardou por experimentar à clara entre um preto murzêlo melroado, um branco de pão puro, cambraia, um isabel, um castanho e um entremeado no pingo de pintas: cor-de-pedra e flôr-de-cardo, que o olhara com olhos bons. Mas naquele primeiro dia queria se suprir mesmo em seu pampa — o Agrado — sabido de sim na confiança. Quando chegaram, tocava a arrear; quase todos os casados já vinham aparecendo. Tomava-se café, e a cozinheira velha, Maria Nicodemas, repartia farofa de carne, que cada um levava na capanga. Subiram em sela. Aí qual e qual empunhando sua vara. O vaqueiro Aristó tirava-os a campo. O vaqueiro Aristó era um homem positivo: — “Com Deus, minha gente, que hoje é dia de muito apuro!” “— Se vai é no Saco-Dôce, por começar?” — o Fradim se metia com pergunta, na dianteira. — “Uê, é mexendo que um vai vendo…” — o Aristó não explicava. — “Mas o Lélio ainda não sabe o campeio daqui, sistema da gente…”— o Fradim mais falou. — “Vaqueiro, se vê quem é, é no meio do largo!” — Aristó encerrava. Ele tinha o sestro de bulir com o nariz e os beiços, falando, como um boi revolve as ventas ao pastar.
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— “Não se tira leite?” — Lélio perguntou a Delmiro. — “Por enquanto, o costeio aqui mesmo é a pouco: só para o gasto de casa umas vinte vaquinhas pasteiras, o Ilídio Carreiro, o Zé-Amarel, e até com a ajuda mesma do patrão, logo dão conta… As novilhas que vão parindo ainda estão sendo levadas para o São-Bento…” O dia começava aos tantos, e os gaviãozinhos pulavam no capim, catando gafanhotos. Passarinhos em desarripio cantavam nas môitas e árvores. Torta, ao norte, a Serra do Saldanh’ se desvendava. Delmiro vinha noticiando.

Dizia do Pinhém. Dos apertos em que o seo Senclér ultimamente navegava, por via do despreço em que estava caindo o gado puro zebú: no arranco da alta, ele tinha venturado de comprar touros e bezerras da Uberaba, por um custo fora de juízo. Toleima, baldear reprodutores de marca para ali, por aqueles pastos selvajados, sem fechos quase, sem campo-feito. No durar da seca, o gado se espalhava, por demais, procurando procurando, e então muitos caíam de barranco alto, por quererem comer o capim das bordas. E bastava um bote escondido de cobra, ou uma folhagem de treme-treme pastada em encosto úmido de mato, e estava a rês morta, perda de mais de cem, duzentos contos-de-réis. Pior, mas, era agora: zebú assim, desvalendo, seo Senclér se arrancava pelo, fio a fio, vivia atrás de dáfida e demoratório — ajuda do Governo — e acompridava seu desânimo. Mesmo com isso, muita vez praceava alegre festoso, por ser um homem verdadeiramente, sertanejo de coração em cima. Terra do Pinhém, é que era um braço de mundo. Capim gotava leite e boi brotava do chão… Ali no Sertão dos Gerais nem dava bicheiras, nem bernes: o couro saía de primeira qualidade. A mulher de seo Senclér, dona Rute, era excelência de pessoa, sabia ter confiança em quem merecesse. Ela apreciava o valor dele, Delmiro, mandava que ele tomasse conta, se o seo Senclér andasse atrás de alguma outra saia… De certo que ele não ia delatar, por fazendo feio, nem que visse coisa, de jeito nenhum. Só que convinha agradar à boa dona Rute. Mas, olhe, isso era segredo, segredo de morte, Lélio não podia contar, mas p’ra ninguém… Lélio prometia, e perguntava se os patrões tinham filhos. — “Ah, aqui não tem sinhá-moça… Iaiá nenhuma, aqui não há, o que é o melhor!” Só dois filhos, meninos, que eles tinham, mas estavam em casa da avó, no Curvelo, botados no estudo.
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Mostrava, por onde passavam, casas de vaqueiros. — “Ali, é o Lidebrando. Mulher dele, Benvinda, é filha de Aristó. Eles dois são gente de todo valor de respeito. O Aristó é que merece menos do que tem, mandão-chefe…” Outra, chaminezinha de fumaça acima: — “O Tomé. Ora vive com uma mulata escura, mas recortada fino de cara, e corpo bem feito, acinturado, que é uma beleza sensível, mesmo: é a Jiní, que se chama…” Tomé Cássio, tão moço, o mais mocinho de todos, quase um menino, mas também o mais sisudo e calado — era o melhor topador à vara, entre os vaqueiros dali. — “Ele não tem um tico de nervoso, não pisca, não estremece, não enruga. Tem medo de nada! Boi bravo, com ele, é que acaba não se reconhecendo…” Assim, também, ainda que pandorgas, o Canuto seria o melhor laçador. Cavaleiro melhor, e peão amansador, era Lorindão. Primeiro benzedor, Soussouza: capaz de reformar doença até no rastro de uma rês. E quem entendia regra do gado, no geral, Lidebrando. Mas o que sabia o antigo certo, por riba de todos, por tudo, era mesmo o danado do Aristó. — “Daí, tem o que não é tolo, mas que quer muito ser o que não é, esse espoleta de Fradim…” E de si mesmo Delmiro declarado não falava; mas, conforme discorria dos outros, sentenciando, frisava um riso e um jeito de dizer, que armava ao gabo mais distinto e superior de sua pessôa.
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O sol saía, redondo no chão serrano do fim de leste. Lélio nunca tinha visto tantos gaviões, dos grandes, que vinham no céu e gritavam. Os cavaleiros tomavam pela meia-encosta de um resfriado, e na vereda abaixo os buritis estalavam de verde novo, sob o agarrar de muitos pássaros, remexendo nas frondes, nos cachos de coquinhos mal nascidos, clamando fino e transvoando. Cada palmeira ficava de uma raça: quando era sofrê, amadurecia só de sofrê; quando maitaca, o verde até azulava; os papagaios sarapintavam amarelos pontos; mas as araras mandavam e ralhavam onde queriam, toda a parte.
— Rumo, hoje, é para os Olhos-d’Água. Bom pasto…

Sempre a par com Delmiro, Lélio notava o modo de Canuto — a cara avermelhada, em quadro na cisgola branca, de fino trançado, e enfeitada até com anéis — que de distância vigiava-os, como que sério de ciúme. O Pernambo entoara, pouco adiante, uma trova de três versos. Aquele resfriado rendia longe, seguindo os todos volteios da vereda. Mas, Delmiro, o que ele queria mesmo era falar de si, seus projetos, de sua raiva de não poder prosperar, de ter de remar como pobre vaqueiro. — “Sabe, meu pai foi boiadeiro de renome, e meu avô dono de fazenda, pompeano!” Ele, Delmiro, ainda havia de se fazer, lidava nesse caminho, não baixava o topete por nada nenhum, não se entregava! O que carecia era de um começo de cabedal, para mascatear, revender gados; amouxava, já tinha oito contos-de-réis, a juros, com seu primo Astórgio, em Arinos. E proteção de gente graúda, isto sim, é que era importante. Ainda esperava mais uns dois anos, e então ia para outro lugar — pra Mato-Grosso, ou, agora se dizia que o melhor era o Paraná, quem sabe… De nervoso, pegava a fumar, e cotucar dedo no nariz. A mote, perguntando a Lélio: que planos que tinha? Lélio se atalhava, não estava com disposição para nisso pensar — a vida regulada no estreito o desconcertava, assustava. Por alguma coisa em Delmiro, a gente podia gostar dele; e já era seu amigo. Mas fazia mal aquela sua fúria de tenção, o companheiro recordava ideia de um chaleirão que fervesse, e a fervura fazendo pular a tampa; esse cobiçar, esse ronco interior, de gana encorrentada, chega cheirava a breu, secava os espíritos da gente, dava até sede.

— “E o J’sé-Jórjo?” — perguntou, por desconversa. — “Bugre, de diabo…” “— E o Placidino?” “— Ara, coitado. Idiota…” Delmiro respondia abrutado, como se estivesse dando soco no amigo. Agora, quando se esquentara naqueles pensamentos, parecia tomar raiva de todo o mundo. Mas falava assim sem principal, zangado no instante, por Lélio ter tapado seus assuntos. Tanto, que, voltando rastro, emendava: — “J’sé-Jórjo é companheiro correto, homem que já achou os desgostos da vida… Placidino também é bom rapaz, nunca fez mal a ninguém…” E logo tornava a falar no de antes. Que o perigo era a gente se embeiçar por uma mocinha sertaneja, surgir casamento, um se prendendo e inutilizando para todo o resto da vida. Casar, só com uma fazendeira viúva, uma viúva ainda bem conservada. Mesmo ali no Gerais a gente campeava algumas, que valer valiam. Aí era o que Lélio também devia de ter em cautela: namoro com moça pobre, filha de vaqueiro, era ameaça de aleijão… E ali tinha, por dizer? — Lélio perguntava. Ah, bonitas, em alguma condição, tinha só três: Mariinha e Biluca, filhas de Lorindão; e Manuela — irmã de Maria Júlia, mulher de Soussouza. Com essas, então, ele carecia de medir cuidado! Menos com a Biluca, já noiva do Marçal, filho do Aristó, e vaqueiro também, que agora estava no retiro do São-Bento, porque depois de casados eles dois queriam morar lá, e nas horas de folga ele mesmo ia levantando sua casinha. O Marçal era o melhor de todos, alegre e sincero, Lélio ia ver…
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Lélio escutava, anuindo com a cabeça, se esforçando por guardar, desde logo, todos os nomes e parentescos. Delmiro continuava: — “No São-Bento estão mais dois companheiros, que você vai conhecer: o Ustavo, que vive com a Adélia Baiana, e o José Miguel, solteiro como nós, que alguns tratam de ‘Mingôlo’…” Mas Lélio olhava os adiantes, e tinha alguma coisa no desejo.
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Perguntou, por fim: — “E mulher, mulher no simples, para a precisão da gente? Será que por aqui não tem?…” Delmiro riu, e fez um gesto de poder-deixar; disse: — “Tem as ‘Tias’. Depois de depois-d’amanhã é dia-de-domingo, a gente vai lá. Você está em estado de esperar?” Lélio enfifou. — “Perguntei só por perguntar…” — disse.
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Pela mão esquerda, deixavam o resfriado, para um começo de pasto sujo. Aristó, esbarrado acolá, esperava que todos se rearreunissem, determinava o rodado do vaquejo. Era para se ajuntar de arrebanho tudo o que fosse possível, bater a gadaria para os currais. — “Pra o sal…” — arrazoou Delmiro. Com o sal, venciam seu sentimento. Se não, se iam: — “Chuva forte endoidece esse trem: faz boi achar saudade da querência. Foge. Corta uma reta…” Longe dali, que nem perguntando e pedindo, uma novilha corneteou. — “Tom em tristes…” — caçoava o Pernambo, atando as tiras de couro do jaleco. Aristó fechou a cara. Andaram. Vararam um cerradinho. Depois, era o retombar do campo, desconforme. Ali desembocaram, passo a dois, passo a três. Reses se avistavam, que comiam. Mais remoto, um magote vasto. — “Oi, os semoventes!” — Soussouza saudou. Aristó, adiante, tardou um momento, mão em pala. E mandou que se abrissem. — “Você fica perto de mim…” — disse a Lélio. Iam contra o vento. Era um espalhar-se dos vaqueiros, formando as grandes malhas de uma rede. Pronto, sabiam: sem um tranco, sem tinir freios, sem sacolejar caçambas, sem ranger selas; mesmo fazendo os cavalos escolher o chão a dedo curto. Ensinavam mansidão.

Além, nos extremos dum arco, só os chapéus de J’sé-Jórjo e Placidino apareciam, ondulando por sobre môitas e macegal. Com um gesto alto, Aristó enviava, seguidos, três comandos. Lélio guardou, de aprendido; que aqui tudo era outro uso. Dôcemente, desdemente, de lenta subida, começavam a aboiar.
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O gado entendia, punha orêlhas para o abôio, olhavam, às vezes hesitavam. Uns furavam embora, às pragas. Ficavam para depois. Mas o grosso da parte restava, se englobavam em manada extensa, obedeciam de vir. Uns dois centos, sem menos, e Soussouza, Fradim, Placidino e J’sé-Jórjo, que se dividiam dos companheiros, bastavam para tomar conta deles, conduzí-los lá.
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Os outros tornavam a cerrar-se, para as ordens de Aristó. Verificavam-se. Lélio acertou barrigueira e sobrecilha. — “Agora é que é com a mãe de Deus; menino, tu vê…” — o Lorindão lhe falava. Aí era, à macha. Galopavam, atalhavam, perseguiam, cercavam. A Lélio pesava a estreita presença de Aristó, que o punha em prova. Dentro dum bando, só um touro expedia inquietação, o todo a grosso. — “Caminha nele e aparta!” — Aristó mandou. Lélio sopesou a vara e atirou o cavalo contra aquele, topou-o de ferrão no focinho; que ele furiou, depois fugiu. — “Vamos atacar de laço…” Entregavam as varas ao Pernambo, pegavam sendos laços, se botavam. De repente, enquanto corriam emparelhados, Aristó atirava o seu e logo abria para o lado, a voo, que quando. Mais um momento, e Lélio teria dado na corda esticada do laço, e caído “na ronda”. — “Êp’ ôp’!” — sem estacar se desviou por sua vez, banda oposta; e também atirou: o touro estava em dois laços! — “Tacou bom, mocinho! Duro…” — Lorindão louvou. Mas Lélio cobrou tempo para raiva.
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Aquilo do capataz tinha sido tramoia malina, fora de regra, estratagema de vaqueiros desavindos, só em porfia. Por causa disso, muita vez se traçavam rixas, no sangue, na faca. Reteve-se de piores palavras; o mais que resmungou: — “Diacho, aqui é no estatuto coiceiro…” E Aristó, encarando-o a sério: — “Dou garupa, mas não forro traseiro do cavalo…” Lélio ainda desabafava: — “Por via dessas…” Mas Aristó não saía do sossego: — “Pega com Deus, que tu pode…” Os outros se cosiam de rir. A Lélio o que o irritava mais era a laçada de Aristó ter provado melhor que a sua — apanhara os chifres sem enredar orêlha. E ele sabia que o capataz o estava puxando debaixo de vistorias. Que gente… E Canuto: laçar era aquele — fazia o que queria, o tudo, tudo. Canuto laçava até para trás, mal espiando por cima do ombro. Ou rezava o pelo-sinal, depois nem boleava, ou só riscava curto, e avisava: — “Um rodopio por riba da cabeça deste, e ele fecho estreito nos pés dos chifres, a argola vai estalar no esquerdo…” E era. — “Aprendeu com sucurí, ô?” Um estiro de relâmpago, e era. Ou aquela ida no ar, vagarosa de-propósito, sirripiando curvas lado e lado. E era! Laçava e fazia qualquer touro virar as patas para o ar. Canuto mesmo se festejava, pinoteando na sela, dando gritos de doido. Parecia um boneco. Assoviava. Ô gente do Urucúia, ô gente!
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— “Alevantou!” Um zebú ruim se revoltava. Se plantava num terro mole de chão, em cima de formigueiro, querenciava, escarvava — ficava ali cavando-e-medindo, despachando baba por suas costas. Era a hora de Tomé Cássio. Ele desembainhava a ponteira do ferrão, ia apear para atacar, num resumo tranquilo, feito viesse apanhar alguma fruta em árvore. O zebú abria o furro daquele berro, fundo um arquêjo, a barriga toda encolhida — ele puxava todas as entranhas. Mesmo na claridade do dia, aquilo toava agouro feio de luto, o mundo ficava preto. Sem pensar, Lélio gritava que deixassem para ele, entestava. Indireto, pelo receio de melindre do companheiro, mesmo assim Delmiro conversava um aviso: — “A carga dum boi erado desses é de assustar qualquer um, mesmo…” Lélio não queria ouvir. Já estava a pé, ferrão nú, vara em trato. Começava posição, afastava zangado o Pernambo e Delmiro, que queriam ajudar. O touro alteava cabeça, tomava ar, se inchava. Obrando e rabeando, sapateava num lugar só, e tremia-lhe a carne do pescoço. Lélio citava-o, obrigou-o. Ele vinha.

— “Topou, tu! Deu direito!…” — os companheiros conheciam. Mas, não, topar bem era o Tomé Cássio. Mesmo antes, a gente já via que o boi que avançava no Tomé era porque queria se machucar. Tomé aparava-o, sem dar de sentir o engolpe, castigava-o no ferrão; cedia, mas estava era deduzindo um galeio leviano do corpo, se torcendo de banda: empurrava com o bichão em terras! E Aristó mesmo não declarava valor certo no lance de Lélio, despicava num muxoxo: — “Por um bom pio, só, tié não vira sabiá…” Que coisa esse capataz Aristó queria então que ele comportasse?! Mordia um morder, retomava o laço. Boi zunia por ali, escouceando, o laço cascava: ô! — colhia a rês pelas duas patas de diante, num tirão lindo. Canuto mesmo mudava de cor, fingia não ter enxergado. Mas aquele em-ponto podia ter sido puro de sorte, Lélio pensava. Também, tivesse errado, que vergonha dele não exclamavam? E Aristó só o olhava de esquinta. Como sozinho, Aristó falava, devagar: — “Correr atrás de boi no cerrado é uma doideira… Mas tem cavalo — este Repuxo-o-Puxo meu — que faz… É bom-de-campo…” E corria. Lélio se jogava também, no seu Agrado, não ficava atrás. Sinuoseavam por entre paus, galhos se quebravam, não largavam do encalço dos bois. Saíam no limpo. — “Dar a cabeceira a uma rês, é que é danado…” Lá ia Lélio, galopava diabo, passava à frente do novilho bravo, repontava-o. — “Tirar gado bagual do capão não é fácil… Barbatão estranha…” Ia. Gosto de ver o fraquear, Lélio a ninguém não regalava. Já tinha conseguido muitos, engarupado, dado muçuca, ou derribado à vara, no homem-a-boi, sendo exato. E esse capataz velho tinha mais primeiro de se cansar! Um boi cerejo berimbou seus chifres, surgindo de detrás do cravo-do-campo, fugiu nos vaqueiros, danou p’r’ ali, varou por todos. — “Atravesso? A laço?” — Lélio perguntou. E não era que agora o Aristó achava de sua bôa-vontade desmerecer? — “Diabo, homem, você quer o tudo num dia só?…” — ele destravava. Bem feito, p’ra mim — Lélio pensou — por estar querendo me proceder; que é que eu tenho, se este ou os outros acham que eu sou ou não sou um vaqueiro de primeiras qualidades? De agora por diante, bem que ele havia de se encolher, fazer só o mesquinho que mandassem, ganhar sua paga sem luxo de influência nem pressa de empenhoso.
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Mas o Pernambo foi quem falou justo: — “Esse boiote é o boi do almoço; companheiro não está vendo?” Tinham fome. E o almoço foi lá perto, à beira dos olhos-d’água, que minavam em borbulho rompido muito alegre, do sopé de um morro amarelo, de terra de chapada, e baciavam em poços quase de azul e leite, onde os passarinhos bebiam e se banhavam. Cada um se servia de sua capanga, calado comia seus punhados de farofa de carne. Os cavalos ganhavam um lombo, desenfreados e desapertados, pastavam. Lélio se cansara, se sentia aperreado. De bom provo seria homem poder se estender mesmo ali no capim, barriga para cima, puxar para a cara a aba do chapéu, e se enviar um cochilo demorado. Por um momento, pensou na Mocinha, a Sinhá-Linda: gostaria que ela pudesse vê-lo topar um boi bravo na vara-de-ferrão, arriscando a vida com toda a coragem; chegava a imaginá-la, ali, molhando os pezinhos outra vez na água bonita do poço, e falando e sorrindo, ou mesmo não sorrindo e calada. Ah, Paracatú era o lugar mais longe do mundo.
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O Pernambo tinha uma esfoladura na mão, dando sangue, Lidebrando emprestava a ele um lenço, para amarrar no lugar. — “Um boi tarouco caíu na pirambeira, aí nessa cabeceira de vereda, e quebrou um quarto. Carece da gente ir lá na grota, acabar com ele, salvar o couro…” — Lidebrando relatava. Mas Aristó pensava, sério. — “Alguma dúvida, compadre?” — Lorindão indagava. — “Ah, um bom gole de café… A gente precisava era de trazer uma chaleirinha, e um coador…” — Aristó suspirava. E todos riam: “…se duvidar, faz uns dez anos que ele promete isso todo dia…” Lidebrando dava notícia também de uma novilha de meia-raça, achada morta envenenada com erva-de-folha-miúda, no danado de um recanto noruego, poucas braças adiante, seguindo o morro amarelo. No calado, todos olhavam para as beiradas do céu. — “Desde os três dias daquela chuvinha desrala, o inverno esbarrou de querer vir chegar…” — agora um falou. Outro dizia: — “O gado aqui ainda está muito desempastado. No Cascavel e no Palmital estão melhores…” No seu voo de ida e vinda, ondulado, um gavião estava a esculpir no ar o dorso de uma montanha de vidro. — Pinhé… Pinhé… — a fêmea chamava, alargando atôas asas e se mudando no galho de árvore, como se fosse um poleiro esquentado. — “Hoje, então, nem uma nuvem, nem um chururú de trovôo…” De ver, a gaviã se aluía e feria o alto, direta para o outro, por se ajuntarem. Delmiro perdera sua faquinha em qualquer parte, pedia a de Lélio, para picar um pito. Tomé Cássio ia até ao seu cavalo, examinava, de certo pensava que tivesse alguma dúvida na pata de diante. — “…No tempo em que eu era moço, a minha voz retremia…” — tarolou o Pernambo. Lélio apalpou suas costas, por debaixo do gibão, uma coceira muito impossível, dolorida. “…Eu cantava no Urucúia, no Rio Preto se ouvia…” Aristó ia ao pôço, bochechar boca. — “Melhorou não, compadre?…” — Lorindão perguntava. Só agora Lélio via que Aristó estava com a cara inchada de dôr-de-dente, bem, de um lado. Mas Aristó não queria delatar de suas doenças. Levantou precisão de alguém ir tocar por uma vaca, a Bambarra — que destraviara no meio da seca, e fazia poucos dias um caçador tinha achado trampa dela e rastreado, no destombar da ladeira duma chã, dali a mais légua, pela beirada do cerrado, já entrando no caatingal. Quem podia?

Canuto logo falou: junto com o Lélio ele fosse, traziam bem. Aristó concordou. De assim, Delmiro alegava — que o Canuto não conhecia a Bambarra, para ir em súcia com o Lélio, novato. Firme no dito, Aristó achou que mesmo desse jeito estava regular. Deu os sinais: a Bambarra era graúda, amarela-mancha, almarada, pinheira, altipada, ancuda, com barbela azebúa e ameaço de cocurute… Estava amadrinhada com sua bezerra velha: uma novilha fígado, pernalã, pintada cinto, e com malha na testa, cunhando até por entre os olhos. E mais com um pinguelo: que zulego que raposo, de chifres agamelados. A vaca tinha marca de ferro. A novilha, não. O boieco, não: boi boiadeiro…
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Lélio nem precisava de fechar os olhos e esforçar cabeça, para formar a figura daquelas reses: no ouvir cada ponto, ia ajuntando, compondo cada uma, da cauda aos chifres, tinha o retrato terminado, a conforme carecia. Estando feitos de descansar e comer, Canuto e ele reamontavam, rumando para a chã do caatingal.
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Canuto tinha pressa de dizer alguma coisa. Por duas vezes chegara a abrir a boca, num nervoso, logo arrependido. Da terceira — Lélio via que aquilo era desculpa de última hora — pediu que queria ver seu laço. — “De quinze braças?” — perguntou. “— Dezoito.” E o Canuto repassava entre os dedos cada mínimo do laço, gabando que era bom, bem reforçado, bem trançado.
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Estava muito sério. De repente, disse: — “Você sabe, aqui tem mocinhas em bom ensejo para se namorar…” Tomou uma folga. — “Tem uma, a Manuela, cunhada do Soussouza… A Manuela está comprometida comigo…” Continuou falando do laço: — “Está bem cuidado, com nenhum tento esgarço, nenhuma fraqueza…” —; por fim entregou-o de novo a Lélio. — “E você? Tinha amor nenhum com nenhuma, donde você veio?” As palavras saíram primeiro que Lélio pensasse: — “Ah, também deixei namoro, mas com uma moça de cidade, tão bonita…” “— Ô gente, praz-me! E como é que foi?” E sem susto Lélio dizia: que ela era bonita e clara, de família importante, muito rica. Se chamava Sinhá Linda. Que gostava muito dele, ela mesma havia dado primeiro demonstração, ele no princípio nem acreditava… Mas a família não queria saber, os dois só podiam conversar escondido… O regime do mundo estava em contra. Por isso mesmo, Lélio tinha vindo para longe, buscar trabalho nos Gerais… E ainda bem que Canuto não ia adiante no perguntar, o jeito dele era mesmo o de achar que aquilo era mentiras. Por Lélio já se ferira, arrependido súbito, enfraquecido dentro de si por ter pregado aquela peta, como se babujasse o puro resguardo de um segredo, que era o seu tostãozinho de ouro. E sua vontade se retesava, num juro, juro, de nunca mais, a ninguém, falar naquilo.

Canuto, por um feliz, começava a conversar, destrembelhado, contando coisas de todos dali do Pinhém. Pelo jeito, ele achava que a um companheiro chegado de novo não havia maior mal em devassar a vida dos outros. Como se houvesse um prazo concedido para isso. Pedia que Lélio guardasse tudo consigo; e dizia boas passagens. Que no Pinhém, de sério, sério, dos homens, só o Aristó, Lidebrando, e o Fradim — mas esse porque Drelina, mulher dele, era uma beleza — até era loura, com olhos azulados. Pena ser tão soberba, de cara amarrada no atual. E apaixonada pelo Fradim, vivia admirando o marido, louvando-o, mesmo na vista de seja lá quem fosse. Drelina era irmã do Tomé Cássio, mas fervia de zangada com esse; o Tomé tratava com ela, mas à casa dela nem ia. Via da zanga, era a mulata com quem Tomé estava morando — a Jiní: uma das mais maravilhas… O Fradim, mesmo, era muito amigo do Tomé, não concordava com aquela birra da mulher; mas tinha muito medo de desgostar Drelina, por isso não dizia nada, ficava de fora. E a Drelina explicava para todo o mundo que não era por causa de ser amigação; tanto que Aparecida mais Aristó e Adélia Baiana mais o Ustavo também não eram casados em civil nem em igreja. Nem por seu irmão ser branco e a Jiní tão escura de pele. Mas porque a Jiní não dava certeza de ser honesta: só estava vivendo com o Tomé de uns dois meses para cá, antes tinha morado com o Tiotino, vaqueiro que não estava mais no Pinhém, fora s’embora de desgosto, por esses Gerais goianos. Mas, mais em antes, dono da Jiní tinha sido — imagine — o seo Senclér, que a comprara de um garroteiro corpulento, um barbado. Esse das barbas, amásio da Jiní, viajava com ela, demorava nos lugares, mandava que ela fosse com outros, para arrancar dinheiro, ele mesmo fingia não estar vendo sabendo. Seo Senclér aí propôs compra definitiva, fechou o negócio por bons contos-de-réis. Mandou até a Jiní em cidade, viagem tão longe, para tratar dos dentes. Por desculpa, quando ela voltou, a pôs morando de mentira com o Bereba, que é um pobre coitado fazedor de alpercatas, e deu ao Bereba uma casinha nova, com muita comodidade. Tolice ter feito tanta despesa, pois não dilatou para dona Rute ficar sabendo disso — por amor de Deus Lélio calasse a boca, mas diziam que era o Delmiro quem tinha levado a ela a candonga — e dona Rute armou briga feia com seo Senclér, ameaçou até de largar dele e ir-se embora… Agora, estava tudo em pazes. Mas era porque dona Rute não sabia do outro resto. Que seo Senclér andava se encontrando com a Adélia Baiana. Por isso, tinha botado o Ustavo para ir com a Adélia para o retiro do São-Bento, aonde ele seo Senclér sempre ia que podia, assim dava menos na vista. E o Ustavo? Uns achavam que ele sabia, mas sendo com o patrão não se importava. Outros diziam que ele não desconfiava de nada, o dia em que os olhos abrisse podia suceder alguma barbaridade… E a Adélia era uma mulherzinha e isso. Também, a segundos: que tem feitiço que mulher logradeira faz, por amor de o marido não saber — dava a ele sete cuspidinhas no café, dava chá de angelim-amargo…

— “E as moças por aqui?” — Lélio perguntava. Ah, mocinha prendada, e mesmo bonita, que o Lélio devia de namorar, era a Mariinha, filha do Lorindão. Uma princesa! A irmã dela, Biluca, estava de casamento tratado com o Marçal, filho do Aristó. Aristó e Aparecida viviam juntos havia tantos, tantos anos, mas não podiam se casar legalmente. Quando foi da boda de Lidebrando com Benvinda, filhas deles, tinham querido regular tudo, antes. Mas ninguém sabia se o antigo marido de Aparecida estava vivo ou morto: derradeira notícia dele era remota — quando estava visto sendo jagunço de bando. Mas que, depois, findo esse, tinha desaparecido, por mais longe que a Bahia.
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Mas Lélio devia de namorar Mariinha, Canuto insistia. No dia-de-domingo, podia conhecê-la. — “Domingo eu vou é ver as ‘tias’…” — Lélio respondeu, rindo grosso. Canuto não discordou. Disse: — “Ah, pois também. Tempo tem, e tudo…” Lélio não sabia ainda quantas, nem bem quem, eram as “tias”. Mas não quis passar por atormentado nem safirento; guardou seu calado. — “Não é por falar, eu até me dou com ele… Mas o Delmiro é muito ambicioneiro…” — Canuto pronunciava. Depois contou do Soussouza: sujeito bom, valente como ninguém. Gostava por demais de beber, mas Maria Júlia sua mulher o trazia estrito vigiado… Diziam até que Maria Júlia dava nele; mas isso era invencionice. Maria Júlia, senhora distinta, enérgica, de boa família, Maria Manuela, irmã dela, também tinha gênio meio forte. Mas ele Canuto gostava dela, estavam assim comprometidos… “— E o Placidino?” “— Bom rapaz. Você sabe, ele há uns três anos, faz, passou por uma desgraça: levou uma guampada de vaca, nas partes, teve um grão arrancado a chifre, Virgem! O bago pulou no ar, foi parar pendurado num ramo de árvore…” “— Coitado! E ele esfriou?” “— Bom, perjudicar de todo a homência dele, não teve esse perigo. Você vai ver como ele vive lá nas ‘tias’. Mas, como todos sabem que ele é roncolho, agora não tem coragem de namorar moça nenhuma mor de se casar…” “— E o Pernambo?” “— Companheirão. P’ra tarrafear boi não tem como ele. E é cantador. Eh, ele sabe tudo quanto é moda e cantiga, os estilos todos…” “— E o J’sé-Jórjo?” “— Ah, você sabe, ele já esteve em cadeia, cumprindo pena. Imagina que ele pegou a mulher, de noite, no bamburral, com outro homem; tocou fôgo nos dois, felizmente não matou nem feriu grave demais; mas, quando vai ver, o homem e a mulher eram outros… E o marido daquela ficou fera, bramou que ele não tinha nada com desonra alheia, em tanto…”
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Quando, pelo avanço do sol, concordaram em que era preciso deixar para outro dia o campeio das três reses amontadas, vieram voltando. Canuto conhecera mais que Lélio o pai desse, seu padrinho Higino de Sás, que vivera ali nos Gerais, sozinho, separado da mulher. — “Homem sucinto, meu padrinho! Botava pimenta na cachaça, mas bebia só um gole, em jejum, antes de sair para a campeação… De cara, você tem alguma parecença com ele…” Canuto dizia que, se não tivesse natureza de gostar tanto de mulher, queria era ser padre. Falava de milagres de Nossa Senhora, falava na Manuela, que tinha olhos grandes, pernas grossas, bem torneadas — com respeito; falava na comida da fazenda, que era bôa e farta, Lélio ia ver. Mas, quando já estavam mais perto de casa, Canuto esbarrou: disse que naquele lugar ia-se apartar de Lélio — precisava de passar por casa do Lorindão, casa da Manuela mesma. O que queria pedir, mais uma vez, era que ele Lélio fosse leal no segredo, com ponto com todas as conversas. Não levar fama. Só contara as opiniões, por amizade, malungos eram. Se despediu e indo para outra banda.
Lélio veio tocando, deixando seu cansaço se desmanchar, escutando o piso do cavalo. Quando ouviu outro, e viu, era o Tomé Cássio, que dum trilho desembocava. Tinham que se emparceirar. Tomé Cássio trazia os couros de duas reses, tirados no campo. Todo com aquele semblante demais circunspecto, ele desnorteava a gente, por espaço. Mas mesmo puxou conversa, perguntou o que Lélio estimava do Pinhém, se estava gostando começado. Tomé Cássio era grosso, de ursos ombros, era alourado, rijo claro. Vinham vindo, parelhos; calados, outra vez. Mas agora Lélio não se agoniava, surpreendia a simpatia daquele companheiro moço. E a distância era pouca, dali mesmo a Casa já se avistava, a varanda alta. Eles voltavam de um dia bem ganho.
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— “A meio cansado?” — perguntou Tomé Cássio, quando Lélio menos esperava. — “Por mesmo. Uma sedezinha…” — respondeu. Quem parecia mais sentido era o Tomé, Lélio reparou como ele estava de olheiras; mas seus olhos manifestavam brilhos, com uma saúde de querer. — “Esbarrar aqui um instantim…” — disse. E era a casinha dele, aparecendo logo depois das bananeiras, Lélio não pôde rejeitar. A Jiní já estava na porta. A gente a ia vendo, e levava um choque. Era nova, muito firme, uma mulata cor de violeta. A boca vivia um riso mordido, aqueles dentes que de brancos aumentavam. Aí os olhos, enormes, verdes, verdes que manchavam a gente de verde, que pediam o orvalho. Lélio tirara o chapéu, e nada se disse a não ser o saudar de bôas-tardes. Nem o Tomé não desapeava; só encomendou a ela qualquer coisa, Lélio não teve assento de entender o que. Ela entrava para ir buscar: desavançou num movimento, parecia que ia dansar em roda-a-roda. No lugar durava ainda aquela visão: o desliz do corpo, os seios pontudos, a cinturinha entrada estreita, os proibidos — as pernas…
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Voltou, com uma cuia de aluá, trouxe-a às mãos de Lélio, que depôs o chapéu no arção e se curvou da sela para receber, abaixando a vista, num perturbo; mas, por mais que os abaixasse, sempre restava alguma coisa dela em seus olhos. A barra do vestido branco, as pernas bem feitas, os pés nas sandálias. O aluá espumava, dessoltando em chío e estalidos seu azedo bom. A Jiní tinha a pele tão enxuta, tão lisa, o narizinho fino como o de poucas moças brancas. Aqueles olhos, a gente guardava de cór. Trazia outra cuia, para o Tomé. Lélio desviava o olhar, espiava — não era palha de buriti, era sapé, o que cobria a casinha? E, mal acabavam de beber, olhava o Tomé, numa obrigação de dar-lhe a entender que ali estava somente por causa dele mesmo, a seu convite apenas. Aquela mulher, só a gente ficar a meia distância dela já era quase faltar-lhe ao respeito. Reandaram.

Dali até a Casa, um pulo, menos trocaram três ou quatro pés de conversa, sem perguntas, sem respostas, sobre o dia, o gado, o campo. Ao lado de Tomé Cássio, as coisas por perto tomavam peso de serem mais notadas, e a gente ia sentindo uma precisão de se ajuizar e medir, de pensar bem o avanço de cada palavra, antes de a pôr solta. Ele era seco e duro, mas no fundo — como uma pessôa regulada no meio de nem alegre nem triste, só cheia de destinos.

Todos já tinham retornado, menos o Canuto; e o Pernambo subira a escada da varanda, porque dona Rute ia curar-lhe o machucado da mão. Mas Lélio nem alcançava bem a ver dona Rute. Só a claridade de uma sombra. O Pernambo descia de volta, repetindo que homem não merece o que mulher no mundo vale. Lélio desarreava e escovava, cuidando do lombo do cavalo. Ah, mesmo seo Senclér só trabalhava e se esforçava porque tinha de zelar por sua mulherzinha, a fim de cujo carinho e bem-querer. E, quando Tomé Cássio machucava a mão, a Jiní tratava dele. O Fradim veio se chegando. — “Companheiro — ele disse — esse estilo de estribar curto não dá muito certo por aqui…” E o Fradim endurecia a cara, meio tombada de lado, ele todo quase esticado nas pontas dos pés, por parecer maior. A vontade que vinha em Lélio era de o lambar a cabresto, até o deixar achatadinho no chão. A tanto a gastura daquela raiva, que não soube responder. Mas o Fradim sacudia a cabeça, muito no poder de si, e tornava: — “E o loro do pé esquerdo está gastado num ponto, por rebentar. É bom você consertar isso…” Lélio não pôde deixar de reparar, e viu que era verdade. Sua ira de desgosto ainda era mais forte, mas agora mudada, num incerto, num meio modo de esperar. O Fradim mesmo vinha pegar nos arreios, apalpava o loro poído, dava outras opiniões, e conselhos, a gente tinha de ver que o jeito dele era prestativo, assim um desejo de ajudar. Se virava para Lélio, com cara alegre, punha-lhe a mão no braço: — “Um dia destes, carece de você vir lá em casa, tomar um cafezinho bem coado!” O Fradim sabia falar depressa, falava certo e bonito, sabia muita coisa. Seria por isso que a mulher gostava tanto dele? Mas Soussouza passava para o rego, vinha resmungando sozinho, zangado com alguém, formava gestos. — “Ao então, menino? Hem, gostando do Gerais?…” — agora ria, para Lélio, um riso bondoso. Modo, logo continuava a caminhar, outra vez naquela zanga, dava dois ou três passos e esbarrava, para chupar forte no cigarro. O Fradim foi atrás dele, segurava-lhe o braço, não se podia ouvir o que falava. Lélio voltou para o grupo dos outros. Mas seo Senclér descera, por ouvir e saber do dia. E, mesmo com o Aristó falando baixo, Lélio conseguiu escutar que o capataz dava aprovo dele ao Patrão, com agradecidas palavras: contava como foi que tinha topado sozinho aquele boi jipilado, e todo o reviro mais que acontecera; que Lélio era assaz vaqueiro feito, com muito merecer. E seo Senclér para ele endireitou, gostou de perguntar de onde ele era e nascera. — “Ondonde? Gouvêias…” — respondeu. — “Cobú?! Gouveiano? Intéira! Minha santa mãe era também de perto de lá… Mas todo gouveiano tem um paletó cor-de-abóbora — se diz-que — e é danado de econômico. Trouxe o paletó abóbora?” “— Nhor não. Nunca tive.” “— Então, você ainda é mais forrado de econômico?” “— Sou sim sou. Mas de economizar só se for miséria…” — teve a coragem de responder. Riram geral. Mesmo seo Senclér. Mas Lélio agora via que ele estava era triste, triste: — “Antes econômico, meu filho, que estragalbarda…” — ainda disse; e aquela tristeza nem parecia ser dele só, se estendia pela fazenda geral. Nem era tristeza bem, era um novo cansaço de todos.
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Mesmo para o jantar, Canuto não tinha aparecido. Também, ninguém falava em sua falta. Só Delmiro, enquanto untava sebo em seu laço, achou de apoquentar: — “Uai, com saudade do bom companheiro? A ver, que hoje prosearam o tanto, que nem deu para trazerem a Bambarra…” Lélio não concedeu importância. Delmiro, ou era rompente de bruto, ou agradado numa sinceridade de amigo, mas não conhecia por-metades. Também, agora a birra maior dele era com o Pernambo, por este estar recontando como dona Rute tinha sido bôa, tinha botado remédio nele, tinha conversado bonitas palavras. — “De em diante, um vai machucar mão todo dia, hem velho, mode ser prinspe?…” Mas o Pernambo era alto em si, não dava milho a pássaro-preto. Só meio-cantava: “…Quem tiver cabeça-inchada, traz aqui, que eu vou curar; com leite de gameleira, resina de jatobá…” Todos tinham receio dessa capacidade do Pernambo, de debochar em verso, o que desse na vontade dele, botava pessôa em coisa e assunto. E Placidino, acocorado perto, tocava um berimbau, que tinha caprichoso fabricado. Desse Placidino, nem se precisava de ter pena: seu espírito curto desanimava qualquer tristeza. Estavam na arrearia. Sereno, calado, Lidebrando fiava cabelos de boi no canzil — rodando o cabo na mão, rodava ligeiro — não eram muitos para saber manejar o canzil assim, e para bem trançar um sedenho de quatro fios-grossos. Fiava, enrolava, tecia. Tinha um balaio, cheio dos pelos de rabo: ele esfiava a seda do boi, jogava ali, ficava um monte — o estrigado, dôce nas mãos da gente, como uma plumagem. O Lidebrando só conversava o que era mesmo preciso. Se não, respondia breve, mas de muito bom modo. Para aquele, tudo era sério e medido, sem descuido, sem pressa. Lélio gostaria de ser assim. Tudo em Lidebrando estava certo. Um homem desse feitio, podia viver em qualquer parte, tudo não variava. E a gente, aqui nesses Gerais, estava tão longe de tanta coisa!
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Lélio não gostaria de voltar para a Tromba-d’Anta, as pessôas de lá, bôas ou ruins, faziam só uma lembrança simples, de mistura. Maria Felícia, tinha gostado dela, no começo, e nem agora ia ser ingrato de a renegar. Mas Maria Felícia era diferente, de muito, do que ele queria, junto com ela não havia de aguentar de viver o tempo inteiro. A mãe de Lélio se chamara neste mundo Maria Francisca, tinha sido bonita e bôa, sempre trabalhadeira, sempre séria; por que, então, o pai tinha precisado de largá-la, de se sumir de casa, para vir p’ra o Urucúia, pra morar com uma mulher acontecida, qualquer, achada de viagem, em beira de cerrado? Nhô Morgão, capataz de seo Dom Borel, costumava dizer: — “Ah, se o mundo um dia se acabar, fica tanta coisa por fazer…” E outras vezes: — “Viver é ver as bobagens que inté o dia de ontem a gente fez…” Nhô Morgão gastava tudo o que ganhava comprando em toicinho e rapadura e café, p’ra a gente pobre, e só gostava era de ouvir música de instrumento e de deitar na cama, sábado para domingo, com um litro de cachaça, bebia, bebia, a noite quase inteira. Em todo o resto da semana, gota de cachaça ele nem provava. Um dia, adoeceu forte, gravemente, tiveram de agir nele lavagem de clistér; e, enquanto punham a seringa, Nhô Morgão só abria os olhos para gritar risadas: — “Estou desonrado! Estou desonrado!…” Desse, era de quem Lélio talvez tivesse mais saudade. Nhô Morgão tinha conseguido amansar a vida.

Agora, vendo que os outros trabalhavam numa ou outra coisa, ele se levantava, ia aproveitar para consertar o loro de seu arreio. Delmiro emprestava fio e agulha, uma sovela. Pôs o pensamento na Mocinha de Paracatú, e viu que não queria. Tinha horas ele pegava a achar que não soubera se comportar, em toda a viagem, só se dera ao desfrute; e a Moça, durante todo o tempo, ou não sabia que ele era gente deste mundo, ou o debicava com os rapazes da cidade — ah, se lembrava bem — ela se ria dele. Era maldosa. E, um pensava a fito, beleza usual ela possuía? — “Uma bezerrinha dos Gerais desmamada antes do mês…” — o Lino Goduino dizia. Pois não era? E arrebitava um narizinho, às vezes amanhecia com sombras nas miúdas faces. Mas, então, como podia existir nela tão bem aquela artice maior, principal, estúrdia?! Então, era como se fossem duas, todas duas de verdade, as duas numa só, no mesmo tempo. E aquela encantada astúcia mudável, que nem fazia conta dele, Lélio, e que maltratava e animava: como a gente vê ainda, um espaço de momento, um lugar lindo, quando o escuro da noite já o consumiu; ou quando já se pode reconhecer adivinhada a divisa da várzea, por varo, no ralo dum fim de chuva. E a lembrança dela queimava, às vezes, em alma, uma tatarana lagarteasse. O único jeito de tolerar a lembrança dela era esse: de a ficar adorando, de mais longe, como se fosse uma santa.
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E a Jiní? Numa precisão, quase sem pensar, Lélio falou no nome de Tomé Cássio, por qualquer coisa. — “O Fradim contou que no começo do mês que vem ele vai dar uma viagem. Vai até no Mutúm, mato do Mutúm, distância de dez dias pra se ir e voltar. Vai p’ra trazer uma irmã dele, mocinha…” — disse o Pernambo. — “E a Jiní?” — perguntou Placidino, com redondos olhos. — “Tu é bobo? Há-de-o! Então a Drelina ia deixar o Tomé levar a Jiní, p’ra depois viajar com a irmãzinha deles? O Tomé vai sozinho…” — e o riso do Pernambo era de panturro. — “P’ra algum efeito, assim é bom — disse o Delmiro. — O Tomé vai descansar um pouco da mulatinha. Que é que ele está emagrecendo…” “A Jiní acaba com ele, como quase acabou com o Tiotino. E com o Patrão… Ôi-ôi: Lá em cima daquela serra, tem um rastro de mulher; metade da serra eu subo: mais, meu Deus, não pode ser…” “— Traz a viola, Pernambo.” “— Está sem corda.” “— Será que é bonita?” — perguntou o Placidino, depois de um tanto de tempo muito calado, boca aberta. — “Quem, rapaz? Você está assombrado?” “— A irmã do Tomé, que ele vai ir p’ra buscar…” “— Se puxou à irmã, está servida de todo lindôr, sim senhor: Lá em cima daquela serra, tem uma moça por chegar: chega feito sol e estrelas, chuva no canavial…” “— Ô seu Pernambo, o-senhor me ensina a botija de alegria?” — Lélio perguntou, se ousando em tom de brincadeiras. — “Ara, meu filho, o seguinte é este: que eu nasci longe daqui, por aí andei e desandei, esclareci muita coisa… P’ra abastante, o que mais vi foi desgraça e ruindade. Por isso resolvi que o que quero é ficar quietinho neste cantão, onde o mundo é mais pequeno. Correndo campo e engarupando em boi, p’ra o meu pão-nosso. Tanto o que vem p’ra riba de mim, tudo eu logo despacho, em cantigas cantorias… Mas, daqui por diante vos peço, mecê me tratar por você, cerimônia nenhuma, velho para favor de fala eu não estou, nem.” O Placidino se afastara lá fora, um momento, porque ouvira vozes. — “Olha esse — seguiu o Pernambo: — …malcastrado, feioso, nunca nem teve mãe nem pai, e está aí também sempre alegrim. E olha que ele nem sabe cantar verso. Isso é que é lucro sem cabedal, é o que Deus dá quando menos dar não quer…” Mas quem vinha chegando era uma mulher, ainda bem moça, com um menino-pequeno no colo e dois caminhando, menino e menina. Saudou a todos, com uma voz de tanta simpatia, que a gente tinha de repente saudade de qualquer coisa. Era Benvinda, mulher de Lidebrando, que vinha buscar o marido. Lidebrando levantava os olhos do canzil, sorria para a mulher, um sorriso de querer-bem sossegado, e começava a guardar seu petrechos. — “Trovejou?” — ele deu de perguntar. — “Ué, está trovejando mesmo…” — e o Pernambo ria a gosto. — “Epa, Serra velha do Saldanh’!…”
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Lidebrando ia embora, com a família, e Benvinda ainda falou, se despedindo: — “Nossa Senhora que fique com todos…” E ainda bem não tinham terminado de dizer amém, o J’sé-Jórjo chegava. — “Estive…” — disse. Mas disse como só para si mesmo, e num modo tão surdo, quase rompido de desafio e desabafo, que ninguém completou nada. E ele mesmo ficou calado. — “Virgem! Depois de um dia de tantos trabalhos…” — o Pernambo sussurrou. O J’sé-Jórjo era calado no atual, mas diverso do Tomé Cássio, que parecia com um luto branco por dentro, e do Lidebrando, que ao mor de sua natureza não carecer de fala; o J’sé-Jórjo, não, esse dava o ar de que não falava porque não podia, não sabia, como se tudo no interior dele fosse travado de gago. — “Ô que homem! — Delmiro disse, a um canto. — Esteve com a Lindelena…” “— Lindelena? Quem é que é?” — Lélio indagou. — “Pois Lindelena é a Tomázia… É uma das ‘tias’, você ainda não sabe? É a branca. A Conceição é que é a preta…” Delmiro voltava àquele sestro de enfiar o dedo no nariz, caladão fechado. Assim atarracado, sisudo, repuxando as sobrancelhas, chega a cara dele escurecia. Não sabia por que, Lélio tirou uma ideia: que o Delmiro havia de gostar, se seo Senclér, por duvidar, um dia morresse, e então a dona Rute quisesse casar com ele… Mas, lá fora, meninos corriam e gritavam: — “Toloba! Toloba!…” Eram os filhos do Ilírio Carreiro. E a Toloba, que passava, empunhando um grande ramo de mato cheio de flôr, era uma cabocla esmolambada e suja, rindo e concordando, como se os meninos a louvassem. Papuda era, papo de corda, parecendo corda de mamão. O Pernambo explicava: essa criatura varava por ali, sem pouso certo, por tudo quanto era fazenda ou arruado de córrego, ou sítio de vereda, batia os Gerais por inteiro; dormia no campo, comia não se sabe o que, mas estava sempre assim gorda. — “E toloba ela mesmo é, tudo o que é dela acha exato que é uma perfeição, e está crente que os outros também acham… Até, quando quer ameaçar alguém, o que ela fala é isto: Ói, que eu não deixo ancê tirar bicho no meu pé…” E aí Lélio súbito pensou uma coisa, que assustava: que o princípio de toda pior bobagem é um se prezar demais o próprio de sua pessôa. — “Toloba! Toloba!…” — a meninada não dava folga. Mas, espiando para o Placidino, Lélio reparou que os olhos dele acompanhavam a Toloba com um abençoo de dó, de pena tão sincera, que a gente podia apalpar aquela brandura de bondade, do coração dele. — “O apelido deste Placidino é ‘Gombê’…” — cochichou Delmiro, saindo de seu si-mesmo. E trovejava, de verdade, na Serra do Saldãe.

Chuviscava. O chá de folha de goiabeira, ou o leite com farinha, para os que quisessem, foi tomado em riba, na varanda. Delmiro chamou Lélio a espiar lá para dentro da Casa, a sala e o corredor comprido, aquilo tudo enorme. Mostrou o grande relógio de pé, de caixa. Maria Nicodemas gostara de Lélio, pôs em sua algibeira um torrão grande de açúcar. — “O melhor, que eu queria se por escolher, era a cadeira-de-balanço…” — deduziu o Pernambo. E estavam também o Ilírio Carreiro, que tinha barba de costeleta dos dois lados da cara, e que ficava um tanto retreito, arredio dos vaqueiros. E o Zé-Amarel, guia-de-carro, um meninote até bonito, se não fosse aquela cor cargosa, o amarelo laivado de madeira de peroba que tomou sol. Mas J’sé-Jórjo, mal bebido seu chá, desceu, como se o assoalho da varanda lhe queimasse os pés. Daí mais um pouco, igual os outros vieram.
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Foram deitar mais cedo. Canuto não tinha ainda voltado, e Lélio, confusamente, gostava que nenhum dos outros comentasse sua ausência, a modo deixando dito que cada um ali era livre de suas ações. Tirou o torrão de açúcar do bolso, e viu que o maior prazer que podia era dá-lo ao Placidino, que nem entendia por que, e que primeiro o olhou muito desconfiado. O Pernambo recitou três versos da moda do Calunga na Capanga, e J’sé-Jórjo soprou logo a candêia. A cama estava provã de bôa, bôa a chuvinha lá fora, macio seu peso na trança de palmas de buriti do teto. A demoração, sozinho, cabeça atoa, antes de dormir, era o que de melhor, podia mais que a canseira. Lélio ganhava ponto de paz, só se admirava de que, com um dia passado no Pinhém, o sentir era o de que tivesse já vivido ali um tempo de anos, tanto tantas pessôas e coisas pequenas dansavam se tecendo na boca do vazio das horas grandes. E então viu que guardara, sorrateiro de si, um assunto, para uns pensamentos, para passear por ele agora: a Jiní. Ah, certo não era correto, não devia-de. A Jiní, seus olhos sumo verde-verde, que cresciam e tudo tapavam, como separados, maiores do que pessôa. Não devia. Mas podia menos pensar, um instantinho só, se concedia. Revia-a. O figuro da mulatinha cor de violeta mandava em todas as partes onde batia seu sangue, aumentava o volume de seu corpo. Chega. Esconjurou-a, brando, coçou um ouvido e a barriga; e devia de ter logo dormido.
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Amanheceram rente, dia-de-sexta, café e ao pasto. Não chovia, só o mato orvalhado de gotinhas sonoras. Canuto ali estava, com os companheiros, não dizia nada por mais, só redobrava no natural. Lélio selou, por experimentar, o cavalo cardão-pedrês de olhada amorosa, que se chamava Marampãe. Aristó acabara de inchar o rosto, e estava mansejão, nem vigiava ninguém, e animava o pessoal com seus ditados: — “Ruim, mesmo ruim, ruim — nunca vi nada…” — dizia, enquanto tocavam pelas lamas, mundo chovido. — “O diabo está só por debaixo…” — acrescentava. Foram ao pasto do Saco-Dôce, depois ao da Cascavél, onde o gado já ajuntado se esparramou de repente, gado de muita qualidade, nervoso ligeiro de um em um, numa desonda brava. O Marampãe era mesmo bom, cavalo corredor. Delmiro estava espinhado do demo, não esbarrava de ir em boi, a gente tinha de ver todas as vezes que ele era um mestre-vaqueiro. E o Canuto com aquela mania: avistava uma rês de pelame bom — de longe, ele já entendia — e pegava aquela, apalpava, beliscava, dizia: — “Eta, que o couro deste promete dar um laço fino e forte…” O Fradim gostava de ficar perto do Aristó, cochichava conselho do que se devia fazer, e o Aristó cumpria, porque esse Fradim era um raio de sujeito senvergonho de talento. Aí, o Fradim por si queria era cochichar mais alto, para todos ouvirem, e todos torciam cara e arranjavam deboche. E o Aristó então não cumpria, às vezes, e ainda xingava: — “Seu, ô, siô! Acomoda! Desaparece de mim!…” O Fradim também ficava muito zangado, dizia que até por encargo de vaqueiro um precisa de ter cabeça e fazer o progresso. O Placidino não sobressaía vezeiro em forte nenhum, mas figurava seu tanto, correto, em tudo, e Aristó gostava dele, porque era o melhor para obedecer.
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Num momento em que veio a estar junto de Tomé Cássio, Lélio se sujeitou num governo sem tino — o que lhe vinha era mistura de uma estima pelo outro, um curto de receio, e um bafo de vergonha de si mesmo. Num beira-d’água, encontraram uma vaca jovanês-castanha, deitada de adoecente. Delmiro tocou-a: ela andou um pedaço e tonteou e caíu. As mãos tinham amolecido, e ela parecia bêbada de cachaça. — “É erva!” — todos falaram. Ela ficou deitada, espichada, a barriga ia-se inchando. — “É erva-café. Olhem aqui.” E Lidebrando arrancava, a uns metros, a plantinha da folha verde-escura. J’sé-Jórjo mexia em seu chapéu um pouco de rapadura raspada, com terra de formigueiro e água, faziam a vaca engulir aquilo. Ali mesmo esbarravam para almoçar a paçoca das capangas. J’sé-Jórjo era um sansão no jeito de pegar boi à unha, e Delmiro dizia que ele sabia toda qualidade de mandraca. O Pernambo era que se queixava: não estava podendo fazer muito, ainda por conta da mão. Quando acabavam o almoço, a vaca ervada já estava bôa, em pé, queria até investir, de repente ficada braba. Debaixo de céu escuro, Aristó agora repartia o pessoal, por lados, por serviços.
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Lélio ia com Lorindão e Soussouza, viraram para a banda de meio-sul-e-nascente, rumo do pasto do Palmital. Por um espírito, Lélio teve momento em que se riu, só em si; vendo que estava ali com os donos das moças bonitas do Pinhém — o pai de duas e o cunhado da outra; e ele ainda não conhecia nenhumas. No dobrarem um espigãozinho, de supetão vinha de lá, frenteante, o burú da chuva, riscando tudo de branquim. Deram um galope, doidado, e a chuva bateu. Lorindão cantou uma gargalhada, e que sabia de um ranchinho. Soussouza não escutou direito, gritava: — “Debaixo de árvore, não, árvore que chama faísca…” Mas a chuvaça tomava a gente de respirar, um bebia água, se assoava, se babava, homem tinha o que aguentar, as roupas iam pesando endurecidas, pé de cavalo trampeava em barro, voz ouvida não cabia. No ranchinho, que Lorindão adivinhou e os cavalos no escuro branco acharam, todos podiam se esconder, malmal, vaqueiros e animais, que aquilo era uma coberta de palha de palmeira, em cima de quatro esteios. — “Chuva aqui é de ferro…” — falou Lélio. Lorindão sacudia as pernas, seus rosetões de esporas tiniam festa. Ria, ria. Lélio não conseguia mais encará-lo com inocência — pensava: um dia, quem sabe, este vai ser meu sogro. Mas Soussouza espiava o arruinado do tempo, e se queixava, mas com estatutos em palavras, como se reclamasse o malfeito de uma pessôa.
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Lorindão disse: — “Homem bravo, este: quando encontra bom motivo, dobra no tamanho e racha coco no coqueiro… Na Extrema, com boiada, uma noite ele estava no quarto, com uma mulher, uma turma de vagabundos armava desordem no beco. Soussouza, deu p’ra ele ter raiva, abriu a janela, gritou que esbarrassem. Não esbarraram, aí daí a pouco ele abriu a janela e pulou lá no meio, no escuro, deu pancada à péga, desarmou uma porção deles…” Mas Soussouza, nem podendo ouvir esse relato, estava com mais fúria era porque palha, fumo e petrechos estavam encharcados, ele não podia pitar.
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Depois da chuva, voltavam, o dia dera o de seu. Caminho indo, Lélio se lembrou: — “O cachorrinho que veio comigo, aquele, ainda estará com o senhor?” — perguntou a Lorindão. — “Não, meu filho. À dona já entreguei, que por sinal mandou dizer agradecer, de todo muito coração… Mas em minha casa, casinha de pobre, você vai passar, é p’ra beber um gole e esquentar o corpo.” Falou com um risinho meio sem jeito; que Lélio pensou: de pai com moça por casar. Um gavião grande assoviou e deu sombra. Gavião-de-penacho? — “De-penacho não: é um gavião-pardo, tamanhão. Ele pia igual ao outro…” “— Todo gavião graúdo dá sorte…” — gritou Soussouza, já se despedindo pra se apartar.
Para moradia de vaqueiro a de Lorindão era grande. Tinha uma rede e um banco comprido, na sala, e uma mesinha com toalha de renda, na mêsa um vaso de flôr. Lélio pendurara o chapéu num torno de madeira, no portal.
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Espiava as estampas de folhinhas nas paredes, enquanto escutava um sussurrado rebuliço, lá por dentro. Mesmo sem aquilo, mas: a gente percebia, por tudo, até pelo melhor resguardado do ar, que ali era uma casa com suas moças. Coração de um já batia aos tantos. Dorica, a mulher de Lorindão, era gorda, mas das zangadas, sobre o sisudo. Quase não proseou, e olhava a gente com desconfianças, essa capaz de implicar muito. Que as moças não apareciam, porque não estavam arrumadas direito, moça é sempre vaidosa. — “Rapaz solteiro de visita em casa, é isto: dá transtorno…” — gracejou Lorindão. Dorica olhou para ele com raiva. Tinha licôr de buriti, e restilo com umburana. Lélio tomou um trago do restilo e ainda conversou um pouco, escolhendo suas melhores palavras, sabia que de lá de dentro elas estavam escutando. E, caminho a fora, quando se despediu, recordava ainda tudo o que tinha discorrido de falar, por fim de saber de seu acerto. Mas chegou à Casa com uma dôr-de-cabeça, e quis dormir cedo; teve até sujo de sonhos ruins, no meio da madrugada. De manhã, repensou — achou que Dorica mulher de Lorindão lhe tinha posto olhado.

Mas era sábado e sol, saíam alegre a campo, hoje seo Senclér vinha junto vaquejar. Lélio montou o preto Pass’o-Preto, seco estreito, comprido de braço e perna, sabendo boi e vento e com força de garra em chão para travar esbarro mesmo em surto de galope — cavalo de muita honra. Correram rumo no Capão-das-Éguas, cantavam véspera de dia-de-domingo; até o gado ia obedecia. Mas o Aristó mandou Lélio mais J’sé-Jórjo, re-de-vez pela Bambarra — agora aquelas três reses com remorso de amadrinhadas tinham que vir. O caminho era demorado, e o J’sé-Jórjo não conversava exemplo. Aquele homem rastreava até sem querer, e estava dependurado dos olhos, feito gavião, feria longe. Fincava o olhar, e ele chega fungava: parecia que aquilo era uma dôr de doer. Com o cujo, com pouco, Lélio quando viu de si só rastreava também, estava tendo de cumprir sujeição ao uso do companheiro. Beiraram belas veredas, buritizais de se querer bem. E o sujo de campos já em pronto revêrde. Quando no insofrido de enfastiado, Lélio tomava então um gole da ideia de que amanhã ia conhecer as “tias”. E a alegria de corpo solevava-o tanto, que logo carecia de calçar consciência com ruma de pensamentos sérios, tenção de homem-de-bem: fazer como o Delmiro, determinar o certo da vida. De segunda-feira em diante, cuidava daquilo, firme. Pôr dinheiro de parte, levantar suas paredes de paz, casinha de telha e taipa; e se casava. Uma salinha, com banco e rede, e uma mesa atoalhada, no meio dela a jarra com flôr. Ainda não tinha visto Mariinha nem Manuela, mas sabia que com uma delas se casava; mais fácil melhor ser com a Mariinha, com esse nome fininho frio de bonito. Bom, ia ser; era. E, então, isso das “tias”, amanhã, ficava permitido concertado, como coisa de intervalo, em sua hora e seu tempo, passagem de homem, mocidade. Mas, então, evém vinha o sossalto daquela lembrança que ele queria e não queria: a Moça de Paracatú, a Sinhá-Linda. Vinha, e tudo o que outro desbotava em tristeza. Sem ser por ela, o que ele fizesse era caminhar para trás, para fora da casa do rei, para longe dele mesmo. Mas, então, ele era bobo? Pois aquela Mocinha tinha sido na vida dele que nem um beija-flôr que entra por uma janela e sai por outra, chicotinho verde e todas as cores no ar, que a gente bem nem viu. Mas então. Como se deixar de se lembrar dela é que fosse o pecado maior.
Quando o J’sé-Jórjo falava, quase que era que nem que só para si mesmo, e respeito de rastros. — “Eh, rês fugida faz rastro seguido — não é aquele rastro caracoleado, da rês em logradouro…” Desesticava em riba. — “Vaca. Gado solteiro. As unhas uma a outra traspassando…” Fungava. — “Dianho, agora é este capim-mimoso, que não guarda cama de pé nenhum… Como é que se pode?” Podia. Se apeava. Ia. Funga, tatú na faca! Reachava as patagadas — de três reses sem-jeito, que tinham ematado fundo no caatingal. E agora? Não deviam ter trazido os cachorros? Mas J’sé-Jórjo rezava baixo. Rezas-pesadas, se via. O Credo, de trás para diante, valendo igual a São-Marcos. Ou o Credo rezado num revesso, misturado entremeado com a Salve-Rainha — reza ainda mais brava. Aquele homem dava receio. E a Bambarra mesma ajudava a se encontrar, recebia o laço sem arreviro nenhum de tes-testa, se emprestava de ser amarrada em pau. J’sé-Jórjo tirou de debaixo da capa da sela uma máscara de fibra de burití, e com ela encaretou a vaca; tirou um polaco da capanga, prendeu num chifre dela. Soltou-a, e vieram. O gangolô latejava badalado. A novilha fígado e o boizinho azulego-raposo acompanhavam a Bambarra, parecia que entendiam o caminho justo. Bastava a gente vir sorrabando os três, pouco precisavam de pajeá-los. Era a reza-feia do J’sé-Jórjo.
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Desvinham aquelas veredas, o quanto podiam torando reto, depassaram o cerrado do Quiriquirí, o pasto da Rocinha — onde os enxadeiros de seo Senclér ainda andavam ressemeando o milho. E quando o J’sé-Jórjo começou a querer conversar, Lélio quase concebeu um susto. Nem se sabia como, o homem estava era narrando o caso todo de sua vida, o triste fim dum só acontecido. Era uma contação custosa e puxada, indo adiante e retornando, de ora aos arrancos, de ora mastigando o gaguêjo, e umas esbarradas para pensar melhor, que punham a gente nervoso, e misturando nomes mesmo de pouco se compreender, e explicando passagens sem precisão, mas de que de certo ele J’sé-Jórjo gostava, com todo tintim. Suava para falar, e fungava; mas contava aquilo com frieza de sangue e macias palavras, não dando tom de queixa nenhuma, como se tudo fosse passado com outras pessôas. Mesmo vez ria. Só pelo repetir no igual do jeito uma mesma coisa, a três e quatro, a gente acabava recebendo daquilo o queimo gelado de queixume. Mas a saudade, nele, prevalecia dos dissabôres. Contava como se tinha casado, gostado tanto da mulher, e como era a casa deles: o quarto, com a pirunga — a grande pirunga feita de adobes, espécie de tulha paredada perto da cabeceira-de-cama do jiráu, e que guardava o arroz para os dois comerem o ano inteiro. O camocim com água pra se beber. Os nomes dos cachorros que tinham. A árvore em frente da porta, debaixo dela eles se sentavam de tarde. Falava como era o trabalho de campo por lá, falava nos bois; contava tudo. E a desgraça de ter atirado e ferido os dois, e nem era a mulher dele, por má sorte. De fim, quando voltara de estar preso, a mulher tinha fugido, com o senvergonho. — “Com o mesmo, o que levou o tiro?” — Lélio quis saber. J’sé-Jórjo esbarrou, ficou pensando um tempo, boca meio aberta. Depois olhou preto para Lélio, quase com ódio, feito achando que estava sendo caçoado. — “Perguntei por amizade…” — Lélio o sossegou. Não, não tinha sido com aquele-um. Foi com o outro, o dela, o dito… E J’sé-Jórjo tornava a recontar.

Já ao depois de tarde, de sonoite, davam de estar perto. Duro sábado, caminho longe. Agora, aquela luzinha ali, era a moradia do Tomé, da Jiní. Quem sabe ela escutava o gangolô da Bambarra, via gado tangido, vinha à porta espiar? A luzinha era triste. — “Rancho do Tomé…” — o J’sé-Jórjo falou. E era mesmo um rancho, tão pequenina. Até uma galinha dormia empoleirada em cima dela, no coberto de capim-fino.
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Chegando à Casa no retraso da hora, cuidavam dos cavalos e vinham à porta-da-cozinha, pedir à Maria Nicodemas comida-de-sal. — “Como foi, que eu nem tive folga p’ra lavar corpo…” — Lélio alegou. — “Amanhã, cedo, com Deus, a gente vai…” — disse J’sé-Jórjo. E estava demudado o modo dele falar, até Lélio o estranhou. Aquele homem estava começando a ser seu amigo. Satisfeito, por si, pegou a querer ensinar a Lélio o sutil das marcas do rastreio: — “…Se for de touro já feito, o rastro é maior. O touro tem os cascos bem redondos. Bem volteadas as pontas… O boi capado tem as pontas dos cascos mais finas, já forma as pontas bem compridas…” Assim ele melhor falava.

No quarto-dos-vaqueiros, só acharam Canuto. O Pernambo e Placidino estavam seroando nas “tias”. Delmiro? Esse saíra por ali, com o Marçal, chegado do São-Bento. Mas, com o arrompo do cansaço, Lélio e J’sé-Jórjo queriam era dormir.
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Até ao cocoriacô do galo, que cantava trepado num monte de lenha. E todos se levantavam, com nos rostos o mesmo tino de alegria. Domingo claro, em vago, dia de alto tempo. O Marçal também estava ali. Caminhou e veio, e disse, como um velho conhecido: — “Lélio do Higino, com’ passou?” Ele era firme no que queria, e agradava no átimo, mesmo por esse dado de sempre citar o nome da gente. Mas bebeu o café e já ia se foi saindo: — “Tomar benção à Mãe… Ela deve de estar jeriza, por eu não ter ido dormir lá em casa…” Deu as costas, e o Pernambo se ria: — “Em qual! Este é de donza, donzela. Está aqui, foi noivar, de alvoradas…” O J’sé-Jórjo pegara dois pães de sabão-preto, enrolado em palha, e esperava Lélio, para o banho no ribeirão. Mas o Pernambo despendurava a viola, logo o Placidino o ladeava. — “Vocês já estão p’r’ as raparigas?” — afoito Lélio perguntou. O Pernambo segurou-lhe o braço: — “Menino, não fala em raparigagem não, que com seu direito elas desse nome não gostam… E você mesmo depois vai? Bom, por antes, diz uma verdade, dá de juramento: você tem doença-de-rua nenhuma? Tiver, vai não, que com estas você mal resulta. E aqui nós também queremos a ordem de regra, pela saúde de todos… A primeiro, se tratar…!” O Pernambo espiou para dentro, e, de zomba, chamou Canuto por companhia. — “Uma tana!” — esse respondeu. — “Dia-de-domingo, sem missa, vou mas é rezar o meu terço…” E se ajoelhou, num baixeiro, fazendo o pelo-sinal. Entoou a rezar alto. — “Isso é p’ra as famílias e as moças ficarem sabendo, e acharem que ele é o prinspe de todos…” — o Pernambo debicou. Mas o Canuto só se virou um momento, cascou para o Pernambo o feio gesto, e tocou de seguida as suas altas ave-marias. Delmiro deu um muxoxo, e quis ir com Lélio e J’sé-Jórjo ao pôço do banho, no ribeirão.
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Vindo os três de volta, depois, Canuto mais lá não estava. Lélio vestiu sua roupa dos domingos: calça clara, paletó muito azul, camisa limpa e sapato de cidade; só gravata é que não se usava. De pronto, porém, se via sem companheiro guiador na empreita, pois J’sé-Jórjo carecia de ir à casa de Lidebrando, que cortava o cabelo dele, e Delmiro tinha combinado com o Marçal de se encontrarem no Lorindão. Lélio, por um instante, se desajeitou, sem conselho, se apoquentava. Sempre quando queria forte uma coisa, seu querer vinha grosso, desnorteando-o sem proveito. Mas justo chegava um, o Mingôlo, José Miguel, que dizendo: — “Eu estou mesmo com os pés p’ra lá…” Também ia às “tias”. — “Estou chegando do São-Bento… Hoje se tirou leite muito antes do sol ameaçar…” O Mingôlo tinha a cara quadrada longa, de cavalo, e marcada de bexiga, estalava dedo e os cachorros da fazenda pulavam por ele, em festas. Disse queria pedir ao Canuto ajuda de escrever uma carta para a noiva, que morava no Andrade-do-Amparo, do outro lado da Serra do Saldanh’, ainda do outro lado do Morro do João Matias. Carta que logo mandava, quando tivesse próprio portador. E o casamento havia de se abençoar entre o Natal e o São-José. Dona Rute já tinha se aceitado de ser a madrinha… E, para Lélio: — “Então, companheiro, a tudo vamos. Elas estão só esperando a gente…” “— Pois também vou com vocês…” — agora falava Delmiro, inesperado. “— Mas chego só até perto e volto; agora lá já tem gente demais…”
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De caminho, Lélio perguntava, e ia sabendo, finalmente. As “tias”, a Conceição e a Tomázia, se consentiam à farta, por prazer de artes. A Conceição era preta. — “Mas uma preta sacudidona e limpa, não tem um defeito num dente…” Moravam numa casinha bem estável, à beira do córrego, depois daquela capoeirinha, que se avistava. — “E o seo Senclér deixa? Dona Rute?!” “— Mas elas duas estão aqui na Casa, até quase no diário… Elas é que lavam a roupa toda da fazenda… Tem tempo que trabalham até no eito, ou então em fábrica-de-farinha.” O Mingôlo caminhava num passo largo, ligeiro, e assoviava, no natural de um que estivesse vindo para lavar as mãos antes do almoço, ou só beber um caneco de leite ao pé da vaca. Lélio seguia-o, sério. Sempre que ia para uma novidade de mulher, ele esperava qualquer maravilha, de quase milagre; quando, na hora, ele escopava: tudo era tão muito menos do que um esquentara imaginado. E só depois, muito tempo, então no descorpo da lembrança da gente era que aquele viço antigo das coisas tornava a lumiar, feito poeira levantada, que se traspassa enfiada de sol e vem repousando, não pousa. Delmiro parece que atrasava o passo, de propósito, e fazia um escárneo de um risinho, como para bobear dos outros dois.
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— “Elas criam galinha, também. Engordam até um porquinho…” E plantavam sua mandioquinha, também, e, entre a casa e as touceiras de bananeiras, tinha uma horta, condizida com sua cerquinha de varas. O lugar era bonito. À frente, um terreirão meio redondo, o chão amarelo, muito batido, muito varrido, rodeado por mangueiras, onde debaixo delas o Pernambo já se estava numa rede de tapuirana, de árvore a árvore. Havia também dois bancos, de talas de buriti. O Pernambo brincava na viola; acocorado perto dele, Placidino tocava seu berimbau. Peças de roupa secavam, numa corda, ou estendidas no capim. Acolá, no lime da porta, aparecia uma preta — retinta, de cara redonda e brilhante, com enormes brincos moçambiques nas orêlhas, ela era cheia de corpo, roliça em completos, com um vestido vistoso, de chita clara com vermelhos floreados; calçava chinelins e enrolara um lenço estampado na cabeça. Era a Conceição, conforme se queria.

— “Ô morena! — gritou o Mingôlo. — Morenando sempre mais?” “— Ora veja! — ela respondeu de lá. — Cê quer brancura, ou quer fartura?…” “— Oxente! Acho que vou querer é você, até sapo suspirar em córrego!” “— Pois vem.” “— Me deixa tomar fôlego…” “— Não se toca boi à força, nem para o pasto melhor…” “— Tem dó de um. E qu’é da Tomázia?” “— Contente que está no quarto, com o Zé-Amarel.” “— Beldroega!” “— O menino também carece de aprender, pois não carece?” Mas o Mingôlo dizia que ia ceder vez ao companheiro novato, por escala. E a Conceição encarava Lélio, abrindo aquele polvilho de riso, dando por olhos um convite de muita amabilidade. — “Hã, ele veio conhecer os préstimos de mulher?” — ela favoreceu. Lélio se virava para Delmiro, pensando que esse ia voltar passo; mas Delmiro disse só: — “Resolvi, fico te esperando.” E se sentou no banco. — “Por ora nós dois já estamos servidos…” — o Pernambo falou, por si e por Placidino. Então Lélio caminhou, meio sorrindo também, para a preta, que pegou delicada na mão dele: — “Bom, que cê veio. A gente já estava esperando, poder avistar o novo, como é…” Entraram. O Pernambo cantava: … Aruvalho também pesa: pesa na ponta da folha…
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Quando, passada uma meia-hora, Conceição o trouxe de volta ao terreiro, ela disse aos outros: — “Este um é um cacique!” Todos riram — o J’sé-Jórjo também ali estava, e o Zé-Amarel. Mas a brincadeira da Conceição não ofendia, antes mais agradava porque a fala dela, clareando forte, era só um sincero de qualidade. Assim quando chamou, pensando que Lélio ia-s’embora: — “Ôi, tu tá sem tempo, ô coisa? Espera, p’ra conhecer a Tomázia…” Era melhor, mesmo, disse o Delmiro, agora sem pressa, dando-lhe um cigarro já feito. …Meu sangue caíu de mim, cortado no coração… — o Pernambo cantava. Com a Tomázia, agora era o Mingôlo quem estava? E o Delmiro, um tanto vexado, se acorçoou e entrou com a Conceição.
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Lélio se sentava, consertava seu ser. Bem que ao bem, se contentara, repago em tranquilidades. Acendeu o cigarro, pitava. Pensava na Conceição, muito agradecido. A preta ouro valia. No começo, o fora enrolando, tratando-o com um carinho escorrido e certo, com perleixos e teus-agrados, sem momice, carinho de mãe que achega o filho, com perdão de comparar. Mas, direto depois, virava estonta, rolava, sacudindo seus meneios, fechava-o — como cavaleiro que não quer deixar o animal defastar —; e ela mesma sabia disso, que no aí, no pouco pudor, ditava: — “Aguenta, Bem, tem medo não: côice de égua não machuca cavalo…” Saúde, serenava. — “Agora, que você já está fronho aqui, não deixa de voltar, meu filho… O mais que você puder…” — ainda disse, depois, cá fora.
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Como o Pernambo ouviu, e logo cantou: …Te vejo só no domingo, padeço toda a semana: uma coisa é buriti, mas outra é buritirana… Daí, Lélio no sensato, cismoso. …Burití, rei da vereda, de crescer envelheceu: quer seu chão nas altas nuvens, e a água azul que tem no céu… — esvoava a cantiga do Pernambo. Que cantasse mais, pediam todos: tirasse o Testamento do Papagáio, o Abecê dos Bem Casados, a Boda do Sabiá com a Beija-Flôr. Não. …Buriti beirando a água, eu beirando o não sei quê: quando choro, lavo mágoa, canto é secando sofrer… Mas o Pernambo queria era que começassem um truque, tirava da algibeira o baralho, mandava Placidino ir buscar uns sacos, para forrar o chão do terreiro. O que cantava, era de alto estado, como roubava de Deus: …Buriti virou um homem, me pegou e me fez mal. Agora, casa comigo, Buriti, Buritizal!…
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Soltando o Mingôlo, solertes, a Tomázia saía e aparecia. Clara era, e mesmo não feia, nela nem se notava quase o pirotinho de papo no pescoço. Veio até cá, acender o cachimbo, e fazia os esforços, no caminhado empinava um apuro, para seu andar causar bonito. Tinha até pó-de-arroz e pintura de vermelhos, na boca, na cara. Em parte ela falava difícil, repicando o acerto de cada palavra, e em parte a gente via que estava imitando a Conceição. Saudou Lélio, senhora-dona, mas com fino de amizade, socialmente: — “Muito prazer em conhecer…” O Pernambo, por palhaço, pegou e beijou a barra da saia dela: — “Princesa-Rainha, que queixume é esse? Prostro em vosso real…” “— Faça-se ideia! — ela rebicou. — Você, íssia! Acabou de comer e já estais em jejuns?!” “— Princí-Princesa, não engasga o pobre! Por falta de muito agrado, ói que eu me desvou daqui, não volto, viro donzeleiro…” “— A por! Cabaça! Se imagine… Pobre das mocinhas novilhas, a que tiver que se aguentar com um mutão desses… Tu é boi no umbigo! E tu tem xodó por mim, eu sei…” — ela ainda muxoxeou. Tirou uma cachimbada, e emprestou o cachimbo ao J’sé-Jórjo. O Placidino se esticou em pé, fazendo menção olhada de ir entrar junto com ela. Mas, com um não de dedo, ela mandou que ele esperasse vez. — “Paciência, meu filho. Agora ainda é outro…” E olhou para Lélio, com denguice, mas também com tanto damêjo de soberania, que parecia estar esperando de ser tirada para uma dansa em sala. E Lélio foi.
Variar era variar, e na Tomázia um tinha bem outra. De começo, mesmo no quarto, ela não perdia aquele vizaví melindroso de visagem, convidava para ele se sentar no tamborete, ia buscar uma xicrinha de café. — “Descansas repousado, Bem, p’ra te acostumar com o lugar. Boi sempre estranha bebedouro novo… Mas não olha p’ra cima, não repara, que tu só vê é capim e esses fios de picumã… Tudo no Gerais é bom, mas ainda tem muito atraso…” Depois, perguntava coisas da vida dele. Queria saber se ele achava que ela era bonita. Mas um brilho diverso lavorava naqueles olhos, e ela dizia o exato: — “Bem, vamos principiar, que tem os outros lá fora esperando…” E num zape ela mudava: só manejo de meiguices, ficava serviçal simples, mansa e em fome de avanço como uma cachorrinha, e cabeça cheia de invencionice. Tinha nôjo não, dizia que gostava era de ensinar coisas. Já tinha sido de zona, de bordel, na cidade — lá se chamava era Lindelena… — “E quem trouxe você p’ra cá?” — Lélio indagou. — “Quem? Adivinha, só. Não acerta? Pois foi o seo Senclér, mesmo, Bem. Ele já teve rabicho, por mim! Tenho muito lombo…” E agora, seu Senclér ainda se encontrava com ela? Ah, isso não, fazia muito tempo que não. Mas era por causa que a mulher dele tinha mandado cozinhar para ele bebida de amavías, modo d’ele desgostar de todas fora de sua casa… Lélio se espantava de escutar aquilo. Ainda mal pudera ver direito dona Rute, mas Delmiro, Pernambo, Canuto, todos com a admiração tinham referido como ela era: linda, macia, branca, do Céu, e uma delicada simpatia tanta — lá em cima, na Casa, dona Rute, flôr-d’altura, a que podia ser por esses grandes Gerais todos o rebrilho de uma joia… E ali aquela Tomázia, cachimbando! Até ele se desgostou, em si; de dado de uma raiva. Mas, por não cuspir nunca no prato em que se comeu, ele pegou e fez nela um carinho. — “Agora, Bem, que a gente está assim em lua-de-méis, você pode vir aqui em dia-de-semana também, de tardinha, no escurecer. Tu vens?” — ela falou, pondo-o de molho no comprido daqueles seus olhos. — “Uai, e pode?” “— Não abusando, pode. Pois o Canuto só vem agora é assim, ainda trasanteontem veio. Soussouza também, Lorindão também. E o J’sé-Jórjo, esse aparece aqui dia-de-domingo, mas para os ares e assuntos; p’ra o sério, com ele é só de noite, ele precisa de se esconder dos companheiros, esse precisa de ser escondido de todo o mundo…”
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Lá fora, no terreiro, Lélio se sentou na rede, tinha de esperar que acabasse a mão de truque, que Delmiro estava jogando. Mingôlo entrara com a Conceição, e o Placidino com a Tomázia. Quem jogava com o Delmiro eram o Pernambo, Zé-Amarel, e o Ustavo. O Ustavo ficou conhecendo Lélio, e explicou: tinha vindo só para dar um recado ao Mingôlo, e o Pernambo pedira para ele auxiliar um instantinho na sota, só parceiro; mas dali a logo ia s’embora, era homem com responsabilidade, queria não saber de forjico, mulher dele o estava esperando, em casa de compadre Soussouza. — “A bem, seu Ustavo, e joga! Aí, vou com uma dessas meninas, já estou sentindo falta…” — o Pernambo ralhou. — “A com qual?” — perguntou o Zé-Amarel, que a momento olhava para a porta da casa, assim como boi sente o sal. — “Tanto faz como tanto fez, meu filho. Tu escolhe uma, deixa a outra p’ra mim…” O Pernambo fazia a vaza.

Um desgosto caíra no coração de Lélio, pequeno e dono em poder como uma sementinha. Não pelo em-ser daquelas duas mulheres. Somente saudáveis. Aquelas ancas não se poupavam. Só podia gostar delas. E ali mesmo ia ouvindo, dum e doutro, como elas eram irmãs de bondade, no diário, no atual, e tudo mereciam. Não recebiam dinheiro nenhum — só, lá de vez em quando, quem queria dar dava um presentinho — e estavam ali sempre às ordens. E ainda ajudavam mais: lavavam roupa, botavam remendo ou costuravam botão, faziam remédios p’ra quem precisasse: ainda hoje a Tomázia tinha pilado folhas novas de assa-peixe para pingar o caldo nos olhos do Placidino, que estavam com um começo de inflame. E, mesmo, o que seria de um pobre feioso e atoleimado assim, como o Placidino, sem afago nenhum, se não fossem elas? O que gostavam era de homens, e prezavam mais os vaqueiros. Quando, dali a pouco, a Conceição saía, soltando o Mingôlo, ia outro visitante chegar, e recebia-o em brados, alto falava: — “Já vem o Brêtas me cansar!…” O Brêtas era um sitiante pequeno, nas nascentes do Ribeirão, e tinha caminhado três léguas, desde a madrugada, para vir ver as Tias. E ainda trazia um balaio com jaboticabas. — “Esse Brêtas tem pelos na orêlha! Bode, bode…” Mas a Conceição o abraçava e tratava-o bem. — “Será, que diferença é que vaqueiro tem dos outros? — Lélio glosava. — Vaqueiro ou lavrador, tudo é uma igualha…” “— Igualzinho igual, não é não. Eu é que sei… Vaqueiro é homem mais em pé, é homem circunspeito…” E a Conceição levava o Brêtas para dentro. O Ustavo já se fora, passando as cartas para o Mingôlo. A tristeza de Lélio aumentava. — “Tem pressa não — o Pernambo falava. — Almoço lá hoje é muito mais tarde. Nem daqui a umas duas horas.” “— Mas eu ainda vou antes passar em casa de Lorindão” — falou Delmiro. Um menino apareceu, meninão de olhos arregalados, sem coragem de se chegar, ficou abraçado com uma mangueira. — “É o Silirino, filho de Ilírio Carreiro. Espera só, p’ra vocês verem uma coisa.” E o Pernambo estava presumindo certo. A quando a Tomázia saíu do Placidino, e veio tirar uma cachimbada, deu com os olhos no Silirino, e cresceu nos cascos: — “Puxa daí, crila, te vai p’ra casa! Tu é anta ainda com riscas brancas, cheirando a cueiro…” O Silirino ainda queria abrir a boca, por dizer sua razão, mas a Tomázia mencionava o de pegar em vara de marmelo, e ele deu de pé, ao tanto corria longe, safado, desaparecia. — “Agora podemos ir” — dizia Delmiro, o jogo terminado. — “É cedo, cedo. Vocês não aceitam de chupar jaboticabas?” — e a Tomázia olhava os dois, com um olhar que era de amor por todos. — “…Mas vocês voltam, depois de almoço?!” — “Voltamos…” — “Voltamos…” — Lélio ainda prometia, enquanto o Pernambo passava braço na cintura de Tomázia, os dois entrando para a casa.
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Lélio e Delmiro vieram um espaço calados, somente no caminhar devagar. O tempo firmara. O sol secava quase toda a lama. Secava dura, ali nos Gerais a lama logo se atijolava, mais que em qualquer outra parte. No arvoredo, verde novo e velho, que enfarava, só as borboletas estavam maduras. Um cachorro latia, com sotaque humano. Passarinho cantava, o canto de chama: no que diz, desdiz. O dia se alargava bom, nuvens só num ponto; o azul do céu insistia. As bananeiras rasgadas, dependuravam rôxos corações. Ao pé dum gravatá, de folhas com os espinhos pontudos cruzados em dois rumos, queria se esconder um caboré-do-campo, perdendo suas penas: o menor dar de vento as sacudia.
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Delmiro esbarrou, coçava o nariz, limpou pigarro. Depois pôs os olhos para cima, e empinou os ombros. — “Diacho! — disse. — O que é, é: é o regalo do corpo. Homem foi feito assim, barro de Adão não é pedra. Mas eu não estou inteiro nisso… Às vezes, depois, me dá um nôjo, outro. Principío uma vontade, um desespero de sair do mole do diário, arranjar meu jeito, mudar de vida. Aí, queria trabalhar, ou andar, num rompante, tirar em mim um esforço grande, mesmo como nunca eu fiz…” Lélio não respondia. Mas, por dentro dele lavorava que nem um susto, um arrocho maior. Tudo o que o Delmiro dera de falar, era, igual por igual, o que ele mesmo vinha em remorso pensando. Enquanto era ele sozinho sentindo, aquilo importava de menos, era como uma das muitas coisas desta vida, desencontradas, que, mesmo perturbando um momento, a gente podia ir deixando para mais tarde, mais tarde, p’ra repensar direito e se resolver. Mas, agorinha, quando um outro também sustentava assim, e falava, parecia então que o peso de pressa era maior, subia uma tristeza, um medo, um estava pisando borralho quente.
Quando Delmiro se apartou, indo para o Lorindão, Lélio ainda não quis voltar para a Casa. Dali era perto, e ele nem estava com fome. Foi andando a meio rumo, ao deusdar. Tomou por um trilho-de-vaca, que beirava o cerrado ralo. Um gavião gritava por outro, rodavam em alto voo, o tempo do dia se esquentava; sempre como sempre. A chã, por onde ia, descambava; ele pensou: “Daqui, vou dar numa vereda…”
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Andou mais, embebendo tempo.
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E, vai, a solto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se curvava, por pegar alguma coisa no chão. Uma mocinha. E ela também escutara seus passos, porque se reaprumou, a meio voltando a cara, com a mão concertava o pano verde na cabeça. E — só a voz — baixinho no natural, como se estivesse conversando sozinha, num simples de delicadeza: — “…goiabeira, lenha bôa: queima mesmo verde, mal cortada da árvore…” — mas voz diferente de mil, salteando com uma força de sossego. Era um estado — sem surpresa, sem repente — durou como um rio vai passando. A gente pode levar um bote de paz, transpassado de tranquilo por um firo de raio. Lélio não se sentia, achou que estava ouvindo ainda um segredo, parece que ela perguntava, naquele tom requieto, que lembrava um mimo, um nino, ou um muito antigo continuar, ou o a-pio de pomba-rola em beira de ninho pronto feito: — “…Você é arte-mágico?…” Viu riso, brilho, uns olhos — que, tivessem de chorar, de alegria só era que podiam… —; e mais ele mesmo nunca ia saber, nem recordar ao vivo exato aquele vazio de momento. (Uma vez, na Tromba-d’Anta, se deu que ele estava montado numa mula empacadeira, quando de longe uma vaca avançou: e que vinha em fé furiada, no medonho com que vaca investe. Esporou, esporeou — é baixo, a besta não queria se mover do lugar. Então, ele fechara os olhos — para não ver doer. E sucedeu que a vaca desdeixava de vir mais, tinha travado esbarrada, em distância, desistindo. Estava salvo. Mas, para ele, aquele gotêjo de minuto em que esperou, esperdido, estarreado, foi como se tivesse subido dali, em neblinas, para lugar algum, fora de todo perigo, por sempre, e de toda marimba de guerra…) E era nela que seus olhos estavam.
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Mas: era uma velhinha! Uma velha… Uma senhora. E agora também é que parecia que ela o tivesse visto, de verdade, pela primeira vez. Pois abaixava o rosto — de certo modo devia de estar envergonhada, se avermelhando; e, depois, muito branca. Assim o saudou. A voz: — “…’s-tarde…”
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— “Deus em paz!” — ele mesmo disse. E precisou de fazer alguma coisa em positivo trivial — caminhou, ajuntou os gravetos catados: — “Dona, a senhora deixa, eu carrego, eu ajudo…”
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No feito, se esquecia da suspensão em que estivera. Bobagem. E teve até maldade de querer rir, quando ela deu explicação: — “Eu estou é passeando. Mas Crispininha e a Góga não tomam trabalho de escolher, trazem para casa lenha de qualquer má qualidade… Por isso, não posso ver atôa um galho de pau-d’arco, ou de muricí ou tinguí…” Manso, o tom de voz demudava, tão ligeiro: — “Carregar peso leve é que cansa homem… Mas, faz mal não, você vem, que eu sirvo uma xicra de café…” Falava de velha para moço, quase brincalhã. Abria os braços, mas sem estouvamento nenhum. Era diversa de todas as outras pessôas.

Salvante que aquela firmeza em pisar e caminhar não dizia de mulher idosa. Nem os sapatos pretos, de sola baixa, nos pés miúdos, tudo tão sobressaído singelo. Se lembrou dos usos, então perguntou: — “Onde é que o senhor existe?” Perguntou em sério de cerimônia, mas sem perder a graça de doçura, nos olhos uma bondade — de certo resguardando dó por um pobre desconhecido, viajado por este mundo. Lélio já tinha levantado o manojo de gravetos, e demorou para responder que morava ali mesmo no Pinhém. Porque aquela voz acordava nele a ideia — próprio se ele fosse o rapazinho da estória: que encontrava uma velhinha na estrada, e ajudava-a a pôr o atilho de lenha às costas, e nem sabia quem ela era, nem que tinha poderes…
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Mas um cachorro latiu, e aos pulos veio. — “Tira lá, Formôs! Amigo…” O cachorro esbarrou, dando de cauda, mas queria lamber as mãos de Lélio. — “Não vê? Falo: Amigo, ele entende…” Tir-te e guar-te, porém, ela mesma atinava então que ele era o vaqueiro novo chegado, e a quem já esperava para conhecer, também por agradecer. Olhava: estava abençoando. E, quando chegaram, e que Lélio largou o feixe de gravetos, ela segurou um momento as duas mãos dele. No suave saudar, nunca pessoa nenhuma tinha feito assim; ou, de certo, tinham feito, quando ele era muito menino.
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Dava gosto ver que a casa era de telha e paredes caiadas por dentro e por fora, em regular estado, bem maior do que uma casa de vaqueiro. A meio-lançante de uma ladeira breve, conforme estava; no fundo de lá, quase no sopé, com o agraço de capim em volta, rebrilhava uma lagôa. — “Tem as outras, lagôinhas… Olha: ali mora um frango-d’água, junto dum poço que é dele só…” — ela apontava. O lugar se chamava a Lagôa-de-Cima. — “São três alqueires, estes, fora da posse do Pinhém. O Alípio herdou, por cédula de testamento…” E mesmo tão perto. — “A casa de Lorindão é a dois passos. E a de Soussouza é bem aqui…” Na frente, três canteiros de jardinzinho, com roseira, malva, e onze-horas de mais de uma cor.
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Velhinha, os cabelos alvos. Mas, mesmo reparando, era uma velhice contravinda em gentil e singular — com um calor de dentro, a voz que pegava, o acêso rideiro dos olhos, o apanho do corpo, a vontade medida de movimentos — que a gente a queria imaginar quando moça, seu vivido. Velhinha como-uma-flôr. O rastro de alguma beleza que ainda se podia vislumbrar. Como de entre as folhas de um livro-de-reza um amor-perfeito cai, e precisa de se pôr outra vez no mesmo lugar, sim sem perfume, sem veludo, desbotado, uma passa de flôr. Disse: — “Meu Mocinho…” Mas dizia depressa, branda e enérgica, que nem que “meu-mocinho” um nome fosse, e que ele mesmo fosse dela, por bem que tantos cuidados não o prendiam nem vexavam. Ela olhava reto. O que falava — a gente fazia. Mandava sem querer. Lélio se sentou no banquinho baixo. Ela disse que ele ia ficar para almoçar. E ali reinava um sossego.
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Tão à vontade, Lélio achava estúrdio que o conhecimento dela tivesse sido só daquela mesma hora, parecia poder puxar lembrança comprida. Com uma delicadeza tão de natural, ela tirava os carrapichos presos na roupa dele. — “Sabe o nome destes, meu Mocinho? É amor-de-tropeiro…” E ria. Um dia a moça Sinhá-Linda de Paracatú podia ter rido assim. De que coisa ele estava querendo se lembrar? De onde? Mas uma preguiça sobrechegava também, daquele bom se-estender de descanso, sem dúvida de remorso nenhuma, e deixava logo aquietada e sem pressa aquela vontade de saber muitas, tantas coisas. Por um falar, ele disse: — “A senhora é uma santa…”

— “Que remédio?…” — ela respondeu, com uma festa de riso. — “Meu Mocinho: nunca fui soberba… E acho que nem não fui tola. E se não ganhei fama de santa, também pior não tive, em derredor do meu nome… Até padre-monsenhor se hospedava em minha casa. Todos me declaravam respeito. Não fui maninha: tive um filho — o Alípio…” O Alípio estava bem de vida, acrescentando sempre. Era sitiante a dali cinco léguas, na Pedra-Rendada: lá tinha até terra-roxa-misturada, que tudo produz. Ao dito, ele era já fazendeiro, de verdade, dono de seiscentos alqueires. Mandava de tudo para ela: arroz, feijão, milho, banda de capado, todos os mantimentos; mandava dinheiro. Mas pouco vinha ali, porque trabalhava o tempo todo, no desejo de mais se enriquecer. E ela não morava na Pedra-Rendada, porque a nora não queria, não gostava, as duas combinavam mal.
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A quando escutaram relinchos, ela chegou à janela, espiando a animalada que retouçava na outra vertente, em pastejo, os poldros de bela arqueadura. Ela disse: — “Eu gosto de ver os cavalos…” De aviso, em pé diante dele, ela mesma falava, passando as mãos no vestido: — “No velho, tudo — gestos e roupas — escorre para baixo…” Não era tom de queixa. Falava sobranceira simpática, rindo um pouco de si; e de si firme. Aquela mulher dava jeito de que nunca se queixasse; em sua brejeirice, não tirava da compostura. — “Um dia você ainda vai ver, meu Mocinho: coração não envelhece, só vai ficando estorvado… Como o ipê: volta a flor antes da folha…”
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Era bom, ficar escutando o que ela falava, e que mudava sempre. Falava muito em Deus, mas como se Deus estivesse nem muito longe nem muito perto demais — que nem o seo Senclér, o filho Alípio, o Governo. Referiu o que era o Aristó: — “Buriti de homem. Pedra feita para mil anos, deixa cem anos chover…” E o Lidebrando: — “Deus deu a ele uma boa natureza. Tem desses, também: que só estão aqui para acertar, pôr calço e temperar…” Canuto e Delmiro — eram mesmo o contrário um do outro: — “Canuto quer, por si, em si, o que muitos velhos antes dele quiseram sem muito proveito… Delmiro quer, agora mesmo, o que é só para os filhos e netos dele quererem…” E o J’sé-Jórjo? O que emprestavam a ele, dele não era; e o que era dele, dele tomavam… E o Pernambo? Esse gostaria de poder ser ruim, mas sem fazer ninguém sofrer; nem ele mesmo. E o Fradim? — “Esse, aprendeu com tanta fúria a fazer bom queijo, que agora vive com medo de teta de vaca mudar para dar garapa — e ele não saber fazer rapadura melhor do que os outros…” E o Soussouza? — “O mundo para ele é bom, porque continuou sendo variado de grande. O Soussouza permaneceu menino ajuizado…” E o Placidino? — “Ainda é de outra felicidade. Esse está ainda por debaixo da asa de Deus — a gente logo está vendo…”
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— E… eu? — Lélio finalmente perguntou.
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Ela esbarrou um tempo. Depois disse, com o mesmo meneio de voz: — “De você eu gosto demais, para saber, meu Mocinho. Você é o sol — mas só ao sol mesmo é que nuvem pode prejudicar…” E como Lélio achasse graça: — “Gostei, sim. Você é diferente. Tenho até pena de que essas moças te esperdicem…” Demorava. — “Você devia de ter me conhecido era há uns quarenta anos, dansar quadrilha comigo… Então, você havia de me chamar de Zália: como o Major João Pedro, o Doutor Guilhermes, o Nhô Eustáquio pai de seo Senclér, o André Faleiros pai de meu filho Alípio, o Anselmão, o João Toá, o Bóque… Rosalina. Você acha bonito, o nome? Já fui mesmo rosa. Não pude ser mais tempo. Ninguém pode… Estou na desflôr. Mas estas mãos já foram muito beijadas. De seda… Depois, fui vendo que o tempo mudava, não estive querendo ser como a coruja — de tardinha, não se vôa…”

Não continuou naquele desgabo. Mas segurou a mão de Lélio, e disse, curtamente, num modo tão verdadeiro, tão sério, que ele precisou de rir forte, de propósito: — “Agora é que você vem vindo, e eu já vou-m’bora. A gente contraverte. Direito e avesso… Ou fui eu que nasci de mais cedo, ou você nasceu tarde demais. Deus pune só por meio de pesadelo. Quem sabe foi mesmo por um castigo?…”

O almoço era farto, se comia pai-com-filho: angú de fubá e papas de fubá com carne de osso guisada; e cansanção — aquela urtiga verde-pato, verde brilhante, que ardia e servia também para se esfregar em peito de galo-capão, para que por precisão de neles se coçar ele aprendesse a agasalhar e criar os pintos, chocados por galinha. Dona Rosalina era que lembrava aquilo, com tanta graça no falar, até a velha preta, a Góga, e Crispininha, a meninota, tinham vindo para escutar. O cachorro Formôs, feliz de todos, aparava os ossos. E Dona Rosalina ria e dizia outras passagens divertidas, e mais perguntava a Lélio coisas a respeito dele mesmo, mas sempre só aquelas que ele tinha prazer em recordar e falar.
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Pois mesmo, por melhor, o dia tinha refrescado, dando um vento vulgar, o vento que naquela hora do ano por ali vem torto, passando um pouco por Bahia. Lélio então estivesse vivendo aquilo de cór. A bem, achava, certo, que devia de estar ali comendo e conversando, naquela casa, e não em nenhum outro lugar. Com tanto senhorío de nobreza conservada, a velhinha por nunca se desabusava, e não esbarrava em ninguém o poder-de-si. Ela tinha vida ensinada. O que de repente dizia: — “Homem é criatura de diversos lados, desparelha. Olha o Izaque: corajoso, corajoso, sempre de galope doidado no campo e topando boi bravo todo dia, no atual, sem pavor nenhum, sempre em perigo de beirinha… E pois, quando ficou sabendo que estava dando bexiga-preta na Vargem, ele pegou a trestremer, morto de medo da morte… O Izaque foi o primeiro marido que eu tive…” A cada qualquer coisa que ela notava e falava, a gente mesmo ia se dando mais valor. O sopito de sujeição do espírito — daquele instante em que primeiro se encontraram — disso Lélio nem fazia nenhuma ideia, mais, agora tudo repousado por natural, só o bafejo prezável de paz: como em certas madrugadas, de janeiro quando não chove, em tudo ainda a mistura de claro e preto e mais azul, e ainda estrelinhas no céu, a gente na estrada, com os companheiros, nem era preciso conversar nem espiar uns para os outros.
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Dona Rosalina tinha alguma parecença com a senhora estrangeira velha mãe do Inácio Perpo, peão na Tromba-d’Anta. A voz lembrava a de uma senhora chamada dona Filhinha, que cantava na igreja, e tocava harmônio, na Itamarandiba. E no mais por este mundo sempre tem pessôas de muita bondade e simpatia. Depois do almoço, ela foi dizendo que Lélio devia de tirar o paletó e descansar à vontade a gosto, e armou a rede para ele na sala de fora. Sem riço de desprezo nenhum, só por caridade de servir, falava coisas a respeito da roupa dele, dava conselhos. — “Depois, vou arranjar pano bom, fazer umas camisas para você, meu Mocinho…” Ela entendia tudo, de roupa de homem.
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Mesmo, ali tudo se passava diferente de em outras partes. Por um exemplo — quando Manuela apareceu, passeando com os meninos de Soussouza, Lélio não se inquietou, não desgovernou em seu estar. Manuela era sacudida, imediata de bonita, clara, forte de corpo, com pernas de um bem feito que primeiro de tudo a gente reparava, ela mesma não escondia muito as pernas. Nhá e Nhô, os meninos de Soussouza, queriam ver o papagaio, que se chamava Bom-Pensamento. O papagaio saía de seu sono do meio-do-dia, e falava: “Rosalina, meu bem! Rosalina, meu bem! Eu te tenho muito amor!…” A Manuela era moça despachada: quando ouvia isso, olhava para Lélio, bem de cara-a-cara, e depois perguntava à Dona Rosalina o que era o amor. — “O amor, minha filha, é como essa estória, que eles dizem: que pé de coité, nascendo em quintal de fazenda, dá má-sorte… Mas que não se pode cortar, mas também não se pode deixar — de qualquer jeito, que seja, fazenda que tem pé de coité dá atraso, os donos da casa sofrem…” A Manuela era tão sadia, que a gente achava que ela devia de ter um cheiro gostoso.
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Daí depois, quando o Canuto chegava, ele mostrou certo espanto desagradado, por ver que Lélio estava ali. Mas disso não disse. Tomou a benção à Dona Rosalina, e ele e Manuela fingiram surpresa tão grande, que a gente logo via que tinham vindo de combinação. Lélio se retirou para um canto, dando a eles sua ausência. Mas via de lá como o Canuto também não tirava os cujos olhos das pernas de Manuela, as formosas pernas grossas, de moça que come muita abóbora. Para namorado, espiar assim, Lélio achava que era falsidade, as indecências. Aquele papagaio, Bom-Pensamento, é que era um de pouco falar.
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Ao que passaram também, dali a pouco, passeando por frente da casa, Biluca e Mariinha, com Delmiro e Marçal, e Lorindão tomando conta. Mariinha era uma sim-senhorinha de bonita, mesmo linda, de certo estava de namoro com Delmiro. No que conversaram, ela se atalhava muito séria, diversa de Biluca, tão saída e prazenteira, em seus bons direitos de moça noiva. E Lélio olhava Manuela e olhava Mariinha — com qualquer das duas ele tinha caso de felicidade, se em seguido de sina de se gostarem. E mais não pensava. Nem se importava de ver como na conversa Delmiro, dito tão seu amigo, agora caçava sempre o jeito de desfazer em tudo que ele Lélio falava. Nem criou inveja do ofício de Marçal e Biluca, que namoravam de amor o tempo todo.
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Sendo que o pessoal se despediu e foram passeando mais adiante, Canuto e Manuela e os meninos de Soussouza foram junto. Dia de domingo era contente, no Pinhém. O que Lélio agora queria, devagarinho, era tornar a voltar nas Tias. Mas então Dona Rosalina falou assim: — “Meu Mocinho, eu fiquei reparando a feição de você avistar estas moças, tão aprazíveis, e acho que você é capaz de já ter algum amor seu, bem no guardado; porque com nenhuma delas seu coração mesmo não se importou…”

Lélio ia dizer que não. Mas, sem opinião e sem razão, se lembrou da Sinhá-Linda, e se riu; e, como resposta, disse dela, com modos e olhos, maneira de demorar calado. Ao que vendo, Dona Rosalina mesma sorriu um sorriso esperto, disse baixinho: — “Boi com cincerro no pescoço, é peta pelejar para se esconder, não é?”
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Desde o que, Lélio começou a contar, e contou tudo relatado, daquilo que ele mesmo não sabia se era amor ou se era só bobagem. Dona Rosalina tinha estado no Paracatú, achava que conhecia aquele senhor Gabino. — “Mas, ele, se tem essa filha, só se ela for muito menina demais, muito nova para você, meu Mocinho…” — ela fazia as contas. — “…E mesmo pelas idades, você também caíu num desencontro… Ou me engano? A outra é outra…” Parou, muito séria. Por aquele sério, num momento Lélio doidamente pensou no possível de qualquer coisa, como se de repente ela fosse capaz de trazer ali a Sinhá-Linda, gostando dele, estória de sonho. — “Mas você, meu filho, tem coração lavradio e pastoso…” — foi só o que ela por fim disse. E ele estava satisfeito. Meante quando se despediu, ela o beijou na testa.
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Dali Lélio voltou direto à casa das Tias. Aquele seu bem-estar, de espírito e de corpo, ele precisava de gastar, modo urgente. À hora, lá estavam fazendo o sempre o Pernambo e Placidino, e o J’sé-Jórjo, o Zé-Amarel, o Mingôlo, o Brêtas, e mais: Juca Cinco-Chagas, o Bereba, um João Acabral, outro enxadeiro. Salvaram a chegada de Lélio, com uáis e gritos ditos, assoprando a alegria. Marcavam um movimento menor, do que de manhã, e todos, mesmo com as duas mulheres, proseavam ou jogavam no terreiro. Mesmo assim, de vice vez, um deles se dava por entendido com uma delas, gazeavam para dentro de casa; os outros não opunham dizer. E mesmo Lélio teve outra vontade do ensejo corposo da Conceição e dos mimos senvergonhados da Tomázia. As duas ficavam ali, como de serviço tão sutil. O Pernambo descantava: …Debaixo do buriti, vi teu rastro no lugar. Enterrei sete pedrinhas: você tem de lá voltar…
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Ao assente, Lélio criou razão de saber a respeito de Dona Rosalina. — “Ah, eu até, dia-de-domingo que vem, não deixo de ir passar lá, tomar benção a ela…” — pronunciou o Placidino. — “Ela tem uma glória… Aquela, sim, é uma pessôa!” — o Pernambo falou. …Ponho flôr no teu sapato, dixe de ouro na tua mão; corôa nos teus cabelos, amor no meu coração… Mas mais aí o Pernambo virava e achava que um dia podia se casar com as duas Tias, de uma vez, e ficar existindo de palácio, ali, de cada um que viesse com elas ele cobrava entrada. Todos riam, tal e tal. …Fui andando beira rio, saí na beira do mar; cheguei lá, tinha esquecido: o que que eu ia perguntar?… — “Por aqui só tem estas duas ‘tias’, hem Pernambo?” “— Assim no a-mão, é só. Você acha pouco? A bom: facilitada, tem também a Caruncha, que mora do outro lado do Ribeirão. Até é bonita mais achável. Somenos meio estúrdia, quase nada não fala, isto é, é mesmo muda, e tem um menino de uns quatro anos, ninguém nem sabe quem é o pai. Essa acaba dando cisma…” …Eu não tenho pai nem mãe, nem parente nem irmão: sou filho de uma saudade, cruzada com uma paixão… Pensamento de Lélio deu na Jiní. Deu de tristeza. Será que ela e o Tomé não íam em parte nenhuma, que os outros desprezavam aqueles dois? Mas o Pernambo explicou: que não, todos gostavam do Tomé e da Jiní, que íam quando queriam em todas as casas, só não íam na do Fradim e Drelina, por essas embirrâncias. Mas os dois, por seu mesmo gosto, era que passavam assim fechados o dia-de-domingo, si-sozinhos, sueto de lua-de-méis. …Encontrei meu boi barroso, triste a ponto de chorar: esqueceu tanto segredo — tem mais nada p’ra guardar… O Pernambo nada ou pouco bebia. O Pernambo se desconversava.

Tardinha, escurecendo, Lélio veio de lá, com J’sé-Jórjo, que arrumara uma dôr no estômago, e o Mingôlo, que tinha de voltar para o São-Bento. E, no pátio da Casa, com o Mingôlo mais o Ustavo e a Adélia Baiana, já montados para sair, então enxergaram, longe, e às léguas, no céu da Serra do Rojo, o acêso de relâmpagos duma tempestade calada.
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Chove raio. Dava medo. As asas de um fôgo feio, morte, a claridade triste, aqueles coriscões, feito morcegos amarelos e vermelhos, os rasgões no preto, espadantes, um emendado com outros, não esbarravam.
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O Ustavo falou:
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— Temporal aqui nos Gerais é de ragagem… A lá em cima daquela serra, eles dizem que dá uma pedra-brava de ferro, que atrai mais. Gado bruxo, junqueira, ou mesmo qualquer rês comum de chifres grandes, não se deixa andar subindo por ali: morrem muito, faísca vem, estréla fios de fôgo pelas pontas — cai mais raio neles do que em pé de gibatão, alta árvore…
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Vaqueiro já testemunhara, perto, perto, uma noite — sem chuva, sem vento, só o brasil dos coriscos — um boi se assar assim. Os chifres fulgurados, alumiados em enormes brasas vermelhas, por um segundo, o boi ainda em pé — um podia se estarrecer! — depois nem era um monte de cinzas. Cavalo do vaqueiro rodou roda, se dansava; e espirrou que nem uma velha pessôa: porque ali cheirou a um demo de enxofre e carne chamusca — e o ar grosso. O vaqueiro desapeou e experimentou, com as palmas das mãos no chão: por volta de muitos metros, aquilo ainda queimava de quente.
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Se despediram, os três. A Adélia Baiana, meio miúda, de corpo não era para se notar; mas, de cara, tinha uma esquisita formosura, um jeito engraçado, mexedor: os bons segredinhos, para homem, e as sempre-novidades, todas, ela devia de conhecer.
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Aí Lélio ainda ficou um tempo, olhando. Por mais, esquecido, vendo como no Rojo lavravam aquelas frias labaredas, sem som, sem fim, parecia que íam pôr fôgo no mundo.

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Na entrada-das-águas, subir de outubro, dado o revoo das tanajuras, trovejou forte campos-gerais a fora ao redor de tudo. Presos debaixo do céu, os homens e os bois sabiam sua distrição.
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De tardinha, fim dum dia de duro trabalho, campeando, recampeando, foi que o vaqueiro Lélio do Higino saíu, sozinho, andando reto, só por querer não ter companhia. Carecia de pensar. Longe enorme, por cima da Serra do Rojo, estavam rompendo os seguintes relâmpagos, aquela chuva de raios, tochas de enterro. Um podia tremer de ver, achando que a serra e o mundo se queimavam. Lélio conhecia aquilo. Ah, o mundo não se acabava não; em horas, mesmo, pelo direito, parecia que o mundo nem estava ainda começado. De um modo, o que se acabava era o Pinhém, em quieta desordem e desacordo de coração. E tantas coisas tinham se passado, que deixavam na gente menos uma tristeza marcada, do que a ideia de uma confusão tristonha.
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Não queria mais ver Mariinha, não podia se encontrar com ela. Então, por que demorar ali? Qualquer outro lugar servia. E, quando muitas pessôas estão vivendo reunidas, e umas e outras começam a ir-s’embora, convinha a gente não esperar com os últimos: porque era bem com esses derradeiros que a má-sorte ia ficando. A Jiní, o Tomé, o J’sé-Jórjo, o Ustavo, Seo Senclér e Dona Rute, não estavam lá mais. Quando um boi matara o Ustavo, no confim do pasto do Palmital, o Aristó exclamou: — “No fim, a gente esbarra é em Deus!” E — mesmo de propósito? — olhara para ele Lélio, de esquinta: — “Não vá um esbarrar n’Ele, quando já não tiver mais nem chapéu para saudar…” Feliz de ser, era um assim como o Aristó, que não arredava os olhos nem arriava o pensamento de seu serviço, e resumia tudo com o grande nome de Nosso Senhor: — “Deixa o tatú roendo, Deus está só amadurecendo…” Aristó, capataz de seo Senclér, agora ficara sendo capataz de seo Amafra e do encarregado Dobrandino. Ou, outra felicidade, a do Soussouza: que tivera paraíso aberto, por via de, no casamento do Canuto, a Maria Júlia ter deixado ele beber, bebesse; e que, agora, para outra desculpa de mais tomar, inventava outra festa — no Natal, chamar as crianças pobrezinhas de por perto, dar um jantar, depois se falava, ensinando a elas conselhos de bem-viver e as virtudes. Ou o Pernambo, que passara a dormir em casa das Tias, e gostava de determinar o regulamento em que os outros podiam estar com a uma e com a outra, aquele movimento de fêmeas e machos debaixo de suas vistas era o que dava a ele o maior prazer. Ou o Placidino, que ajuntara o dinheiro, mandara vir uma gaita de boca e um par de altas botas; e agora estava aforrando mais, para comprar uma sanfona de muitos baixos, por aprender também a tocar. Ou, então, aqueles casadinhos, recéns, gastando amor novo, em dias-de-domingo passeavam, abraçados quase com suas mulheres, de certo já botavam projeto dos filhos que íam ter.
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Lélio não se queixava. Nem tinha raiva mais de Mariinha. Em contrário, via que, por último, era a raiva mesma que o tinha feito gostar mais dela, tanto. Raiva de não poder sojigar uma cabecinha, o coração, fazer que ela correspondesse àquela paixão à rasga, mas que era só menos-sossego e os sofrimentos. Mariinha, tão franzina, tão nova, e parecia ser de pedra preta por dentro, parecia um páu de árvore. Derradeira vez que a vira, ela estava magra, seca, séria, e com um avermelhado de olhos chorosos, e um frio furioso no olhar, que nem se o pai e a mãe dela de uma vez tivessem morrido. Quem havia de dizer, de adivinhar que Mariinha, ali no Pinhém, fosse a pessôa de mais opinião e firmeza, sabendo de frente o que queria? Mesmo sendo o impossível. Sem nenhuma vergonha do que todo o mundo tinha de pensar e dizer. Reprovavam, aconselhavam, ameaçavam — e ela, calada, dura de si, deixava Dorica e Lorindão esperdiçarem seus ralhos. Também, todos a respeitavam. Temiam. A ser, temiam o terrível de uma razão sozinha.
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— “Dei’stà! Se você demorar, com paciência, ela vai se espalha em si, esquece essa doideira, acaba retribuindo tanto bem-querer…” — o Delmiro disse. Doideira, mesmo era o que era. Onde já se viu? Pois ficasse por aí, ficasse como quisesse. Ele Lélio não se rebaixava para esperar amores. O que o Delmiro falava nem era conselho de amigo. Pior do que isso, só o que a Conceição oferecera: de ir procurar uma mulher, dia abaixo de distância, no Ribeirão, essa mulher sabia fazer coisas, fatal, governava o amor no sentir de um qualquer. Diguice. Sempre estava certa, quem sabe, era a dona Rosalina, quando dizendo: —“Meu Mocinho, com a Manuela ou com a Chica, você podia ter sido feliz. Mas, com a Mariinha, não. Não dava certo. Porque, nas maiores artes, ela é muito parecida com você…”
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Ia embora. Então, por que ainda não tinha ido? Por muito tempo, o motivo, não soubera se explicar. Mas, agora, sabia. Que ali tinha uma pessôa, que ele só a custo de desgosto podia largar, triste rumo de entrar pelo resto da vida. Assaz essa pessôa era dona Rosalina. Desde aquele ano todo, quase dia com dia, se acostumara a buscar da bondade dela, os cuidados e carinho, os conselhos em belas palavras que formavam o pensar por caminhos novos, e que voltavam à lembrança nas horas em que a gente precisava. Sua voz sabia esperanças e sossego. Às vezes, olhado por aqueles olhos, homem destremia da banzeira da vida, se livrava de qualquer arrocho e ria de si mesmo um pouco, respirando mais. Assim dona Rosalina tinha gostado dele, como mãe gosta de um filho: orvalho de resflôr, valia que não se mede nem se pede — se recebe.
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Amizade que viera rompendo. De começo, os companheiros estranhavam. Maldavam: — “Será está vigiando a Crispininha crescer, mò de namoro? Ou a Góga mesma, cuja velhice?…” Outras vezes, achavam que ele estivesse agradando à velhinha, de manha, interesseiro, pelo testamental; mas que ela possuía o pouco, pouco, só tralha e trastes, e, assim mesmo, morresse, o filho era quem herdava. Lélio ria de todos. Ia dizer a eles o que era poder estar ali perto dela, entrar naquela casa? Chegava lá, e tinha coração. A ela, sem receio nenhum, contava tudo o que estava pensando, e era ela mesma quem lhe ensinava tudo o que ele estava sentindo. A velhinha sabia. A limpo em qualquer caso, da vida dela mesma, ou das dos outros, tirava um apropósito de lição. A mais, tirava, das coisas, do mato, da noite, do céu, um risco de conversa atôa — mas para estremecer essa alegriazinha sem paga que escorre num tocado de viola ou numa volta de cantiga. — “Sobre por cima da lagôa, de tarde, estão jogando umas violetas…” — ela falava. — “Da lagôa sobe um pato: vôa, vôa…” E vinha, uma noite de luar, tinha aqueles ditados: — “Tem um anjo desterrado na lua… Do lado de lá da lua, há luz e festa…” Resumia, aquela môita de bambú, perto da casa, e que alongava o tom do vento. Ela falava: — “É bom, ficar junto de lá, para poder ouvir o bambual gemer.” O bambual se encantava, parecia alheio uma pessôa. Eram coisas salvadas, para cá, sem demora — as palavras. A uma água-escondida, fora de toda sanha braçal, um impossível. Isso aos outros Lélio não podia explicar, repetido longe dela aquele fraseado se esfriava do valor, era preciso escutar direto quando ela falasse, era preciso gostar da Velhinha. Dizia aquilo, o siso da gente achava que ela estivesse ensinando outro poder inteiro de se viver.
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Agora mesmo, Lélio estava indo para lá. Carecia. Ia, pensando, e bem que não devia se esquecer do perigo ameaçado — de que aquele Alípio já tivesse mandado alguém para o agredir, para fazer mal a ele. O Alípio o desfeiteara, primeiro, depois passara aviso: que ia mandar um acostado, que desse nele umas porretadas. Tudo por não querer que ele fosse mais em casa de sua mãe, que tivesse a ela aquela amizade. Carecia mesmo de ser o filho quem viesse impor uma maldade dessas, que era uma ofensa! — “Direito ele não tem, de me proibir de te ver, meu Mocinho… Imagina só o que ele me disse: que já estão falando por aí que você de certo também é filho meu, filho-natural… E acha que isso faz ele passar vergonha…”
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À fé, era um bruto, mesmo para quem tem calo de sertão era bruto, nem não se podia entender que fosse filho de uma senhora de tantas finezas e primores. Agora, por último tempo, Lélio sabia, a fúria dele era maior. Que intimara a dona Rosalina a não deixar que Lélio passasse a soleira de sua porta, e nem ela nem Lélio tinham cumprido de obedecer. Aí, então, ele mesmo viera, andara por lá, em horas diversas, armado e com acompanhamento de um sujeito jagunço, com as caras de brabo dos coitos das Araras. Que Lélio se vigiasse muito cuidado, ficasse tenente — dona Rosalina mesma recomendava. Medo, ele não tinha. Debaixo de alheio, um homem não se rege. — “Este cavalo meu não esbarra para ssíu-ssíu…” — ele declarava. Por bem dizer, nem não acreditava completo que o Alípio viesse fazer coisa nenhuma — aquilo dava de ser tão doido, tão estúrdio. Só, às vezes, pensava mesmo em se apartar, aos poucos, da dona Rosalina: porque pegava a sentir certo vexame, de que a questão com o outro fosse por conta de uma velhinha idosa. Fosse por gostar de uma moça, com amor de homem, então, ninguém o tirava. Mas, assim, por um escândalo qualquer que sucedesse, que era que os outros haviam de achar, de falar? — “Um vaqueiro Lélio, rapaz, que brigou de morte com um sitiante daqui de perto, por causa de uma que era a mãe de um e que podia ser a avó do outro…” Mais por mais, que um queira, não queira, a vida de verdade era sempre esquisita e fora de regra.

Mas, aí, pondo barra a todos os meio-propósitos, ele vinha, voltava à casa dela, conforme não podia deixar de vir. Carecia. Desde o princípio. Desde o primeiro dia de domingo em que lá fora, e no outro, seguinte, quando nem estava bem, sentia o estômago empachado, e um começo de dôr. — “É fígado, meu Mocinho. Vem…” Levara-o à horta, crescida e chovida, e ao quintal, onde tudo era aprazível: com a flôr-de-baile, que se abre de noite; a figueira, em bom lugar, que dava figos o ano todo; o vivo cheiro da pimentinha vermelha; os grandes mamoeiros e o pé de mamão-macho, encordoado, voaçado de abelhas; o urucúm, bichoso, azaranzado perto da cerca; os quiabeiros, a cidreira, os marmeleiros, a acelga verdinverde; as rosas solteironas, que se enferrujavam e mofavam na roseira; e o limoeiro — que, na norma dos limoeiros, na mesma ocasião se carregava de tudo, junto, tinha botões, florinhas, e os limões de todos os tamanhos, verdes, de-vez e maduros — limoeiro tão tratado e cuidado, e por tanto agradecido, que deu flôr antes do tempo. Ali, dona Rosalina ainda parecia mais fazeja e mais senhora, dona de ervas e flores, sabedora do mundo seu. E ela apanhou um raminho ou dois, de funcho: mandou que ele mastigasse bem a folha e o talo também, perfumava a boca; e depois, por cima, deu a ele um gole de água morna para beber.
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A dôr tinha passado. Aí, a Manuela chegou — estava mais bonita do que da primeira vez — e dona Rosalina disfarçou e deixou os dois conversando sozinhos lá na horta, só se ouvia o pio dos sabiás-do-peito-alaranjado, que catavam, e a fala do papagaio Bom-Pensamento, querendo que dona Rosalina quisesse amor.
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A bem, hora depois, quando a Manuela não pôde ficar mais tempo e foi embora, Lélio teve um impensado de precisar de dizer: que estava ali, em tão boa pureza, feliz de paz, e se envergonhava de donde tinha vindo, ainda naquela manhã. Mas dona Rosalina já sabia. Falou: — “Das Tias? Ora, meu Mocinho, você é homem, carece. Elas são pessôas. Mas, deve de não ficar atormentando cabeça, depois, porque foi. Debaixo do mato, o rio perdeu seu barulho… E o ruim é bom, por se pensar no bom…” Depois, por mudar, perguntou, pediu que ele contasse bem tudo que se passara, do conhecimento dele com a moça Sinhá-Linda do Paracatú.
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Ele contou. E ela tinha escutado com toda atenção. Depois disse: — “Modo outro, meu Mocinho, eu vejo que isso é um madrastio que você arranjou para si, nessa Mocinha de fantasma…” Lélio não respondeu. E ela foi dizendo: — “Do que estou sabendo, por trás de você, pode ser que essa moça nem seja bôa, nem saúde verdadeira de mulher ela não demonstra ter. Escuta: mulher que não é fêmea nos fogos do corpo, essa é que não floresce de alma nos olhos, e é seca no coração… Tira isso. Te esconde do à-vez da teteia coitadinha, que ela nunca vai saber o que a vida é. Pede a você mesmo para ir se esquecendo dela aos poucos, meu Mocinho…”

— “Vou gostar não, de mais ninguém…” — Lélio respondeu. E logo se envergonhou simples, pegou no ar que exclamara bobagem. Ainda quando a dona, como por só, sem direto, sem sorriso, disse, voz mais baixa, mais branda que a de uso: — “Manda o capim esbarrar de crescer…” Olharam-se muito. O que vinha, era numa calma de reza: — “Meu Mocinho, você podia se casar com a Manuela, e ter muitos filhos… O Canuto vive desnorteado, atormenta os outros, não sabe o que quer e não quer. E a Manuela está podendo começar a gostar de você…” Bom que era, bem — ele um momento pensou, acreditava. A mais, acreditava no que dona Rosalina sabia achar.
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Mas, o que ele não contou, e não contava, era aonde ia, à dôida, o lance de seu desejo. O que estava se passando, no encoberto de todos. Desde que voltando, um dia, sozinho, do pasto dos Olhos-d’Água, ele se encontrara, de frente, com a Jiní, ela vinha da casa do Lidebrando. Deram os olhos nos olhos — e ele não podia ter engano: a Jiní olhou amor. E ele seguiu, se economizando, vagaroso no cavalo. Espiou para trás: ela também virara para espiar — olhos deles já tramavam. Ainda se voltou, duas vezes. Ela também. E ela bateu com a mão.

O viço de alegria que o aqueceu era um alvoroço, desde as pontas dos dedos seu corpo se remoçava, continuando o resto do mundo, pojado e senhor de si. Afora o retrato da Jiní, com aquela beleza solta, aquela pessôa forte, e tanta coisa que podia vir com ela, e que ele queria adivinhar — nenhum pensamento cabia em sua cabeça. Não precisava de marcar as divisas daquilo. Modo mesmo, fosse por esse poder de livrar a gente de pensar em outra qualquer coisa, que um acontecido assim avultava felicidade. A Jiní, tão desconhecida, inventada, estranha cor de violeta, os olhos aviando verdes, o corpo enxuto, o avanço dos seios, os finos tornozelos, as pernas de bom cavalo. E a lembrança dela se formava sempre mais variável, de cada vez que ele respirava largo.
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Em hora nenhuma, por baixo daquela alegria de festa, deixou de ter conta no Tomé, de se dizer que, por coisa bêbada alguma deste mundo, não havia de desrespeitar o que era de outro, de um tão bom moço e companheiro. Mas, valendo por isso, maior ainda era seu prazer em ter certeza de que era gostado da Jiní, e de que ele mesmo sabia ser capaz de se vigiar, em freio e rédea, limpo de não consentir em qualquer traição. E, por isso, também não tinha receio de facilitar, e não se importava de querer a dali por diante voltar do campo sempre pelo caminho que passava pela porta da casa de Tomé e Jiní. Vinha, pensava: “Estou sem culpas. Até podia encontrar o Tomé, qualquer hora, eu nem precisava de temer nem de me avexar…” Essa ideia, de poder dar com o Tomé e não levar susto, por liso de consciência, era bôa, ajudava. Mas era a Jiní quem arranjava jeito de saber também quando era a vez d’ele passar: e olhava, sempre sorria, e acenava.

Ninguém não sabendo. E Delmiro aquela noite lhe disse: — “O Tomé vai viajar amanhã. Já está com os cavalos em par, e até pediu a seo Senclér um antecipo de dinheiro…” Por não se calar, Lélio discorreu que também tinha saudade outra vez de tropear um pouco por essas curtas distâncias. — “Pois eu só fico aqui até o começo da seca. Já tenho minha tenção baseada…” — e Delmiro perguntou se ele não queria vir junto. Agora era tempo de se pôr coragem em fazer negócios, aproveitar o movimento da roda-do-mundo: hora em que uns estavam perdendo, outros ganhando. — “Você sabe, o seo Senclér está nas últimas. Aqui e aqui, e tem de entregar o Pinhém, por paga de dívidas…” Depois, Delmiro, com um afio severo, de reprovar, indagou se era verdade que ele estava gerando namoro com a Manuela. — “A que não, não!” — Lélio fechou, desgostoso. Dado que, de lado, o Canuto espiava para eles, total, que nem atinasse com o sistema daquela conversa. O Canuto andava querendo longe, Lélio bem que notava; meio a mais, passou por ele o movimento de ir até lá ao outro e expor que se livrasse de ares — os ciúmes; nanja não foi.
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Ah, porque, partido daquele momento, só o que via era o Tomé se desaparecendo na estrada, em manhãzinha, e deixando a Jiní, por tantos quantos dias, sozinha ali no rancho, dona de si. Pensava, e queria sentir dó do Tomé, pelo que ele ia sofrer, de saudades da Jiní; queria obrigar seu coração a produzir pelo Tomé uma grande pena, de amizade. Pelo Tomé, padeceria, se algum daqueles outros fosse se aproveitar de sua ausência, para seduzir a Jiní, que era fruta de beira de estrada, pendurada em pontinha de galho.
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Assim tinha passado, no seguir, o trabalho do dia, pensando nela, só. Antes da tardinha, vinha retornando, guenzo. Se dizia: “Por lá não encosto, não devo justo. Dou volta.” Mas, por que, então, tinha forçado, quase, a maneira de poder vir sozinho? Mesmo veio, passou, demoroso no cavalo, como por último fazia. Soubesse cantar, cantava. Que mas nem precisava. A Jiní estava lá, à espera; como não havia de estar? O vulto dela era leve no ar, podia voar feito um pássaro, desaparecer no vento. Lélio esbarrou. Por um momento, não fazia mal. Viu que daquela vez armara rumo para o cavalo atalhar ainda mais por perto, bem beirando a casa. Olhava em redor, receio de que alguém surgisse. E a Jiní veio, quase corria, já estava ao pé dele. Estendeu a mão; ele estremeceu, ela estremecia. Mal ouviu o que ela dizia, e tinha ouvido tudo o que ela tinha dito. Queria que ele viesse ali, à noitinha; falava. Ele não pôde deixar de negar: — “Mas, vir aqui, semelhado, em sua casa de vocês dois, isto eu não posso… Como é que posso?!” E ela, a fôlegos, disse então que ele meio viesse, ali perto, debaixo do angelim-rosa, onde tem a laje grande deitada, lá ninguém não ia; e ela carecia muito de pedir a opinião dele num assunto. Sim.
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Atôa, enquanto desarreava o animal, e esperava o jantar, e jantava, e conversava com os outros, ele não podia segurar seu nervoso, dava que dava, ardia naquela ânsia d’a hora chegar. Ia — pensava: ia, mas para atender à Jiní; dizer os conselhos, como amigo, de mal e mão não ia haver nada, não. Foi. No lusco, a Jiní estava de branco, sentada na beira da laje; ficou em pé feito fogo. Nem ele pôde abrir nem ouvir palavra nenhuma, ela se abraçou, se agarrou com ele, era um corpo quente, cobrejante, e uma boca cheirosa, beiços que se mexiam mole molhados, que beijando. Ali mesmo, se conheceram em carne, souberam-se. E dali foram para a casa, apertados sempre, esbarrando a cada passo para o chupo de um beijo, e se pegando com as mãos, retremiam, respiravam com barulho, não conversavam.
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Mal e nem conversavam, raras poucas vezes, as palavras curtas, na dura daqueles dias, quando cumpriam de se encontrar, dentro de casa, todas as noites sem uma só. Foram dias sem cabeça, Lélio se sendo em sonho no acordado, fevrém de febre. Enquanto rendia o serviço, dava ação de máquina e opondo olhos e ouvidos mortos aos companheiros, o vozeio deles. Que todos deviam de estar sabendo — ele ora imaginava. Mas imaginava, um frio lhe escorria, de calafro, e mais desimportava. — “Tem tatú no mandiocal…” — o Canuto dizia, roda duma tarde, eles estavam jantando; só podia ser uma indireta. Mas o Canuto o procurava amigo e risonho, agora alegrado, se via que em sua paz. — “E você, aí, Gombê? Me viu nunca não?!” — Lélio discutia, num maligno de arrompe, o jeito daquele assim o irritava. Mas o Placidino, que o estivera olhando, mais que nunca boquiaberto e sandeu, fugia de questão, e se virava para um lado, esfregando os pés um no outro, na ponta das pernas compridas. E Lélio acabava de jantar, fazia e desfazia por ali uns passos agitados. A tarde mudava. Olhava o céu, e seguia para lá, disfarçando rastro. “De qualquer jeito, meu trabalho eu dou correto…” — simesmava. Nem o Aristó nem seo Senclér podiam vir com ora-me-véns.
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Apertava o andar, queria se esquecer do menos mais. Aí as horas se enrolavam. Os dois caíam um no outro, se reajuntavam com fome fúria, como um fim. Alumiava-os a candeia de mamona, que aumentava o tamanho do cômodo, dependurando sombras por entre avermelhados caminhos. E cada dia eles sabiam menos um do outro, só aquele gosto airado de seus suas peles e calores, que se tiravam, e não cediam paz, mas apontavam com tantos rumos. A Jiní era trago desprendido de cálice ou garrafa, uma tonteira de se beber. Não falavam, por assim. Ela não falava. Às vezes, de sofôgo, soltava por entre dentes: — “Faltam seis dias, para ele voltar…” E, de repente agoniada, por essa lei de prazo que os ameaçava, avançava nele. Às vezes Lélio tinha receio. Não via o mingo amor, não sentia que ele mesmo fosse para ela uma pessôa, mas só uma coisa apreciada no momento, um pé de pau de que ela carecesse. Parava nele uma vontade de esbarrar e conversar, perguntar pelo Tomé. Mas ele mesmo não queria. Nem podia ver os trens que fossem do Tomé — um velho chapéu, um paletó dependurado. Tomé era triste? — “Triste? Praga! Mas ele já é assim mesmo assim. Ah, ô homem sem sinal de sal! Pensa que ele é melhor que todos…” — cuspes que ela respondia. E a ideia daquela volta do outro, certa sem remédio, ao fim de dias tantos e poucos, também fazia nele crescer os desesperos de desejo, infernava a gana. Afa, que queria o fundo do amar da mulatinha. Apertava-a com uns braços. Mal o mal, o pensamento de que, com pouco, com a vinda do Tomé, tudo se acabava, furtava-lhe qualquer hesitação, abafava todo começo pequeno de remorso.
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Assim mesmo, no domingo não deixou de passar em casa de dona Rosalina. Foi, e não sabia esconder que estava apressurado, escravo em si das horas, não se consentia inteiro de pouso. A velhinha estava fazendo dôce de mangabas: — “Você vai provar, depois. O dôce melhor que tem neste mundo…” As mangabas de-vez, muitas mãos, muitos dias, ferventadas, no tacho de cobre. Com espinhos de laranjeira e palitos de taquara, ela continuava a crivar, uma a uma, devagarinho, para as livrar do visgo borrachento. Lélio olhou, por um momento teve pena de si mesmo, não cabia naquele sossego. — “Meu Mocinho, o senhor está com olheiras e olhos vermelhos… Você está pouco dormido…” Para sair de seu embaraço, Lélio falou, achava lindo as mangabas, o verde cor. Mas aquela velha senhora sabia tudo, ou já tinha ouvido, ou adivinhava: — “Fala, meu Mocinho: verde como o que?…” — ela disse. Eram os grandes olhos da Jiní, ou um canavial na ladeira, tempo da seca, quando tudo está feio e pardo, só o verde fino lençol dele dá realce. Mas ela mesma continuava: — “Como ramo que tropeiro bota em cima de atoleiro, para indicar, aos que vêm, que o lugar ali afunda…” Mas a voz dela limpava todas as coisas de veneno, e era uma doçura no sempre de dizer, sem ralho nem queixa, se convertia quase numa cantiga: — “A água do rio vai no mar, vapora para as nuvens…” E para onde ia o ferver do mau-amor da gente? O cheiro que foge dessas grandes flores vermelhas… Que chuva iria dar? — “Gostei de muitos homens… Nunca eu queria que nenhum deles sofresse… Ah, como eu sabia…” Por um curto, se pensava que ela ia entristecer. Mas, não. Dona Rosalina era mais forte do que a tristeza. De lance, o olhou — ria um pecado de riso quente no esmalte de seus velhos olhos de menina — como um lume d’água entre a folhagem, retombado e com reenvio de claridade. — “Mas eu nasci mesmo foi para gostar de você, meu Mocinho…” Brincava a sério. — “Você não tem visto Manuela?” — perguntou. Lélio disse que não, com um vago de sentimento. Mas ela o olhava de um jeito que fazia bem: como se tivesse orgulho dele, acreditasse em seu valor de pessôa. — “Tudo está certo, meu Mocinho. Tudo vale é no fim. Guarda tua coragem…” — foi o que disse. E Lélio beijou a velha mão enrugada, se despedindo.

Daí a dois dias, o Tomé ia chegar. Chegou, e noutra coisa não se falava a não ser na irmã que ele tinha trazido — a Chica — que era branca quase como leite, com os olhos azúis, uma beleza muito delicada. — “Por mim — dizia sobre inocência o Placidino — nunca vi resumo de lindeza assim. Com todo respeito, mas nem dona Rute não é tão capaz formosa…” Delmiro alegou que eles estavam demasiando aos tamanhos elogios; mas Canuto, de lado, puniu que Delmiro sofria mania de desmerecer qualquer perfeição; e ainda definiu: — “Quem desfaz, se apraz!” Se via que Canuto estava assoberbado. Vai, a vinda da Chica principiava mesmo a sofismar muitas cabeças. Que era bonita como nem poucas, era. Tanto muito mais simpática, não parecia irmã de Drelina. E mesmo os parentes tiravam vaidade d’ela ser assim. Andava com um grande chapéu de palha, de abas, um laço de fita passado na copa: porque Drelina não consentia que ela tomasse sol, para não amorenar a maciez daquela pele. E o Fradim saía com as duas, por passear, mas nem escondia de se fazer tão imponente, por ter uma mulher e uma cunhada assins. O Fradim pediu visita, e veio com as duas, apresentar a Chica a dona Rute e seo Senclér. Ele só fazia tudo com aquela importância de suas matérias, como tendo estado. E Drelina olhava alto como se ele fosse o rei, e nem tinha pejo de louvar o marido na presença das outras pessôas.

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Peso de dias tão compridos — dezembro foi, parou no meio. Lélio agora só via a Jiní a rara vez, e deslumbrados de longe. De antes, pensou que ia sofrer, que não tinha prática, com o arranco da separação. Mas, em lugar do sofrimento, veio um certo repouso, bom, parecia; talvez o sofrimento ainda ia vir, depois. Às tardes, quando podia, a Jiní esperava ele passasse, batia mão. Os olhos verdes que estavam. Não foi que um dia ela quis esperá-lo no meio da estrada? Lélio, confuso consigo, com o cavalo, se balançou, fez sinal por um perigo. A que o Canuto vinha vindo, mais atrás. Canuto queria falar a respeito de uma festa.
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Gostava dela, sim, sim, e marcava saudade daquelas noites, às dadas, que pagavam o penar. Socavava pensando, repassando a lembrança na ideia, que embebia, que se fervia. Mas, com o Tomé ali segurado, ao triste, tudo tinha de ser mesmo assim, um tanto de saudade, um ponto de remorso, meia vergonha, um susto ainda não de todo calmado, competido.
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Nos primeiros dias, se encorajava em falso, sempre que via o Tomé, ou cada vez que esse vinha perto. Podia querer pedir satisfação, um nunca sabe, e Lélio já imaginava as respostas a dar, concebia se o outro vinha armado. Uma hora, estava tratando de um bezerro — que laçara e peara, e tinha misturado sal com cinza na cuia d’água para lhe despejar boca a baixo — quando o Tomé se chegou. Tem pensamentos que esvoaçam pela cabeça de um, tão ligeiro e tão sem calcar verdadeiramente, que parecem pensados por outra pessôa. Assim: “Se ele vier me matar, eu defendo, eu estou no meu direito…” E mais: que, se fosse o Tomé quem morresse, ele Lélio podia fugir com a Jiní… Mas, um desprezo de si, o nôjo de ter tido aquela ideia, sobreveio logo, e tão forte, que ele quis pensar o contrário: “Se ele vier, quiser me matar, eu cruzo os braços, deixo, porque ele está em seu duro direito…” E parou, não podendo considerar, tinha medo de que o propósito de se deixar punir e matar, assim, estivesse acima de suas forças.
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Mas o Tomé vinha era por bem ajudar, bondoso e mesmo com uma mudança, muito mais de satisfeito, conversava. Por volta de tal tempo, se via que ele abria outra estima por Lélio, queria sua companhia. E Lélio retribuía, sincero, mesmo mais: sabia que ele mesmo era quem tinha começado a sentir primeiro aquela amizade. Modo possível, ser amigo do Tomé levava o coração da gente mais perto da Jiní, isso sim; isto não: que Lélio por aí não queria pensar. — “Lá, você teve alegria de ver a senhora sua mãe?” “— Ah, vi, sim.
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Tão bôa, tão envelhecida…” E Tomé desprendia a peia do bezerro. Lélio soltava a laçada. — “O Mutúm, será que fica para os lados do Paracatú?…” “— Ah, não. É daquela banda dali. Rumo-a-rumo com o Buriti-Alegre. Lugar, mais perto de lá, é a Barra-da-Vaca…” E Lélio achava: se, por maldade de intriga de alguém, ou de por qualquer má maneira, Tomé viesse a descobrir o que tinha havido, pela perda da amizade mesma do Tomé era que ele havia de sofrer, com a quebra ou desavença. Do mais, se repousava, em sela. A Barra-da-Vaca — o velho porto, nesse velho rio Urucúia.

Voltava às Tias. Pois, de dois domingos faltoso, nem quis retardar mais, fez o jeito de passar por lá, a furto, mesmo de dia, em meio de semana. Elas estavam lavando roupa, nas lajes do córrego, clareando os lençois com bosta de boi e folhas de mamão. Receberam-no com por-vez de alegria e despeito. — “Quem está de amores novos… — recitou a Conceição — …não pode comer verdura…” E a Tomázia, ajeitando-se os cabelos à pressa, reprovou, mas em tom que se reservava para um fim carinhoso muito: — “Meio modo que viuvou? Viúvo de marido-em-casa… Não fosse a gente aqui, oé, e um tinha era de se passar a mão limpa, ou beber chá de folha de camomila, que resfria homem…” E a Conceição interrompia de bater a roupa na pedra, para cuspir um pouco do caldo do fumo que mascava: — “…Ou caçar noivado com donzelas… A já viu a nova, que dizem que é a princesa real, a almofada de renda — essa branca de madapolão?…” Daí, tiravam por sorte qual das duas o distrairia primeiro. E o que aquelas duas davam era grosso e raso simples, como um mingau de fubá e leite, comido de manhã cedo. Talvez elas mesmas estivessem sentindo, a contra-siso, isso que agora ele achava: e queriam consolá-lo. Falavam na festa, que ia ter no Natal, dada por dona Rute e seo Senclér. Vinha um homem do Estrezado, tocador de sanfona, e um violeiro ou dois, do Desemboque e da Vereda-do-Anzol. E já faltavam poucos dias.
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— “Festa, meu Mocinho, é o contrário de saudade…” — dona Rosalina falou. — “Para se aguentar a vida no atual, a gente carece das duas… Mas agora estamos precisando mesmo é de festa: que é um arremedo de antecipo…” E ela não temperava sua influência, refletindo que tudo ia ser raro de bom.

Foi um grande jantar, para todos e todos, servido no pátio, por causa que não choveu. Três mesas compridas, feitas com talas e folhagens de buriti, numa delas dona Rute e seo Senclér também se sentaram. Tarde-noite, havia tochas de cera branca e fogueiras acêsas, e candêias em cocos, quem providenciava era o Lidebrando. Os tocadores tocavam muito sérios, por encargo de sua arte. O Pernambo também. E todo o mundo estava lá: até a Conceição e a Tomázia, até a Caruncha mais o filho. Só o Tomé e a Jiní não estavam. — “Alguém ouviu falar que eles dois agora estão desesperados para brigar, estão brigando um com o outro no diário…” — o Placidino contou. Mas ninguém aumentou nada, naquelas coisas não se conversava simples. Quando era o acabar de comer, o Canuto, avermelhado, pediu vênia de licença a dona Rute e seo Senclér, e aí subiu na varanda, de lá puxou atenção: por ser dia-santo de Natal, ia tirar dez ave-marias e um padre-nosso, para todos acompanharem. O Soussouza não escutou direito, tiveram de explicar a ele o que era; e então ele começou a bater palmas de mão, e a falar alto, se via que por demais ele estava bebido. O Canuto caprichou na reza, voz tremida, embelezada. Por fim, fez o oferecimento: para Deus e Nossa Senhora do Socorro protegerem seo Senclér e dona Rute, e a família toda deles, livrando-os das horas dificultosas desses tempos que corriam… Mas, tapando a fala dele, seo Senclér se levantou, agradeceu com amém, bateu palmas e pegou a falar um resto, o Canuto não foi mais longe. — “Este fede, de embusteiro…” — o Delmiro jurgou, estava rugunzando. Mas o Fradim discutia, para os dele perto, achava que o Canuto não tinha sabido aproveitar para fazer um discurso como devia; fosse ele tinha falado isto, e mais isso mais aquilo, palavras certas apropriadas — o Fradim não esbarrava de recitar. E Drelina mulher dele, que não ria nunca, a meio se ria para todos em volta, altanada que nem vaca que deu bezerro, e chega fazia psiu, queria redondo para o Fradim gloriar. Mas algum exclamou alto, da outra ponta da mesa: — “Siriri, casca de ovo…” Ninguém sabia o que era, mas todos riram forte, para se mudar de conversação.
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As moças reinavam de si, tão bonitas arranjadinhas e combinadas — as iaiás: ficava trabalho dizer, de Mariinha, Chica e Manuela, qual das três a mais por flôr. Não se apartavam. E, mesmo, queriam falar, no ouvido umas com as outras, e a Manuela concertava o cabelo de Mariinha, ou a Mariinha ajeitava a blusa da Chica, e a Chica limpava com o lenço qualquer ponto no rosto de Manuela — parecia que as três tinham se aprontado juntas e careciam de, assim reunidas, parar mais fora de alcance. E estavam também com a Dlaljizinha, filha do enxadeiro Damastor, e que era mais pobrezinha e feiosa, essa muito se acanhava. E quando a Dlaljizinha se perturbava recuada para trás, sempre uma das outras segurava na mão dela e a trazia para perto; mas por esse cuidado mesmo se via que elas todas sabiam bem que na verdade a Dlaljizinha não podia fazer parte.

Todos do São-Bento, também. Marçal noivava com a Biluca; o Lorindão ria sempre e falava grosso, dando de não dar importância a nada: — “A vida é p’ra os moços… Mocidade não tem juizo…” Mas a Dorica fingia braveza de cuidados, recomendava que os noivos ficassem por ali permanecidos, que não andassem fugindo para longe deles. A Adélia Baiana semelhava um carneirinho, com laço de fita nos cabelos; ela sacudia o corpo, meio curvada no falar, e tinia um riso que cativava a atenção. O Ustavo dizia: — “Ah, meu tempo!” — e saía em giro, achando que tinha de ser mais alegre que nos outros dias, saudando todo o mundo. Mas o Mingôlo não desaparecia de perto da Adélia Baiana, só conversavam a respeito da noiva dele.
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De vez pronta, o Pernambo porpassou as cordas, se debruçado na viola, tirou: … “Senhora dona da festa, esta vai em seu louvor: na sola de seu sapato, corre água, nasce flôr…” Honrava em hora dona Rute. Mas o Soussouza, o Marçal, seo Senclér mesmo, e outros, reclamaram alto: aquilo era pé-de-verso conhecido, carecia de dizer um novo, fresco, tirado de ideia. Que, se não, o Pernambo era assazmente preguiçoso comodista: vida-ganha, casa-quieta, papo-cheio! Então o Pernambo dedilhou um dlim, e fez, de juízo: …Meu jardim é o coração, não preciso de ninguém: tiro verso e colho flôr, para a dona do Pinhém… Com o que, conheceram. E Delmiro dizia, só para Lélio ouvir, que nos outros anos seo Senclér nunca tinha dado festa, e pois então agora dava era por ser certo que ia-s’embora, por isso não estava importando de se misturar com os pobres, só por despedida não tinha dúvida nenhuma. E o Pernambo punha um verso para cada pessôa, começando nas mocinhas. …Vi dizer que neve é branca, sei que branco o açúcar é… — isso era para a Chica. …Deus fez dona Mariinha, levou tempo p’ra fazer… Depois cantou que a Manuela, quando andava, etcétera que o chão, mesmo, pedia para ela forte pisar. Do que cantou para a Dlaljizinha, Lélio não escutou bem. Desde o mais, o Pernambo pôs o verso para dona Rosalina, que rezado: …Vi o coração do campo, vi o rastro do luar; vejo dona Rosalina, mas nem posso comparar… Dona Rosalina botara um vestido preto, lustroso, a gola escondia todo o pescoço, presa por debaixo do queixo, e os cabelos dela, tão arranjados, tão branquinhos, alumiavam. Ela parecia uma das pessôas mais influídas e alegradas: fazia rumor nenhum, mas como que animava o engenho da festa. E o filho dela, o Alípio, ali estava também, convidado, só que a mulher dele não tinha podido vir. Dona Rosalina chamou Lélio, apresentou-o ao Alípio, com estima de elogios e palavras; e o Alípio prezou muito Lélio, com ele conversando suprido de amabilidade, agradecendo as muitas bondades que Lélio dedicava por sua velha mãe.
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Mas o Canuto chamou Lélio de parte: queria falar assunto muito sério — avisar, muito às bôas, que ele tinha pensado e repensado bem, resolvido desistir de qualquer interesse com Manuela, botava pontos-finais naquele namoro danado de antigo. Lélio já sabia. O Canuto e o Delmiro, por derradeiro, ameaçavam altos de brigar, por conta da Chica; disso de Delmiro, Lélio se admirava. Ao que andou por ali, espiando exato. Num retirado, quase no escuro, viu o J’sé-Jórjo, o Ilírio Carreiro, e dois desses outros, não sabia os nomes; e, ali longe, o J’sé-Jórjo, em pé, conversava passagens velhas de sua valentia, exportava suas falas de valente, movia os braços — nunca ninguém tinha visto o J’sé-Jórjo conversante assim. Mas o Placidino, bem no meio da festa, agachado, não se arredava de perto dos músicos, como se quisesse ajudar esses a tocar. E também, beira a beira, a Conceição mais a Tomázia aproveitavam companhia de umas mulheres de trabalhadores, de lá elas reparavam nas roupas e nos modos de cada um. A Conceição e a Tomázia hoje estavam mais sérias e bem compostas que nenhuma, davam-se muito ao respeito. O Soussouza introduziu de dizer alguma brincadeira para uma delas, e ela respondeu, cara fechada e com um muxoxo: — “Engraçadinho! Não se enxerga?…” Elas, ares. A Caruncha ouvia bem, mas não falava, não conseguia, nem esboço de palavra. Ela não se envergonhava de vir perto das pessôas. Era uma mulher alta, clara, de olhos espertos e rosto comprido, um jeito de dureza. Só parecia ver a festa e o filho. Segurava a mãozinha dele, o menino achava tudo bonito, nunca tinha visto um festejo, e sempre se virava para a mãe, e contava para ela tudo o que estava vendo, como se ela fosse cega, e não muda. E a Caruncha escutava com atenção o que ele contava, e sabia olhar com muito amor, sem precisar de se rir.
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Daí, Lélio tomava coragem, bebia um gole de cachaça-queimada, e vinha para o florear das moças. Era o que elas queriam — os rapazes todos em volta — tanto que, primeiro, sonegavam, importantes, queriam parecer não querer. Ao de um momento, ele pensou qual delas podia merecer por mais bonita. A Chica. Mas, consoante sua beleza, acomodava um liso, um suave de inocências, e tanta pureza de primor, que era como se a ela ainda faltasse alguma coisa, algum sombreado, um questionamento, ou o firme risco de já sem espinhos. Mariinha era linda — cinturadinha, os pés pequenos, diminuidinha de corpo: parecia leve só para os olhos da gente, mas que, se um fosse querer carregar, levantar do chão, que o seu peso seria enorme. Manuela, se via que ela podia transpirar, sacudir os braços roliços, dizer uma palavra de desabafo: por isso a gente adivinhava que ela era gostosa e cheirosa; Manuela estava sendo bonita como uma fruta. A Chica apertava muito os olhos, muito azúis, para enxergar melhor as pessôas, e sempre em si sorria. Mariinha mudava o ar do rosto, quando dava muxoxo ou olhava por cima do ombro: a gente tinha vontade de a pôr no colo. Manuela veio para Lélio, e conversou, gracejou com ele. As outras também entraram na conversa. Se via que Delmiro e Canuto, que enjoavam ali perto, daquilo menos gostaram. Mas, naquela hora, Lélio sentiu, em seu pressentimento, que, qualquer das três que ele escolhesse, com essa podia namorar leal, e mesmo para o finalmente de se casarem, quem sabe, pois seja.
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O que Manuela dizia era sem enleios, e assuntos fora deles dois. Ao que ela, social, indicava — o realce e o parecer de uns e outros: de como o Aristó se prevalecia goro e serrazinado, sem jeito, não assentando com o sistema da festa; d’o Fradim e o Alípio não deslargarem de perto de seo Senclér, sensatos; do modo quieto e prestativo do Lidebrando, que ficava sempre junto de Benvinda, mas zelando pela arrumação das candêias e tochas, pronto para resolver todo arranjo que se carecesse. Falavam também de dona Rosalina, sempre por um só todo-louvor — e mesmo nisso era que eles conseguiam falar mais quentemente sinceros, meando de se agradarem, sobre certo, um ao outro. E aí se esparzia no povo um fafá de risadas, grupo de pessôas que vinham da porta-da-cozinha: contavam que estava lá a Toloba, ajudando a lavar os pratos. Ah, até a Toloba estava ali, aproveitando o ovante da festa — e Tomé e a Jiní não estavam! Lástimo pensando neles dois, Lélio recebia um sudarte de tristeza. E dona Rute sentada conjunta com Maria Aparecida, Dona Rosalina, Dorica e Maria Júlia. Dona Rute era decerto, a qual, a mulher de mais beleza que já tinha vindo aos Gerais. Tão rica, e fina, e bem vestida, tão acima de todos ali, afastada, que um homem não tinha remorso de desrespeito: de olhar para ela, pensando, em escondido, como seriam as partes dela, as coxas macias e brancas, os seios por debaixo da roupa, como seria ela na cama; e mesmo a ação desse pensamento virava uma devoção sutil em sonhos, pelo impossível. Manuela conversava muito hábil de amável, mas, encarar, não o encarava: se via que não era por vergonhosa, mas porque queria dar ideia de estar muito desinteressada de si e convertida de se prezar só nos movimentos da festa. Tanto era uma moça saída, mas que se ressabiava a manso, que se guardava. Margem que, por essa altura, já Delmiro e Canuto conversavam com Chica e Mariinha, e cada um jogando remoques e indiretas, por se suplantarem, porfiando no agradar à Chica. Mariinha, tão sensível bonita, e nenhum dos moços tinha inclinação para gostar dela, parecia que eles dela provavam medo. Ao que, num momento repente, agora que o via conversando animado assim com Manuela, a Drelina veio de lá, direta, falou com ele também, muito agradável — ela nem era antipática, como de longe às vezes parecia. Perguntou se Lélio tinha estado no Curvelo, se conheceu um irmão dela, que se chamava Miguel Cessim Cássio, atendendo pelo apelativo de Miguilim, e que lá direitinho trabalhava e ia nos estudos. Lélio, em coração, sentia não conhecer esse irmão de Tomé e Drelina, para poder responder que sim, com afeto. E, quando Drelina se afastou, Manuela disse que ela era tão bôa, que não tinha trato com a Jiní mas sempre que tinha alguma coisa apreciada, fosse de comer ou de outras, às vezes mesmo peças de roupa ou enfeites, dava ao Tomé, sem nenhuma explicação, mas sabendo destinado que era para a Jiní mesma. E a Manuela era de verdade bonita, sadía, com rentes olhos de vaca, e que brilhavam.
De seguida, se dansou. Quem propôs mesmo foi a dona Rosalina: falou que, sem dansa, festa devia a festa. Formaram pares: Delmiro e Chica, — Canuto pegou a conversar com o Aristó, fingia, dava as costas, para não avistar aqueles dois; Lidebrando e Benvinda; Mingôlo e Adélia Baiana, — o Ustavo não dansava, ele mesmo mandou que os dois podiam e dansassem; Fradim e Drelina. E a Maria Júlia olhava de lá, vislumbrável, em ruins vermelhos, por conta de ver o Soussouza fazendo tolos forcejos por tirar a Tomázia ou a Conceição. Mas Lélio nem teve tempo para escolher dama: dona Rosalina veio sorrindo, pegou no braço dele, que era o seu Mocinho — os dois formaram a mazurca dansando. À parte Lélio não se disse a desdém, de dansar com a velhinha antes sopresava-o o afago de todo carinho tanto respeito, uma ausência de si, feito fosse aquela dansa uma arte de religião, aprendida por sempre, fora do crédito vem-vai das coisas — mar o mar. No uso do momento, semelhante se esquecido, não temia nem queria nem consistia nada, mas lá. Al a Velhinha se asia tão delicada, senhora de serenim, em giro baile, leve espécie de criança, que sabia ser e sorrir e olhar, sem estorvo nenhum. — “Meu Mocinho… — ela disse — …antes eu não encontrei você, não podia, meu filho, porque a gente não estava pronta de preparada…” “— E eu, mãe?” — ele perguntou, sem primeiro se esclarecer. — “Uma estrelinha brilha, um átimo, na barra da madrugada, antes d’o sol sair…” — assim ela respondeu.

Mas, nisso, bateram palmas, num rebuliço alegrativo: seo Senclér tinha tirado a Mariinha para dansar. Todos os outros pares se saíram, o meio do terreiro ficou adro, o povo em volta, apreciavam. Ah, era luzido — dada praça à dansa — que nem um teatro! A Mariinha parava no ar, com um risco de movimentos muito certos, cabecinha altaneira, parecia que nem estava nada vendo, só dansava, dansava. E seo Senclér, garboso cavalheiro em sós, tomava conta dela com firmeza, cumpria a sério aquele proceder, o prazer de dansar com a Mariinha no rosto dele estava-se. Até os tocadores demoraram o retente da música, e tiravam o maior arrojo que podiam, da sanfona e das cordas. Por um fim, tiveram de esbarrar. E seo Senclér fez uma vênia muito aposta, para a Mariinha, pegou a mãozinha dela, e levou-a para seu lugar. Só então os outros pares repisaram.
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Lélio ainda estava olhando o terminado, quando dona Rosalina se chegou, trazendo Manuela, para os dois dansarem. Lélio dansou com Manuela, e conversaram, conversa tola, mas com pontinhas de intenção, festa vai, festa vem, o resto do tempo. — “Aoé, e o Canuto?” — xixe ele perguntou, meio maldoso. — “Ah, p’ra ver: com o Canuto valsei, aquela outra dansa, e você nem ao menos reparou…” — ela disse, com muxoxo, meio maldosa. — “Ah, foi?…” — foi ele disse; disse meio irado — os usos ciúmes. O amor que amavam. Mas, houve uma hora em que ele não pôde deixar de falar naqueles dois que não tinham vindo, quem sabe não tinham sido convidados? — “Está sentindo pela Jiní?” — a Manuela perguntou com outra malícia brejeira. — “Estou sentindo pelo Tomé. Pelos dois…” — Lélio respondeu, com um sério tão sincero, que a Manuela o encarou, que nem se estivesse dando a ele seus belos olhos. E disse: — “Não. Só eles não vieram porque não quiseram, porque estão brigando de ódio de amor o tempo todo — é o que se diz. Mas bem que eles foram convidados. Hoje é Dia de Natal…” E mesmo, naquele momento, alguém estava lembrando que a festa não era própria para se dansar, mas para gloriar e contemplar a vinda do Menino Jesus, na gruta de Belém, na manjedoura, entre o Burrinho e o Boi, para a salvação de todos. A esmo, então, todos concordavam e ficavam sérios, olhavam para cima, para as estrelas, que extremavam. E os tocadores tocaram a chegada dos Reis Magos:
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“A lapinha era pequena,
não cabiam todos três…
não cabiam todos três…
Cada um por sua vez,
adoraram todos Três…
Adoraram
todos
Três…”
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Esse mesmo canto, de Folia, solene ciente, o Pernambo tocou, dia de Ano e dia de Reis, honrando o Menino Jesus ali, no meio dos campos-gerais. Foi então, e também depois, que Lélio em mais de uma ocasião procurou ver Manuela, e estiveram conversando em casa de dona Rosalina. Mas a Manuela se recatava, com amizade natural, e Lélio esbarrava num enlo: traçado tudo, achava que ela do Canuto ainda não afirmara esquecimento. Aí tinha pressa de ouvir que ela gostasse dele, dele!; mas ele mesmo não tinha certeza de lhe ter amor que desse para casar. Assim ao assim, dona Rosalina, que decifrava o diário, olhava-o muito, razoal se dissesse: — “Meu Mocinho, você está mais pensando em outra…” E estava. Da Jiní, tinha uma pena, muito sentida, quando ouvia contar o que em casa dela se passava, e quando via o Tomé, calado triste, lidando sempre por duro trabalhar. Mas pensava era na verdadeira outra: a Moça, linda, de Paracatú. Queria vir para Manuela, e a imagem de Sinhá-Linda neblinava.

Na minguante, fim de janeiro, saíram pelo gado fugido, numa batida que longe os levava. Se apartaram em dois bandos. Fradim, Tomé, Delmiro e Canuto, iam para o norte, até à Serra do Saldanh’. Mas Lélio, com Aristó, Pernambo, Placidino, J’sé-Jórjo e Soussouza, tinham de descambar para lá da Serra do Rojo, numa distância muito maior, pelo extenso do poente. A meio e mal, enquanto ainda estavam juntos, Canuto chamou Lélio à sopra, e avisou, muito afirmado: — “Malungo, você é como um irmão meu, pois, escuta: acabei todo estatuto de compromisso com a Manuela, por bem. Se você tem o interesse disso, você pode, pode ficar noivo!” E Lélio não respondera, que aquelas palavras não conseguiam resposta. Tinha ira daquela donância do Canuto: por ser astucioso assim, o que ele merecia eram umas boas bofetadas. Mas, chuva e sol, e gado bravo desesparramado, tão ermo, tão em az, tão montante, não podendo ver Manuela nem se quisesse, ele foi aprendendo a pensar nela com os carinhos novos, e achava que, se tudo ia aos poucos ficando livre entre eles dois, então era porque aquele amor estava mesmo em seu destino se propondo. Temperava saudade. Tinha saudade também de dona Rosalina — que havia de ser a madrinha melhor. Mas seu corpo sofria falta forte da Jiní; e ele cria: …Ah, pudesse estar ao menos uma vez com a Jiní, uma vez só, e eu quebrava este cativeiro, e dela pra sempre me esquecia… E quase não pensava na Sinhá-Linda.
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Voltavam, com arribo de quase um mês: não havia mais pequís, nos cerrados, e os araticúns amadureciam. Tornavam com muito boi. Quando Lélio cantava, aboiando, Manuela era a moça das cantigas. — “Me caso, Pernambo?” “— Ôi, vôi! …Eu moro naquele morro, na metade da subida. Você não gostar de mim: ai que vida aborrecida…” O Pernambo retorquia tudo em versos, mas agora falava muito na Tomázia e na Conceição.
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Das várzeas, na virada do Bom-Burití, avistavam uma corujeira, um arruado de casinhas leprando em ponta de serra. — “Apre, que deve de ser o triste, lá…” — o Placidino dizendo. — “Eh, só é triste pelas pessôas. Não tendo ninguém num lugar, não faz alegria nem tristeza…” — Aristó desfalou. Parece que naquela áspera burguéia nem não morava mais ninguém. O Placidino moeu espanto. O Placidino carecia sempre de estar perto das pessôas.
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No derradeiro arrancho onde pernoitaram, o Pernambo teve uma dôr forte, nas tábuas do peito, com uma agonia suada, que dava medo. Como custou passar. Desde depois, entre asmas, o Pernambo referiu que sabia que ia morrer daquilo, qualquer bom dia, por isso não tinha ideal de se casar, e precisava de estar, toda hora, se esquecendo da tristeza. Em tanto que o Placidino cozinhou um chá, no meio da noite, para o Pernambo, um chá de pimenta-de-macaco, que foi a folha que se encontrou. De após, o Pernambo, baixinho, já alegrado, trauteou: …Maria Branquinha, que paga feitiço, que assa chouriço, que pode com isso, que sabe o amor: me vale, me lava, me trata, me salva, me vela, me leva, com resplandor… Tioréga. — “Ao pior não é a dôr; é o arrocho…” — ele só disse também. E o Soussouza, que ainda se sustava com as lágrimas nos olhos, de ver o Pernambo sofrer, então começou a contar o caso de um chicote com cabo de metal, que um Luis Lemes tinha dele roubado; e destemperava, chamando esse Luis Lemes dos nomes de mais ofensa.
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Mas na outra manhã tudo estiava bem, vinham vindo, o Soussouza na culatra benzia qualquer rês que remostrava doença, o gado certo caminhava. — “Me caso, Pernambo!” — Lélio decidiu. Já o Pernambo, bom, já cantava: …Na igreja da minha terra, adonde fui batizado: cada moça que se casa, eu é que fico logrado… Até o J’sé-Jórjo batia cabeça, aprovando. J’sé-Jórjo sempre queria estar perto de Lélio, proposto. Mas aí, entre a Vereda Azul e o pasto da Cascavel, de repente Lélio enxergou um pau-d’arco novinho novo, que crescia, linheiro, no meio do capim-bezerro. O qual se prometia: porque tinha a casca lisa e de cor igual, sem muxo de musgo pego, nem parasita nenhuma, e era mais grosso em baixo, vindo se afinando devagarmente aos poucos, e subia metro-e-meio de alto, sem esgalhos, só o tufe de folhinhas no fim em cima. — “Eta uma vara-de-topar! Isto que vai dar uma vara bôa, mesmo encomendada…” E Lélio se apeou do cavalo Serracém, isabel ligeiro, tirou a faca, e riscou no pau-d’arco, talhando o pique dele, para todos que passassem por ali logo vissem que a arvorezinha tinha dono, sinalada e reservada; era só esperar por volta de uns tempos, e vir ali, num mês sem erre, e torar o tronco, já fornido e bom longo, e encastoar o ferrão — uma vara estava feita fabricada.
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Mas, mal chegava ao Pinhém, o Canuto pedia conversa. O Canuto tinha voltado havia mais de uma semana. Levou Lélio para uma esquina de curral. A gente via, ele estava tão furioso, que sacudia um ombro depois do outro, e avançava a cara, de jiboia — parecia um palhaço sem serviço — parecia que o nariz se encompridava. — “O Delmiro ficou noivo da Chica!” — ele disse. A xís, sururo se reteve, olhando parado, sério de cenho, como se tivesse contado uma das horrorosas coisas, malmedonho, e completasse que Lélio devia de dar algum grito de espanto. Como por fim, ele mesmo enguliu em goela, e abaixou os braços: — “…Seu amigo Delmiro… Vai ver, o falso, traiçoeiro, que sempre vivia dizendo: que não se casava com moça pobre, mocinha daqui! Só a fito de enganar… O cão os lázaros!…” — voz de quem ia chorar no pé do momento. Lélio não respondeu; mas pegava que, o pior de tudo ouvir, para ele ainda estava faltando. — “Cá, por mim, eu me importo?! Não sou pai ou mãe, não sou parente dela… Nique que namorei essa menina, um extrato, quando ela chegou, mas por um divertimento, mexida de novidade…” — o Canuto agora expelia, cortando ruindades com a fala. — “Nem eu quero nunca me casar, mulher nenhuma não presta! Olha…” Puxava nos braços de Lélio, punha mão nele. — “…eu sou com você como um irmão…” Afe, que se desafrontou — disse tudo terrível. De Manuela.
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Lélio tirou um passo atrás, repeliu as mãos do outro. Sacou a faca e percurou o fumo na algibeira, começou a picar um cigarro. Viu que os dedos constavam a tremer, e ele formou dentro de si uma força — por tudo neste mundo não queria que eles tremessem, o Canuto vendo. Mas então a tremura passava para seus beiços. A boca seca, seca, impante. Suspendeu os pesos de sua cabeça. O peito, parado, no interior, concebido que geasse num desarrasado.
O que o Canuto depunha: que já tinha estado com a Manuela, em corpos, já a conhecia como mulher… Motivo, primeiro, pensou que ela consistisse ainda virgem, no costumeiro; e ele mesmo adiantara aquilo com tenção honesta de, em posse, se casar. Mas, depois, Manuela, por sua crente vontade, sem ele perguntar nada, confessou que, antes dele, outro também a tinha deflorado. Um sujeito de cidade, um daqueles “Botinhas” — fiscal do Banco, se diz, que viera ao Pinhém para orçar os zebús. Ao que, esse, tinha prometido a ela feliz casamento, e sucede que não deu mais notícias. A Manuela era resto de dois… E era pelo descrédito disso que ele informava Lélio, mais que como amigo, como verdadeiro irmão!
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Lélio acendia o cigarro, e não conseguia, não competia de se levantar da régua de tábua onde se acomodara; porque, só retente, se levantasse, não travava a mão de produzir o revólver e ensinar fôgo no Canuto. Oé, esse falava, aos ós-e-ás, em tanto explicava. Mas Lélio mal ouvia mais palavra, do que ele dissesse. “É honra de matar? É hora?” — se perguntava. Pelo poder, esperou, em jus, que o outro calasse, se cansasse. À mossa, más mercês, que berrou: — “Abasta!” — bruto. Nem vendo se Canuto se espantava. Surdo saíu, com andar de zonzo e cara tão sem sangue, que até o Delmiro perguntou se ele tinha algum aperto, se carecia de ajuda. Não, de ajuda de homem não carecia. Só o uso de não ficar ali; se dormisse no mesmo cômodo com o Canuto, aquela noite, não respondia de suas ações. Um melhor pensamento pediu a dona Rosalina. Caminhou para lá, quando já se anoitecia. O J’sé-Jórjo o acompanhou, até certa distância, amigo calado, se via que, sendo preciso, aquele estava ali, sem indagar nem saber, mas pronto para o sistema de garantir — o matando-ou-morrendo.
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Do bambual, do jardinzinho, da porta, Lélio começava, a capital, um remanso. Acarinhou o cachorrinho Formôs, que era dele um pouco. Ao em que dona Rosalina o abraçou, com uma alegria tão estável, que ele soube em si que ia receber consolo. Ela percebeu que o seu Mocinho tinha recolhido brasas. Olhou-o — e de seu olhar provava aquele estilo de paz, aquele ralear dos agravos. Adiado ela falou: — “A água, meu Mocinho, grita a qualquer pancada que lhe dão…” Assim aos círculos a existência das saudades obedecia naqueles olhos — ou luz, ou lágrimas. Agora sorria. Lélio sorriu também. — “A senhora assente d’eu passar a noite aqui, na rede de sua sala?” Por um momento, o que suscitava pior — a tristeza balançada na raiva — se pousava. Mas a raiva latejava forte, raiva do Canuto, capaz de amargos. A que um não quer — e, aí mesmo, assassina. Advertido que ela dona Rosalina devia de ver o que ele sogastava; pois disse: — “Fala: — Macio feito pedra… Macio feito pedra… — Quando a pedra amaciar, você então sabe o que macio é, meu Mocinho…” Vai, a voz dela, era bom, punha a gente pequenino. Lélio ainda se calava, mas porque queria que ela contasse, perguntasse, soubesse, tudo suprisse. De fim, pôde, desafogou num suspiro. E falou. Falou, o tempo que quis. Falava sua raiva, falava mordido. Falou sua tristeza.
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Dona Rosalina o escutava sem sombra nem surpresa. Escutou, e disse: — “Mas, só porque o Canuto é um bobalhão, e a Manuela uma bôa moça, você não tem que ficar atalhado assim…” Lélio a olhou com sobrancelhas altas, não entendia. E ela explicou: — “A Manuela tem saúde e lealdade. Teve confiança num, depois teve no outro. Agora, olha: se o Canuto mesmo estava pensando que era o primeiro, ela precisava algum de contar a ele o que tinha tido com o outro, com o ‘Botinha’?…” Disse aquilo, e não disse mais. Saíu para dentro, arranjar alguma coisa para Lélio comer, e saíu simples cantando. Sozinho, Lélio se piscava os olhos. O que as palavras de dona Rosalina abriam era só uma claridade em seu espírito — uma claridade forte, mas no vazio: coisa nenhuma para se avistar. No dado do momento, ele se aliviara. Mas zonzava, entanto, desconhecendo se parte desse alívio não manava da voz, do justo olhar, do feitiço de pessôa de dona Rosalina — que ela semelhava pertencer a outra raça de gente, nela a praxe da poeira não pegava. E ele trascoava uma espécie de ira de si, de estar aceitando depressa demais aquele consolo. Se vexava. Será se era como se ele mesmo fosse tão frouxo, que devia de ter estado o tempo todo querendo umas palavras assim contritas, para desculpa de se amolecer sem opinião. Queria agora fechar os olhos, recompor o ódio do Canuto, desesperar a dar gritos brados, durindar na faca. Queria uma desordem. Se mexeu até pensando em se despedir, voltar para a Casa. — “Meu Mocinho: fôgo come fôgo…” —; da Velhinha o dito. Aí ele já ia se desgostando, pensava que ela vinha soletrar a parte da paciência. Mas, não, dona Rosalina estava falando agora era do diz-aí de horror de amor, de Jiní e Tomé, como que se rasgavam. Assaz que, logo depois, ela mesma disse: — “Bem que esse Canuto enquadrava para uma bôa sova…” E Lélio aceitou de vir para a mesa e quietar seu espírito.

Só pelas tantas da noite, vendo que ele não dormia, dona Rosalina apareceu e veio retomar a conversa. Mas não tocava nele Lélio, falava como se o caso de amor fosse só entre Manuela e Canuto, singular certo. Demonstrava como era que o Canuto não conseguia razão nenhuma. — “A única coisa que tem importância, é o sentimento fundo de cada um, meu Mocinho… Um homem deve saber principiar pela mulher que ele ama, sem o rascunho de aragens passadas. Um cavaleiro são suas pernas…” Mal e alto, que o Canuto tinha falado também que a Maria Júlia, irmã de Manuela, fora muito levada; que dois dos filhos, dela, de pais diversos, não eram de semente do Soussouza? Idiota, o Canuto. Idiota de pai e mãe, que ele era. Melhor mulher pois o Soussouza não podia ter achado, a de que ele precisava, a que lhe servia. — “A daí, e olha, meu Mocinho, eu tive duas irmãs: uma foi para o convento, na Piedade, viveu e morreu como santa; a outra moçou, dizem que não houve rapariga que fosse mais dos homens. Agora eu, que estou aqui, fiquei mais ou menos no meio… Assim que sempre tive alguma inveja de cada uma das duas… Elas eram lindas escolhidas.” Soando e sendo sutil o novo que ela falava, o simples e justo. — “Trovão com azul… O Canuto carregou o caso. Criatura humana é muito constante na tolice, tem a tolice na natureza, meu Mocinho. Custa muito para um poder solto de achar…” Assim dizendo, e sorrindo, a passo igual. — “Atrasmente, meu Mocinho: ao que Nosso Senhor, enquanto esteve cá em baixo, fez uma Santa. Vigia que essa não foi uma puras-virgens, moça-de-família, nem uma marteira senhora-de-casa, farta-virtude. Ah, ai, aí não: a que soube se fazer, a que Ele reconheceu, foi uma que tinha sido dos bons gostos — Maria Madalena…” Agora, o pubo do Canuto, queria primazias! Somenos fosse homem, e não um prazível diabo, de luto antes da mortalha, então se casava com a Manuela, e não andava abusando segredos no juízo de terceiros. “Deixa estar, que eu sojigo o Canuto a casamento…” — Lélio pensou, gostosa raiva. — “O cão!” — que ele disse. Mas dona Rosalina, que rastreava a alma da gente com o quite do olhar, se sorriu, e mais falou: — “Eu sabia que você não gostava total da Manuela, meu Mocinho. Por mais que eu quisesse o casamento de vocês dois. Às vezes, eu acho que você gosta é mesmo daquela moça de Paracatú, a filha de um senhor Gabino… Só porque ela está tão fora de alcances, tão impossível, que você tem licença de pensar nela sem a necessidade de pensar logo também no que você é e não é, no que você queria ser… De tão distante e apartada, ela pode ser bem enxergada, no fim de um enorme limpo campo…” E dona Rosalina pôs a mão na testa de Lélio, num carinho, leve, leve; ele já estava quase adormecido.
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De manhã, Lélio não se importou de retrasar para o serviço. Precisava de ter uma conversa com Manuela, ao verde, aproveitar aquele bafo de coragem, um açoite de pegar o mundo e o concertar com suas mãos. Conversa curta — ele foi estouvado, quase rude, como perguntou: — “Você ainda gosta do Canuto? Responde o real…” Manuela não esperava por isso: não conseguiu muxoxo, nem dar risada, não conseguiu se zangar. — “Eu gosto de quem gosta de mim…” — ela disse, voz tremida. E já rompia em pranto, soluçava forte. Lélio nem se perturbou, era como se tivesse esperado aquilo. Esperou que ela esbarrasse de chorar. Mas a vista daquela moça tão sã, tão bonita, aquele corpo, aqueles seios, aqueles braços — e sofrendo em lágrimas, sem fingimento, sem resguardo de si — dava era vontade de ir logo buscar o Canuto, a poder de vara-de-ferrão, como um garrote baldoso, e obrigá-lo, mostrando-lhe a morte e a sorte, preciso fosse. Ele estava uma balança na fieira.

Os companheiros deviam de andar no Saco-Dôce, mas até à hora do almoço Lélio não os encontrara. Ou, talvez mesmo, sua ira fosse tanta, que ele preferia passar um tempo sozinho, procurava-os sem apreço de os encontrar. Desmontou, à beira de um pôço, comeu sua paçoca e seu pedaço de queijo. Quando tornou a montar, e rumou atalhando para o Cascavel, viu seo Senclér, que vinha em passo ligeiro, em seu cavalo bragadão. — “Está sozinho?” — ele perguntou. E disse, curto: — “Vem também. Um boi matou o pobre do Ustavo… O Marçal está dando aviso aos outros…” Lélio tirou o chapéu, fez o em-nome-do-padre. Seo Senclér olhava de frente para ele, e ele sentiu uma branda satisfação, por ver que seo Senclér estava verdadeiramente singular, pelo falecimento de um pobre vaqueiro. Fez menção de seguir atrás, mas seo Senclér mandou: — “Emparelha comigo…” Quis pensar um pensamento próprio, para o Ustavo, e se lembrava era da Adélia Baiana, do Mingôlo, do Marçal, de todos. Mas, aquilo, sim, era certo, o Ustavo merecia: que o Patrão também viesse, que ficasse triste. Quis dizer qualquer coisa, do Ustavo, achava que devia, por regra de pesar, por sincera estima. Só saiu: — “Amém…” Seo Senclér olhou-o, admirado. — “Você está rezando? Faz bem.” Iam. Desciam para atravessar a Vereda-Pequena, depois pegavam por outra chã de chapada. O céu estava limpo. Ganhavam o Alto do Quenta-Sol. — “O Ustavo era bem mais velho que a Adélia…” — seo Senclér disse. Seo Senclér gostava de conversar. — “Era um todo vaqueiro do Urucúia… Cumpridor de sua obrigação…” Ali no Alto do Quenta-Sol as seriemas e emas corriam, sem fazer barulho nenhum. Então Lélio contou também da doença do Pernambo. — “Coitado dele,” — seo Senclér falou. O Pernambo tinha matado um homem, na divisa goiana, fazia tempo. Matara em sua defesa, sem maldade nenhuma, mas mesmo assim vivia com remorso, parte da doença dele devia de vir dessa conta. — “Para salvar a vida de um vaqueiro meu, eu dava tudo o que tenho, sem precisar de pensar, e na mesma da hora!” — seo Senclér afirmou. E Lélio sumo se agradou, suspendendo o que o outro falara sincero. Agora apanhavam aquelas serras, vista bonita. — “Breve, breve, meu amigo, vocês vão ter outros patrões… A vida não perdôa descuido… E não há tristeza que me ajude…” Lélio não sabia dar nenhuma resposta. “Mas não adianta ele falar que dava tudo para salvar um de nós, porque esse caso assim nunca que acontece…” — ele pensava. E pensava que, um que sente tristeza, como pode ser patrão de outros? — “De todos, só o que me preocupa é o Tomé, ultimamente. Mocidade…” — dito de seo Senclér. Aquele homem era rico, até para montar em seu cavalo tinha um modo mais confortável, vestia bôas roupas, dava ordens; agora estava com aquela tristeza, feito um luxo. “Se eu tivesse uma mulher da beleza de dona Rute…” — a ideia veio. E, no giro do momento, Lélio principiou a ter pena e simpatia por seo Senclér. Mas o São-Bento estava acolá: a casa, na beira do córrego, e em volta os pastos de jaraguá, belos na força das águas, verde liso, verde forte, com muito gado deitado debaixo de árvores.
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O Ustavo entre as velas, coberto com um lençol tão bem lavado, tão branco, que dividia a gente de pensar no sangue que ele tinha perdido, chifrado no peito e no estômago. O Mingôlo chorava, como se estivesse sentindo por um parente. Lélio se debruçou, viu, tornou a descer o lençol sobre o rosto de cera do outro. E aí estremeceu um susto, alguém lhe segurara o braço. — “Lhe alarmo?” Era a Adélia Baiana.
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Ela se chegara de um modo tão macio, ninguém sabia caminhar macio feito aquela mulher. Devia de ter chorado muito, mas mesmo o inchado vermelho dos olhos não tirava dela aquele encanto esquisito, uma beleza diferente de todas. — “Mecê era amigo dele? Muito amigo dele? Gostava muito dele?”— perguntou, voz cantada mesmo baixinho. Chamava-o para um canto. E contou: ainda dois dias antes, o Ustavo tinha falado que “esse Lélio do Higino era moço escovado, o melhor de todos…” E que ia dar-lhe um aviso de cautela: com o Tomé. — “Por causa da Jiní, mecê sabe…” A Adélia choramingava sempre, mas esbarrava para olhar de um modo inesperado, quase como com interesse de namoro. — “Mas eu não tenho nada com a Jini, eu juro…” — Lélio disse forte, trastravando cara. De longe o Mingôlo espiava-os, meio ansiado, seo Senclér saíra pelo ar lá de fora. Mas a Adélia Baiana dizia o que queria: — “Oxente! Mas então mecê deve de levantar antes do sol, três dias de seguida, ir colher um raminho, sempre da mesma árvore, na beirada do córrego, e quando voltar jogar o raminho pra trás, sem espiar, e falar: Te esqueci em azul… Falar três vezes…” — “Feitiço?!” — Lélio perguntou. — “Oxente, pois só de viver no meio dos outros, a gente, cada um está fazendo feitiço, toda hora… Só que não sabe…” E ela se alegrou um ponto, no meio das lágrimas. Depois, perguntou se Lélio acreditava que defunto que fica com os olhos abertos é porque vai vir buscar outro, dentro de breve? O Ustavo morrera de olhos abertos. A Adélia queria conversar mais. — “Agora, eu estou por aqui, sem homem, sozinha. Que é que vai ser de mim?” — ainda disse, suspirando. Sorria sofismado, como se quisesse que a gente a abraçasse e lhe desse um beijo.

Mas chegavam os outros, todos, e era o movimento para o enterro. E foi então que Delmiro, vexado muito e falando de arranco, explicou a Lélio que ia se casar com a Chica, porque tinha pensado — casamento é destino — e tinha resolvido. Os projetos, aqueles, de largar o vaquejo e ir negociar por uma conta, tinha de deixar, para outro tempo; esta vida era o que Deus quisesse, consoante. E esperava a opinião de Lélio. — “Você quis, e fez bem.” — “Você acha? Mas acha?!” — “Acho.” “— Eu sabia que você ia achar. Mais eu quero você seja o padrinho. A gente é que nem compadres…” Dito, daí Delmiro se afastava, ia ficar perto de seo Senclér. E Lélio, mesmo naquele momento, estava pensando no esquipático de certos sentidos: por que era que, de verdade sendo amigo seu, Delmiro muitas vezes mostrava um duro desassossego, um difícil de parar em sua companhia?
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Mor que viu Canuto, por fim. Todas as voltas daquele dia não tinham refecido seu afinco de encontrá-lo. Ao um travacontas. Viu-o e caminhou para ele — foi no cinco-seis-sete: — “Escuta: você é homem?!” —; quase gritou. Ia levantar a mão, o resto podia ser sangue vertido. Mas o jeito do Canuto, arregalado e tristonho, o demorou. —“Homem eu acho que sou. Fala.” “— Então, vamos saber, então!” “— Amigo, eu não tenho me-do…” “— Eu sei.” “— É. Eu sei que você também não tem medo…” “— A babarára! Pois, então, vamos num canto do campestre, p’ra a gente se matar…” — Lélio declarou, com todos os dentes da frieza. Canuto fez uma surpresa maior: — “Malungo…” “— É peta! Você deixa de partes… Você resume… Você não me remexe…” “— Mas, me dá a razão. Eu sou afilhado de seu pai…” “— Minha raiva tem um pai só!” “— Ofendi você algum? Que ofendi, não sei, você explicando, você me desculpa…” Se em fato, ofensa não houvera. E Lélio se tolhia, tornado em si, um a-golpe de vergonha o avermelhou. Tardou um tento. Mas pensou em Manuela. — “Vem cá…” — chamando o Canuto para um mais afastado. — “Você ainda gosta de Manuela?” Um espaço de calma, depois do lance do começo, como que os aproximava, no cordial, abençoava o momento. — “Gostar, gosto. Para que negar?” — o Canuto respondeu, firme voz. Lélio limpou a garganta. — “Porque, se você não quiser casar com ela, definitivo, eu me caso!” — falou, a rijo conforme.

Muitas coisas ele estava esperando que o outro dissesse e respondesse; menos o verdadeiro que foi. O que então se passou: o Canuto chorava, queria abraçá-lo, queria contar trechos de sua vida. Dizia que nem sempre tinha bôa saúde dos nervos, que tinha medo de ficar doido. Não sabia se resolver. Um momento, ele esbarrou, olhou bem para Lélio, com aquele jeito de jiboia reconhecendo o caminho, e indagou: — “Mas você casava? Você casa? Mesmo com o que eu contei a você?…” À franca paciência, Lélio repetia a ele o que dona Rosalina tinha manifestado. Dizia e dizia. Rájado de um querer, que se acorçoava. Canuto baixava a cabeça, e concordava, com os preceitos, feito uma máquina vagarosa. E, quando Lélio se interrompia, ele tornava a olhar, olhar de cachorro, constante pedindo que ele falasse mais. Lélio compôs o baque do fim: — “Você, Canuto, corre e resolve! O que você me contou, é segredos de morte — assunto que a gente, nós dois, já esquecemos… Agora — até um de nós se casar com ela — eu tomei a Manuela na lei de ser a minha irmã. Você sabe…” “— Pois, você mesmo é que nem um meu irmão…” — o Canuto falou. E propôs que ia rezar uma novena, pedir conselho a Nossa Senhora. Ele era tão simples incerto, que por debaixo de seu desengonço de chorão devia de embrejar muita coragem; se não, um homem ali no sertão dos Gerais não podia ser assim, Lélio pensava. E também a segura dúvida deste pensamento: que, mais para diante, aquele Canuto nunca mais ia querer ser amigo seu.
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Mas a alegria que tirara de sua decisão era diferente, renovava-o — noite fria, longe o dia; desmanchara em frente de si um monte de coisas confusas; poder perfeito. Tão de bom, de azo e estado, às vezes, à noite, queria a Jiní. Não podia. A lembrança do sofrimento do Tomé se estava. Assim não pensasse. E na Manuela, mais, podia livre pensar: o breve, o leve, lão, da amizade; só somente. Mas não a tornara a ver. Manuela nem estava vindo visitar dona Rosalina. A tanto, dona Rosalina não reformava o assunto. Dona Rosalina declarava estórias que eram tão verdadeiras que fugiam do retrato do viver comum: mas as criaturas todas deste mundo, com mais ou menos pressa, quisessem ou não quisessem, estavam todas encaminhadas para alguma outra parte. A vivo, ela só falava o que era preciso. Ou, então, o que era bonito e que para sempre valia, como o bom berro de um boi no sozinho do campo, ou o xilixe continuado do riacho na ponta branca das pedras.
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Março a meio, chegaram dois sujeitos no Pinhém, para fechar os pastos. Aristó tinha encomendado vinda daqueles dois, que eram afamados benzedores: o Manuel Saído, do Jequetibá, e seu ajudante Jó Cõtõte. Não se precisava mais de gastar madeira nem arame — eles, com simpatia, fechavam qualquer extenso. Era só rodearem completo o pasto, caminhando por sua beirada, devagarinho, com uma vara-de-ferrão na mão, todos calados; o Manuel Saído e o João Cõtõte, genro dele, rezavam baixo suas rezas. Quando se retornava ao ponto de começo, emendando o redondo, o Manuel Saído fincava a vara no chão, e o bom serviço estava pronto — o gado ali dentro se resignava. Aristó primeiro perguntou quem queria ir levar os homens; Lélio, que quis, disse; daí, o J’sé-Jórjo, também, pediu para vir junto. E o trabalho demorou dias, a pé, pasto por pasto, e era muito fatigoso, porque não se podia conversar no intermediado. J’sé-Jórjo espiava sempre para o chão, como se estivesse rastreando sem necessidade nenhuma; e nunca se arredava de perto de Lélio. Mas Lélio via e pensava muitas coisas. O que gostava era se dona Rosalina pudesse estar ali também: então ela percebia e entendia o acontecimento quieto de tudo, e depois olhava para ele — nem precisavam de conversar. Ela, que sabia ver outras coisas por mais que os buritis e os gaviões, e o caldo dos pastos, verdolengos, que eram o Pinhém.
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Mas sentia também que recebia o forte de uma ajuda — o encoberto de uma ajuda, que ele não podia saber de que qualidade — só de estar ali perto o J’sé-Jórjo, que era bronco e de espinhor, homem de maneiras grossas, simples seja desses fundões do Fetal e Riacho-Morto, depois-de-depois do Urucúia. Pelo calado em que tinham de estar, ele entendia aquilo, aquele apoio que o J’sé-Jórjo mesmo sem saber vinha a ele fornecendo, o J’sé-Jórjo que se chegava sempre, como com o farejo de um cão, que lhe tinha amizade, aos pés da gente. Só a tristeza de J’sé-Jórjo, só a tristeza de cada um, era o que separava. Se todos fossem ficando tristes, mais tristes, todos se acabavam em ruindade — Lélio tirava por tino. Alegria tinha de ser chamada à força. Era preciso chamar a alegria, como se chama a chuva, na desgraça de uma seca demorada. — “Eu tenho nôjo da ruindade…” — ele tinha falado com dona Rosalina, uma vez. — “Ruindade é pressa, meu Mocinho. Pressa de qualquer coisa…” — ela respondeu. E dona Rosalina podia ter sempre razão, mas ela não tinha visto esse Jó Cõtõte. Jó Cõtõte não parecia ter pressa nenhuma, o que ele podia ter era uma tristeza ruim, aquele sujeito baixote, escurosamente, agre com os olhos miúdos e o cabelo arrepiado. E esse Cõtõte não tinha gostado de Lélio, sem meio motivo nenhum, desde o primeiro momento. Não dizia nada, mas a gente distinguia aquele malquerer, no silêncio, como se fosse uma catinga ruim. O Cõtõte tossia raiva de Lélio, cuspia, respirava, bocejava essa, uma raiva que quase Lélio podia pegar e apalpar. O Manuel Saído perfazia seu serviço de comum, estava ali uma pessoa lavada e transvista, fora de tudo o que mais acontecia. Mas o Cõtõte fedia, de dentro. Medo dele, Lélio não tinha, nem sinal; mas dava gastura saber que não havia razão nenhuma para aquela raiva de inimizade. Aquele homem era uma doençazinha no meio do mundo. E teve uma hora, quando conversavam, acabado de fechar o pasto dos Olhos-d’Água, que o Cõtõte não aguentou mais, provocou discussão. Mas o J’sé-Jórjo avançou para perto, num gozo regozijo, tirou pra fora da bainha só um ceitil da faca, que mostrou ao homem: — “Eh, eh… Em que lugar do corpo é que esta lhe dói menos, meu senhor?…” — ele, a sério, perguntou. O Cõtõte, no inesperado, aproximou sua cara do chão, desconversou desculpa. Disse que era pai de quatro filhos pequenos. — “Sopa de osso! — o J’sé-Jórjo ainda disse, estrito. — …Eu queria matar não. Queria só castrar só, de um grão…” Agora, por uma causa: por que era que o J’sé-Jórjo criara por ele aquela amizade, e que o Cõtõte aquela malquerença? Soubesse. Aí, o J’sé-Jórjo também vivia, sem saber, caçando alguém para ter ódio. Mas, depois do que tinha procedido de fazer, Lélio estava pro-nto a brigar de final do lado dele, em qualquer ocasião que acasos. — “Se o mundo um dia se acabar, ainda fica tanta coisa por se fazer…” — Lélio se lembrava de Nhô Morgão. Quando voltaram em Casa, escutaram uma boa novidade: o Canuto e a Manuela já tinham ficado noivos com data. Por um tempo, para Lélio, o Pinhém entrava em sossego.
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Mas por pouco.
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Começou voz que o Tomé e a Jiní já estavam nas brigas perigosas. A que a qualquer hora se tinha medo de notícia definitiva dalguma doideira deles. “Se eles estivessem em mel em paz, eu não curtia remorso…” — Lélio pensou. E foi então que soube que estava sentindo remorso produzido. Era uma coisa muito singela. Um avesso da cabeça. Mas começou pensando aquilo primeiro pior foi uma tarde, quando estava no quarto-dos-arreios arranjando um látego, e, de repente, deu um grito: era o Lidebrando que vinha entrando, carregando um balde com os sedenhos lavados em sabão e água, por desensebar e quarar. Mas ele não sabia o que com aquele vulto tinha pensado, que tão grave se assustara. Ou sabia. Insensato, assanho que vira era sendo o Tomé entrando, em formato de pesadelo! Então, ele soube que tinha um susto guardado dentro de si. Beirava desbarrancados: que bastava a maldade de alguém ir denunciar ao Tomé certos assuntos, ou bastava a própria Jiní, por despique de briga, repuxo de raivas, se blasonar — e era o meu-deus que era, horrorosamente. E a pena mesma que sentia do Tomé, era esquerda e vergonhosa. Bem, por si se dizia, sem esforço: “Tenho pena dele, pronto!” Ou: “A Jiní não merece o Tomé, só está prejudicando a ele, até é bom que eles dois se separem…” Podia contar a si mesmo muitas dessas coisas, a raso de sua tranquilidade. Mas embebia aquele susto por dentro. Tinha um pau pôdre caído, nas nascentes, um cavalo morto dentro do pôço, podia a água fugir para o longe que quisesse — corre, corre, riachinho… Não adiantava. Queria caminhar para o Tomé, cumprir destino, dizer a ele uma palavra de amizade; e não conseguia.

— “Na hora que Deus começa, dois vaqueiros moravam, cada um com sua mulher e seus filhos, em sendas casinhas muito perto uma da outra, numa baixada, na fazenda do Acroá-Mirim — do Urucúia em reta — vizinhando por Goiás…” Era dona Rosalina quem contava. — “…O fazendeiro dali andava muito esmorecido, porque adoecera em medo de morrer, e começava arrependimento de maldade de injustiças que tinha feito, com diversas pessôas, principalmente com os dois vaqueiros, com um e com o outro. Vai, então, numa noite, ele doido-sonhou que aqueles dois vaqueiros tinham rodado em briga de morte, e um tinha pragavado feio o ferrão na barriga do outro, que mais que o outro ainda arranjou tempo também de encravar o ferrão de sua vara por debaixo do queixo do primeiro, e os dois estavam em sangues mortos, as duas mulheres chorando, e as crianças… O fazendeiro pulou se levantou, e a pé mesmo bateu para lá, correndo junto com a madrugada, somenho nas pressas, que ia — como lá o diz — com um calço de botina mas o outro de chinelo… E tinham medrado mesmo aquela briga, ou bem: o sonho era de verdade. À rixa principiada entre dois meninos, filhos de um e de outro, depois prosseguida pelas duas mulheres, por fim os pais homens. No exato em que o fazendeiro apareceu descendo a ladeira para a baixada, e divisou a briga, e gritou ordem de paz, os dois vaqueiros estavam quando que as feras, se investindo, cada um com sua vara na mão, os ferrões total destapados. Aí, eles se apartaram, a arqueio de autoridade, não houve mortes; com pouco até fizeram congraça no cordial. Apesar do que, nesse dia, assim em segredo, um perguntou ao outro o que tinha visto primeiro, quando seo Apaulino surgira aos gritos, na vertente. Cada um tinha avistado era sua figura de pessôa mesma, em cara e corpo, feito num espelho! Assim, pensavam que tinham visto o diabo, assim tinham pensado… Mas, uns três dias depois, o fazendeiro seo Apaulino caíu numa pirambeira, de alturas enormes, foi achado lá em baixo expirado — no cair tinha rebentado uma árvore seca, uma ponta de galho o espichara pelo mole da barriga, outro furara no sobqueixo, surto…” Dona Rosalina rematava as experiências, a glosa: — “Sempre há remorso na gente, enquanto um vive. O remorso não se sabe, é escondido. Tudo é remorso.” Mas arrependimento aguentado era coisa séria, e muito rara; tão difícil, que a gente sempre devia de ter inveja de um que se arrepende brabo, em cão e cunhão. — “Quando o calor do fôgo esquenta a chaleira, meu Mocinho, tudo vai virando bolha…” Lélio queria ir procurar o Tomé, e não podia. Deixava para depois.
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Mas tudo nesta vida ia indo e variava, de repente: eram as pessôas todas se desmisturando e misturando num balanço de vai-vem, no furta-passo de uma contradansas, vago a vago. Ou num desnorteio de gado. Delmiro agora dessoltava um travo de despeito — raivava manso por Lélio estar livre de sair negociando e ganhando o dinheiro, mesmo se casando com viúva rica, conforme quisesse. — “E eu fui que ensinei, não se esqueça…” — Delmiro dizia, danado em si por não poder ter tudo de uma vez. E o Canuto se escondia, evitava companhia, por certo se envergonhava, havia de gostar de ver Lélio indo para longe. Esses, meninos usos. E Lélio achava que seo Senclér, por sua tristeza no atual, perdera o direito de estar ali no Pinhém — tinha mesmo de ir-s’embora. Mesmo as cantigas do Pernambo quase perdiam o encanto, desde que ele sabia que o Pernambo era triste por dentro, aquela alegria era falsa, fugia da voz e dos versos. Só se o Pernambo gritasse, antes, para todos ouvirem: — “Matei! Matei um homem. Tenho uma doença me acabando… Mas eu quero minha alegria!…” Só então tudo clareava, a viola dele cantava a fabricação das verdades, a coragem do coração de todos. Mas, se fizesse, o mau remorso dos outros vinha contra ele, disso tinha medo, tinham.
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— “Vamos rir da gente mesmo, antes dos outros, meu Mocinho. Gemer, gemer, o bambual mesmo geme…” — espécie das palavras de dona Rosalina. — “E vou lá. Vou, agora. Vou visitar o Tomé…” — Lélio se disse, pensando alto o seu querer. Ia: ia porque tinha medo de ir, ia porque tinha sua culpa e não queria ir, ia porque gostava do Tomé! E ia. Se levantou. Era domingo.
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Mas, nesse momento, o Placidino chegando, se formava roda, todos falando e exclamando, o Aristó pedia calmança. — “Foi o Tomé que às matinas foi-s’embora, de mudado, de definitivo… Foi pra longe, fez viagem… Largou a Jiní…” — o Placidino relatava. Mas o Aristó sabia de tudo, o Tomé regulara com ele as providências, na véspera. — “P’ra onde foi?” — se sabia? A ser, tinha ido para o Urubuquaquá, no meio-do-meio dos Gerais, ao de buritamas a buritiquéras, muito longe dali, a maior fazenda-de-gado, a de um estúrdio fazendeiro conhecido por “Cara-de-Bronze”.
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— “Lélio: ele disse um abraço pra você…” — o Aristó falou — sisudo, sério, verdadeiro. Lélio levantou e abaixou a cabeça. Enguliu. Formou o sobrecenho, era capaz de agredir quem troçasse do Tomé ou viesse com meias-palavras. Daí, saíu. Ele estava pelejando por trás dos olhos — chorava contra suas lágrimas.
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Sobre seguida, veio que a Jiní mandou um recado: Lélio ir vê-la. Tinham passado três dias, e o tempo estava feio — no Saldãe trovejava, aqui corria uma chuva tardonha. Lélio em silêncio se ensinava o voto de seu proceder: nem desejo, nem desprezo. “A Jiní não tem culpa da vida…” — a si mesmo ele repetia. “Agora ela não é mais do Tomé…” Ela notou o sentimento no rosto dele, e traçou uns modos muito singelos, sensatos, que se estivesse de luto. Lélio sentou no banco. Por um tempo, estavam calados, parecia que tinham de se respirar de um grande cansaço. Lá fora chovendo, e a casinha cheia do Tomé, demais, em tanto que ele ia viajando os Gerais adiante, embora, sempre mais longe. A em que rancho, em que pouso, pudesse dormir, ele ia fazer noite?
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— “Ele não volta, nunca mais?” “— Volta não. Fosse, fosse, foi! Levou tudo que era dele.” “— E aquilo, ali?” — apontava o chapéu-de-couro, pendurado. — “Esse ele não gostava dele mais, não quis carregar…” — e a Jiní se levantou, para pegar o chapéu. — “Você quer ver se em você serve?” O que ele arrepiou, rugo, áspero até nos olhos; nisso ela pôs sentido. Deixou o chapéu onde é que estava, tornou a se sentar, humilde, quase não queria o ar. Se ela não tivesse falado aquilo, Lélio bem gostaria de levar o chapéu, como uma lembrança do Tomé. O que ele tinha vindo fazer ali — agora entendia claro — era visitar o Tomé, a visita que antes pensara poder. E a Jiní, diante dele, tão acomodada e quieta, semelhava mesmo sincera. Era a astúcia da beleza — a mulata cor de violeta, os seios não movidos, o abobável daqueles olhos verdes, as pernas que chamavam as mãos da gente. Ela se encolhia e não dizia nada; mas seguia Lélio com um olhar em olhar, como que pronta a acertar com o instante de dar o dar, a gente pensava numa desconhecença. Mas, mas para o fim, ela mesma achou que devia de falar, meneio sossegado e sem tom, avisou a novidade que Lélio não sabia: que o Mingôlo ia desmanchar o trato de casamento com a moça do Amparo, porque agora ia se casar com a Adélia Baiana… — “Ah, possível! E isso com certeza?” — perguntava Lélio, conturbado. Ao certo, sem escrúpulo! A mal a mal ela completava, em tanta doçura, que não igualava uma queixa: — “Eu, por mim, posso pensar em casamento com ninguém; quem é que eu sou…” Suspirado. — “…Mas eu também careço de viver… Careço de ter quem me proteja…” Avante figurava uma menina ameigada e triste, entregue a essas ruindades do mundo. Lélio devia de ter mudado o tombo de seus olhos, porque ela se animou e sorriu, alisava nos beiços a ponta da língua. — “Tenho mesmo de ir embora…” — ele se levantou. Ela se levantou também, em um grande movimento sem peso. Assim estava encostada nele. O rumor do ar em respirar, o cheiro, os óleos olhos. — “Não!” — ele roncou — “Não…” e recuou passo. Num relance de si, já sabia que ia ficar, que estava agarrando a mão dela. — “Porretada! O que acho que não é correto, o que, vai, estamos fazendo”, ele falando — e abraçou-a apertado, forte, tão forte que a sentia só como roupas; e aquela ânsia cortou-lhe o sopro. Ah! A casinha não tinha mais dono — ele agora não pagava coima.
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Segundo que se viam, os outros dias foram grandes. Só uma sombra dava, suas vezes, passava. Uma dúvida de si, o desgosto de uma coisa que mesmo dentro dele era para tanto o enganar; porque achava: tinha ido lá formando ideia que era por causa do Tomé, e no entanto já era, nos fundos, só por conta da Jiní? Então, era uma miséria. Porque ele se consentia? Ah, mas por isso não: quis voltar, voltou. Mesmo dona Rosalina, quando se falou do Mingôlo com a Adélia Baiana, tinha tido esta palavra: — “Meu Mocinho, tira-se leite é onde há pasto… A bôa sacola, aumenta a esmola…” Aprendera a adivinhar, a torna e vem, o que dona Rosalina pensava, e assumia para si aquela resposta. A Jiní era a beleza e a frenesia.

Aí mesmo por pressentir as artes de astúcia da vida, os altos e baixos, sua coragem esforçou. Se aquietava. Ou fosse — no atual, a toda hora, sobre o passado a gente tinha poder. À barba, podia notar, os outros o invejassem. Mas não diziam ponto. Só soante um verso do Pernambo: …A água do rio é outra, que passava e já passou… A vida da gente é a mesma: que doía e já voltou… —; formais de agouro? No Tomé, próprio, não se falava. Assunto que o Placidino apareceu com um outro chapéu-de-couro. — “Meu, ganhei…” — ele três vezes disse, apurando um encoberto de importância. Lélio não olhou. O Placidino era um simples rapaz; por sua inocência, ele, quando sendo, servia para trazer os segredos e recados. Onde, então, o Delmiro também falou, no relembrar o ausente: — “Será se ele passou por Barra-da-Vaca? Sei que, na Barra-da-Vaca, podia ter levado um bilhete, para o meu primo Astórgio…” — assim especulava, esfregando o fura-bolo no polegar: saudade de dinheiros não ganhos. Não tinha resposta. E estava-se no fim-das-águas, na zina da trabalheira. Aos gados e bois, teteté, se saia mexer pelos campos.
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Por mais, a Jiní não se entendia.
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A ver que ela nunca era feliz nem magoada, para diante não pensava nem se consumia com o já vivido. Ela queria. De hora a hora, o sobregosto, ela era para ele que nem uma herança mal aprovada, que se tem o avivo de despender de uma vez, até não poupar um tostão. A vontade seca, sede de esfaqueado, o agúo de se ter aquela mulher até ao fim, o mais, até aos motivos daqueles verdes olhos. Adiado figurando uma baixada avante, que o cavaleiro começa a atravessar, e o vargedo vira longe, no horizonte, aonde o cansaço dá mais pressa e só a pressa é que descansa. A Jiní escondia em seu corpo, a vão, o estranho de alguma coisa sida da gente, acabada de roubar nos instantes, o encarnável de uma coisa que nela mesma a gente era escravo de ir tornar a buscar. “Um dia, não tem mais Jiní…” — um precisava de se redizer, para sossego. E, quando saía de lá, Lélio se socorria do abarco de correr para a Lagôa de Cima, à casa, sentar-se no banquinho baixo, perto de dona Rosalina, escutar o que ela achasse de significar. Ela vinha de longes festas. Dali mesmo a gente parecia ter se apartado fazia muito, muito tempo. A ela um podia perguntar o que quisesse: a voz da Velhinha nunca se espantava. E respondia: — “Ara, fala, meu Mocinho. Mas fala sem punir. O que existe na gente, existe nos outros…” A vida andava.
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Assim veio. A volta de lua, uma noite, o J’sé-Jórjo deu em doido. De armas, ele acordou depois de um grito, espumou conversa baralhada, demora só dizia palavras muito perdidas. Deus recolhera o juizo dele, no meio do sono. Dava pena. Teimava de pisar com força nos seus pés dele mesmo, gritava sempre desigual na voz, a respeito do que não se podia saber; e queria matar, por toda a lei. Teve de ser amarrado com cabrestos. Quatro dias passou assim, e quatro noites, e Lélio não arredou da beira. J’sé-Jórjo não conhecia mais ninguém. Pedia água, boquejando, afrontado, mostrando a língua; mas logo que enchia a boca experimentava cuspir tudo na cara dos prestantes. Era só um querer, sem entendimento, furioso. Para se ter saudade, do J’sé-Jórjo verdadeiro, ido embora por dentro de seu semelhar. Mas podia ser que ainda voltasse, nem que fosse aos momentos. Isso Lélio esperava. Mas, mesmo que a vida do J’sé-Jórjo, de em antes, apagasse as formas, despodida em desgraça, uma coisa valia, e tinha sido certo: que ele fora amigo de Lélio; e ninguém esteja louco quando tem amor ou amizade por outra pessôa.
Todos vieram ver, até dona Rosalina. Mas, benzido e rezado, não havia remédio. E forçoso foi que o levassem, para cidade, para onde tinha cadeia e tinha doutor. Os que com ele foram: Lidebrando, o Pernambo, Placidino, Zé-Amarel e o Ilírio Carreiro. Lélio quis ir também, mas não conseguiu; iam os que para si mesmo careciam de consultar, por alguma doença. Maltreito ele também estava, mas de se achar pequeno e pior que os outros, de se fazer perguntas sem arcável resposta, de precisar de viver sobre seguro na transformação do mundo. Aí então, separando uma parte do cobre de seu amouxo, pediu ao Pernambo que comprasse e trouxesse uns argolões de enfeite para lindos braços, um vidro de cheiro, e um corte de vestido de soprilho.
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Mas, se por isso mesmo tinha passado aqueles dias sem ir ver a Jiní, dela o pior, que depois houve, não esperava, ah não podia presumir, e não merecia. Ou merecia, quem sabe. Toda surpresa não é pagamento pontual? Doeu, doía, isto sim. Tinha ido, chegou lá; agora não podia se recordar do que no caminho viera pensando. A porta estava fechada. Dando de leve, bateu. Ela não vinha abrir. Bateu forte. Voz não ouviu, nem suspeitou rumor. Mas, quando a Jiní apareceu, parava quase núa, e afogueada. Seus olhos escapavam da luz, não queria que ele acendesse o candeeiro, seus olhos fugindo, com as meninas agrandadas, maiores, no centro do verde. Só o abraçou. Sofria pressa de para ele passar o quente de seu corpo, a onda de estremecimentos de sua pele — de mulata cor de violeta. Se ria, sempre dizendo mais amor, até aos cotovelos o coração a espancava. Beijava-o, levava-o; e estava suja de outro homem… E estava!

Lélio recuou todo: se escureceu, de amolecer os dedos; largava-a. Puxou o revólver. Teve um nôjo, um oco na cabeça, e no corpo total um frio de perigo. Cansou de si. Outro homem!… Foi, foi, que ali não estava nenhum. Tinha fugido, de certo, de vez pronta. Mas que ela não dissesse o nome, não contasse quem fora, não falasse nada! — “Cã cachorra!” — foi o que ele pôde, sem corpo de voz, quase como debique. Ela apertou as mãos às fontes, como que não queria ouvir; mas não fechou os olhos, não chorava. Era preciso não olhar para aquele ente enxuto e ansiante, era preciso engulir em seco e para a língua não pedir água, para a beira da boca. Era preciso sair dali, de sem tempo. Dar as costas. Lá fora, luz de estrelas, era um alívio.
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Mas à vã já a Jiní vinha atrás, atirada, quase de corrida; jogara uma roupa qualquer mal por cima de si; esbarrou, em tonta; os olhos calcavam. — “Vem! Vem!” — tudo pedia, quase gritado. Se abraçou com as pernas dele. — “Vem… Você vem…” Levantou o rosto, os olhos primaram, e os dentes, ela se ria. Ria brava, com uma certeza, uma fé em que ele ia ficar; e mesmo ajoelhada, travada de retê-lo, ela se enroscava, coisa que coisa. Aos olhos, os olhos, que cravava mira, e à palpa, com o avento forte, de um bicho. Era preciso um enrijo de si, um alevanto, um se vencer, para não começar a achar que aquela mulher moça, como nua, a cintura adelga, que ela não passava de um animalzinho do campo, sem obrigação de dono, que um podia aceitar assim avulso, mal a vez — desmerecer de honra não havia. Suxa, sussurrava. Aí, arre, prostrada, de repente, variava, agarrou um punhado do chão, dando a ele: — “Péga terra, joga em mim!…” — foi o que ela disse. Então chorou choro; mais não podia.
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“Podia ser minha irmã…” — ele surge pensou, perturbado por um dó que tomava conta dele, de estado, tão por calor, tão brandamente, vontade de que ela não chorasse aquelas lágrimas, nem ninguém chorasse, ela chorasse mais nunca. — “Você nem tem culpa, minha filha…” — ele falou. Com palavras moderadas; queria passar por suas palavras aquela pena sentida, o compadecimento, entregar a ela uma amizade e uma ajuda. Falou, foi dizendo, começo de conselhos, como estava em seu alcance, coração o estropiava. Mas, à má, de golpe, ela pulou em pé, ringiu rilho e estendeu braço, não o deixou continuar: — “Cão! Corno!” — contra ele gritou; e era uma voz que se rasgava. Lélio defastou um passo, não entendia. E ela piorava, insultava, gastava seus sopros; mas caçava as bramas mais ferinas de ofensa, e arrancava-as sem pressa, como se fosse clamar ali a vida inteira. Assim sendo.
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Lélio respirou com ombros; veio vindo embora. Ainda ouvia tanta voz, podia ser a voz da mãe-da-pedra, que as outras pedras retiniam. E ele caminhou para a Lagôa de Cima, por que causa. Nome da noite, que da mente procurava negar aqueles remoinhamentos, que faziam imensidade. A hora era tarde, mas ele precisava de ver dona Rosalina. Teve de chamar, vezes, à porta; nunca fizera isso. Assueto, o cachorrinho Formôs, que pulou, afetuoso audaz, o rabo volúvel. Logo, mais lá, o papagaio Bom-Pensamento, que despertava, desdobrando a cabeça de sob as penas e asas de suas costas, e danado com tantas luzes: — “Rosalina! Olha o amor… Olha o amor… Rosalina!…” Mas a Velhinha tirava do fundo de seu sono um sorriso leal, e suas palavras respondiam antes de qualquer pergunta. Lélio, solto de pensar, outrossim semi-sorriu. E ela disse: — “Dia de maio e água fria…” Lélio tomou um ar e um tom, sérios, que depois de falar ele mesmo achou que demasiava. — “Donde venho, vim!…” — ele disse. Não havia mais Jiní, ela compreendia. Mas, mesmo por alto, ele tinha de contar o que se passara, o fim: aquela crúa raiva da Jiní, fora de qualquer pressentimento razoável. Pela primeira, ela o reprovou, mas com ainda maior doçura: — “Pois, meu Mocinho, você espalha pétala de flôr de cova, em cima de criatura viva?!” Lélio hesitou. Por palavra, vida salva: — por ter se lembrado disso, ele se tirara de pôr mãos para alguma loucura; mas, se nele mesmo o engano era corpo, e repente do corpo, que dirá da Jiní; quem culpa tinha? Estava certo? Estava errado? — “Esteja sempre certo, meu Mocinho. E ninguém não sabe: talvez o céu não cai é só mesmo por causa do voo dos urubús…”
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Foi um desespero não. Só maldormiu suas noites. Achável o acabado, a Jiní e ele desterrados um do outro, tempos de distância. Nem aguentava relembrar sabor — por crime da vergonha, porque reconhecia ter sido panças, amando e tendo em falso. Armava a esquecer, por entre margens, varando a surdo as horas de descaramento ou desânimo, tais ou quais teve. A esmo de um prazer, quando revocava essa Jiní, mulher bela. Apre, resistia, freio nos beiços. Então, ele requeria os costumes do existir miúdo, junto muito com os outros, sem inteiro, sem espaço. A tudo no comum trivial, de mistura. Tanto trabalhava. Os campos eram grandes. À tarde, as águas — ver o buriti, palma por palma. Adforma que se vivia.

Sobre aí, tornaram os levadores do doente, de alegria das cidades. Lélio revia. — “Ah, e o J’sé-Jórjo?” — pela pergunta. — “Pois, ficou lá…” — Lidebrando respondia, descambando um gesto. Assim esse gesto sem rumo nenhum, ao acaso atôa, não caçando de apontar para a banda certa de lá ondonde ele ficara — ao que queria dizer que o J’sé-Jórjo desenganava de recursos de cura e esperança, perdido por sempre, nos guardados de Deus, só a só. Mas, o mais, o Pernambo trouxera a encomenda dos presentes, conforme aqueles embrulhos, tão bem acondicionados. Lélio se sombreou, e os afastou com a mão, coagido de não ver. — “Sendo de mim, a sorte destes morreu… Sem repaga, agora dou tudo para você mesmo. Pernambo, pedindo que não enjeite…” — ele disse. À primeira, o Pernambo se formalizou, desmontado, pelos desusos. Daí, alisava com amigas mãos aquelas coisas — a gente via que ele gostasse: poder dar à Conceição e à Tomázia. Mas por fim sacudiu a cabeça: — “Não. Se sua bôa licença me declare, Companheiro, eu daqui vou e entrego à dona Rosalina, com pedido — que reserve… Um dia, isto ainda pode ser para as mãos de uma prendada moça sua noiva, de todo bom proceder…” E Lélio consentiu. Quanto mais que fingia semblante alegre; os outros o viam alegre; e de repente ele estava tornado em si, no em mesmo.
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Ao que, vai dia, pediu uma cantiga ao Pernambo. Andando cantado: …Lá em cima daquela serra, um coqueiro eu vou plantar; você desplanta o coqueiro, a serra tá no lugar… Até os cavalos escutassem. A outra copla: …Jacaré subiu a serra, quer sobrado pra morar; descambou pela vertente, a serra tá no lugar… E outra inteirou, sextando: …Este meu cavalo branco sobe serra pra pastar; este meu cavalo preto, pasta em qualquer lugar; lá em cima daquela serra tem coqueiro de palmar… O Pernambo asmava. Estavam levando duzentas novilhas cobertas, para ao pé do Saldanh’, às mangas de criação. As cigarras friçoavam, vesprando seca. O que redoía era o gosto de beleza da Jiní, pimpã, ela rodava; e o morno moço do corpo: duras carnes que em tudo se encostavam. E porque ela era sempre de repente. Agora ficava um vazio, agora. — “Como é o Urubuquaquá, hem, Pernambo?” “— A lá é sertão muito bruto, em excelentes terras.” Dado bom em passo, aquele gado balançava igual, sabedor do caminho seu. — Ha-êaê-heeê-ahá… êh… meu boi… vacas… Na seguinte légua, era sobre-tarde, com muita quietação. — “Beber é convinhável, para se esquecer alguma pena que sobra, hem Pernambo?” “— Ah, qual. Alegria se guarda, tristeza não se guarda. Meante mesmo, melhor, é se gastar em pé. Sebos…” Debaixo dos olhos da gente, o Pernambo se envelhecia. — “…Vaqueirada boa, é?” “— Aondonde?” “— No Urubuquaquá!” “— Nos usos. Cavaleirama…” Olhos verdes cor de calango. O chapéu, não fosse dado ao Placidino, teria ficado, pendurado no portal. E agora ele padecia pena herdada. O Pernambo diminuiu, e disse: — “Posso cantar mais não, agrava minha doença…” Estava sofrendo sofrimento que era de outro?
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Maio, junho, vieram ao Pinhém os credores de seo Senclér. Seo Amafra, seo Sixto Correia, e outro. Três grandes boiadas se tiraram, entregues em parte de paga, levadas por vaqueiros deles. O frio entrou cedo. O Marçal caíu com o cavalo, numa corra de gado, veio doente do São-Bento. Dona Rosalina foi passar uma semana na Pedra Rendada, em casa de seu filho Alípio; um camarada, idoso, de lá a veio buscar, mas Lélio também a acompanhou, durante quarto-de-légua. Ela ia no seu cavalo de silhão, o Mariposo, capaz de todos os passos, e estava com um vestido verde-escuro, chapéu do mesmo pano veludo, com uma grande pena de pássaro presa na fivela; empunhava um chicotinho de tala, de cabo gentil, e montava com segurança, muito animosa. Adeparte, uma hora, ela não ouvisse, aquele camarada falou: — “A caso, que lá dizem — senhora que, de moça, foi uma alazã de bonita… A que reinou nas belezas!” Sempre vistosa, somente se via, acavalgando adiante.
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Os campos se queimavam de sol. Lélio ia visitar o Marçal, que mesmo doente na cama sabia a todos dizer uma boa palavra engraçada. Biluca estava sempre lá, às vezes Mariinha também. Roda de vozes, quando as moças solteiras não estavam perto, falavam da Jiní. Dos escândalos. Porque a casinha onde a Jiní morava era da Fazenda, e seo Senclér podia mandar que ela fosse embora, a qualquer hora. Devia de mandar — as mulheres diziam. Porque a Jiní agora estava recebendo homens, geral, e estava desencaminhando os casados. Aí Lélio ouvia, e não produzia.
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A dó e asco. Tinha culpa? Lá não iria, de modo nenhum. Às horas, se perturbava. Gostaria de poder pensar: “ah, bom foi, agora com o resto não somo…” Quem ia lá? Soussouza, de certo, o Ilírio Carreiro; o Canuto, quem sabe. Porque Placidino e o Pernambo não se encorajavam de ir, esses dois tinham de honrar o exato pontual, com as Tias. — “E lá o sal se paga… — a Conceição disse. — A Mulatinha exige dinheiro valedío. Mas mesmo assim os homens estão lá, como periquitos na paineira!” Então, ela e a Tomázia, caprichavam em aumentar carinhos. Lélio aceitava o regalo; agora também ele ia muito mais às Tias.
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E uma vez procurou a Caruncha, que morava quase dentro do mato, e não falava, nem por sinais, muda de nascença; mas que descarecia de falar. Ela olhava-o muito, com um prazido sincero no olhar, e punha o filho para ficar acomodado quieto dentro de casa; aí vinha para um claro entre as árvores, ajuntava capim em guisa de travesseiro, ia tirando a roupa, com muito cuidado, se deitava, humilde como a madeira de uma mesa; tinha um corpo formoso. O filho da Caruncha se chamava Serafim, e nunca tinha podido escutar voz da mãe o chamando por seu nome. Como havia de ser o nome verdadeiro, da Caruncha? Quando um passarinho cantava, ela deitada no chão já estava olhando para ele, pousadinho em um galho, os olhos dela realumiavam. O menino brincava de empilhar pedrinhas. Alguma pessôa tinha ensinado a ele rezar jaculatória e fazer o pelo-sinal. Ele gostou de Lélio, abraçou-o. — “Você sabe contar história? Sabe a do Homem Encantado?” — ele perguntou, a voz clara, aquilo tudo novíssimo. Lélio nunca mais ia voltar ali.

Abre que, por esse tempo, na dura da seca, os vaqueiros procuravam empurrar o gado para o fundo dos pastos, e limpavam os bebedouros. Aos casais, também vinham voavam os quem-quéns, mudando de morada e baixada, sempre para catar no esterco do vacúm, nos malhadores. A tanta lida, tudo, cada um a seus intentos. O Marçal já estava quase bom; quando podia, Lélio ia visitá-lo. Casamentos, dele com Biluca, de Delmiro com a Chica, de Canuto e Manuela, e do Mingôlo com a Adélia Baiana, estavam marcados para o começo do setembro, vinha o padre. Menos faltavam quase dois meses. E aconteceu que, em casa de Aristó, Mariinha conversou com Lélio, muito tempo. — “Azoado, que acho que vamos ter mais um par…” — que o Marçal brincou. Ao que Mariinha e Lélio riram, não se importaram. Assim ela era — durinha e de rosto firme, quase sempre séria; pisava com força e punha chispa no olhar, se zangava mordendo com os certos dentes os lábios; por isso mesmo, quando sorria, sorria mais que as outras, bonitinhamente. E tinha um rosazim nas faces, de flôr de abril em beira de chapada, e estava gabando Lélio, por moço distinto e aposto, com o que veio que ele sorrateiramente muito se alegrou. Olhava Mariinha, e tinha mente de que se recordava; de quem? de que? Mas era uma menina, parecia, e o olhar de Lélio ficava sem continuação.
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Um dia, foi, disseram: — “Sabe que a Jiní vai s’embora? Vai para se casar…” E ia. José Bento Ramos Juca, fazendeiro no Estrezado, homem de posses, se apaixonara. — “Só se casar, assente, se quiser, em escrivão e igreja…” — ela tinha respondido. Ái-me, cangueiro, aí ele quis. Veio buscá-la, com os papéis de banho já correndo, veio com cavalo com a sela poltrona, com arreiame niquelado, com camaradas de escolta e mucama de pajear, e três burros cargueiros, para a tralha que a Jiní tivesse e levasse. — “O fumo bom, por si se vende!” — ela blasonou, conforme se ouviu. Diziam que ela estava impossível, só ares de rainha real, e cuspiu no rumo da Casa do Pinhém: — “Oxente, meu boi desgostou deste capim… Vão ver como eu hei de saber ser senhora-dona, mãe-de-família! Cambada de galos capões!…” Bem foi, foi-se. Ao ponto, estavam acabando de ferrar novilhos, Lélio ainda subiu na cerca do curral: de lá, de arribapoeira, se avistava a comitiva partir. Ele desimaginava. Suspirou, não sabia por quê; foi lavar as mãos no rego. A Jiní esvaziava muito os ares. — “Aquela vaquinha do peito perdido!” — xingou a Conceição, no dia de seguinte, que era de domingo. Mas dona Rosalina, sempre adiante, a melhor bem disse: — “Cada um que se vai, foge com um pouco da gente, meu Mocinho. Tudo é para depois… A vida tem de ser mesmo variável…” Sobrava, no tempo do tempo, o que se fazer — tanto boi se transpastava.
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Não é que, nessas duas ou três tardes, Lélio tornou a conversar com Mariinha. — “Você não gosta de ninguém? Tem o coração forro?” — uma hora ela perguntou. E nem deixou que ele respondesse, foi dizendo: — “…Deve de ser bom a gente não gostar, ser dono de si… Pior de tudo é amor sem esperança…” Visto que estava com uma flor de cravo na mão, de repente deu a ele: — “Te dou, por querer. Você é meu amigo…” Ela Mariinha, seria uma moça esquisita, parecia ter vontade de revelar alguma coisa, a isso tirava. — “Careço de ter um amigo, homem. Em você eu acho rumo de confiança…” Lélio guardou a flôr, não queria que alguém visse. Sobrepensou: podia ser que Mariinha estivesse gostando dele mesmo, ao enfim; tomara fosse. Dali saíra feliz, um tanto vago. Ao depois, ia ter um outro dia forte em serviço. Dormiu com a flôr do lado do rosto, aspirável. Acordou, se revestiu, e tocou com os demais, para a tratação das vacas com crias, no fim do pasto dos Olhos-d’Água, nos refrigérios. Ia no cavalo Ziguezague, castanho amarelo arteiro. Sorria para tudo. E, quando voltaram a Casa, correu foi ver dona Rosalina. — “Eu gosto de Mariinha… — falou. — …Ela amanheceu em mim…”

Disse, redisse, nem esperou como dona Rosalina responder. O amor era isso — lãodalalão — um sino e seu badaladal. Ele estava maior que todos. O dia fugia claro, a tarde passava; por pois, apressava ir ver Mariinha, antes que outra noite viesse, as noites maltratavam. Nem quis café; e tudo foi um: pensou nela, até às mãos, e tirou avante. Chegou, falou e regalopou, sem deixar a poeira pousar. — “Te amo por querer!…” — foi o que ele disse, sem tanto nem tento; precisava de ser assim. — “Mas, Lélio, você…” — ela contestando; sua surpresa cresceu diante dele.
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A de daí, o começar de um tempo de padecer. Ao simples logo soube: ela não gostava dele, de modo nenhum, aquilo não podia. — “Bem que eu sinto, mesmo e muito, Lélio. Você desentendeu o de mim…” Tinha querido dele a amizade. Raios que por que, então, e que modas, essas? Para isso viera, ao terreiro dele de amor, conversando, sorrindo, dando aquela flor avisada?! Sofreava era a fúria, os ócios ódios. Oé, o ódio de não poder regrar aquele coração, a cabecinha alta, ela tão fina, tão menina, e sabendo tanto o que queria e o que não queria — talvez mesmo nem soubesse. Tolo, teve o momento em que Lélio quis sentir pena de si mesmo. Maior a raiva, dela mais gostava. Chegou a pensar em ir à Conceição, contar o crido, e pedir que ela procurasse aquela mulher de Ribeirão abaixo, incumbir amavios e artes, para poder. Iria. Mas dona Rosalina vagarosamente vigiava-o, feito quem espera uma doença declinar; e governava mais que ele. — “Aos nuncas… — ela disse ao seu Mocinho. — Uma coisa é buriti, e outra é buritirana…” Olhava-o, meios olhos, paz e paz. Vai, dia, ela chamou a Mariinha, para que aqueles dois se sozinhos falassem, de entre o havido, por que coisa. Lélio, por mal que não quisesse, tremia de embevez — todo mudo amor e suspirâncias. E ela estava emagrecida pálida, vincada. Dele supria dó? Mas disse, declarou as todas palavras, para eles se cortarem de uma vez: — “Lélio, você não me deu tempo, eu não expliquei: eu gosto de outro… Não pergunte. Mas eu gosto, eu amo. Acho que vou em sorte a pior, por esse amor…” Olhou direito. Mariinha tinha mais sangue do que carne. Até o pezinho dela devia de ser quente de fôgo, nas mãos da gente. Aí se despediu, caminhou sem olhar nem uma ocasião para trás. Lélio não livrava a ideia. Ficou estacado. — “É do seo Senclér que ela gosta, meu Mocinho. Você não adivinhou?” — dona Rosalina disse, ao depois. E era possível?! — “Mas ela desguardou o juízo, essa menina?” “— Juízo e amor, juntos, não é coisa demais, meu Mocinho?” — Aquilo — o estarrecente! — “Bem viu, quem sabe? Você mesmo não entende que — amar por amar — talvez seja melhor amar mais alto?” Apalermado que estava Lélio, e tonto, feito raposa, quando para ela se põe melancia com cachaça. “Será praga da Jiní?” — simples pensou, com um bom vexame de não falar naquilo. Tudo que não se enxergava bem. Leis-do-mundo era o desencontro! Aquela Mariinha tinha a competência de se ser numa desordem dessas?! Amar — pronunciado tanto — parecia coisa muito diversa de gostar: parecia um terrível… Sarnas! Seja, esse seo Senclér não estava para uma punição pronta, de emenda, não merecia um homem armado diante dele? — “O seo Senclér nem sabe… Seo Senclér nem sabe que ela gosta dele…” — dona Rosalina mais disse. Sarnas! Mas, então, pois… Mas, então! — não era melhor, não havia um jeito, um possível, de se desmanchar o atual, e recomeçar, de outro princípio, a história das pessôas?!
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Aos dias, adiante, aos poucos, Lélio se desatava. Saber que a Mariinha gostava de outro, era saber que ele Lélio andara em si errado, naquilo, contra o destino, e pela raiz tudo se desfazia. Ao menos, tudo se afastava, para vagas enormes distâncias, pois que um amor tem muitos modos de parecer que morreu.
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Assim, um acontecer, ele estacionava no São-Bento, como por ali passou um homem, um tocador, que do Paracatú viajava, se chamava o João Cujo. Por um acaso ele conhecesse a Sinhá-Linda? Lélio perguntou. O tocador respondeu: que presumia; achava mesmo que ela tinha morrido, fazia pouco; era uma mocinha estranhosa — diziam que antes ela tinha estado melhorada de louca, não se sabia. Podia ser que o João Chopém, o arrieiro, ou algum outro dos tropeiros, soubessem informar exato a respeito dela; esses paravam a légua-e-meia dali, o Cujo devia de ir se ajuntar com eles no arrancho, onde iam fazer noite, rumo da Serra do Saldãe. — “Vou!” — Lélio disse. Testou um recado para o Aristó, e foi com o João Cujo.

Ao que o João Chopém sabia assaz: — “Não. Morreu não. Esteve doida não. Mas foi-se embora…” A família toda, e o senhor Gabino, tinham ido s’embora, de mudados, ela também — para onde se ignorava. — “Ah, ela é uma ovelhinha de linda moça, isto sem dúvidas…” — falava João Chopém, que então a conhecia certo, então era ela mesma! Aí Lélio se acalmava, se desconhecia. Assim no flagrante mesmo do instante, ele não conseguia sobrepensar — faltava o esterco do real: ah, ele, com a Sinhá-Linda, possuía muito poucas marcas. Mas, depois, mais tarde, as verdades vinham retornar, o dele, somente soante.
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Naquele momento, por precisão, começava qualquer amizade. João Chopém era de cabelos erguidos, as gelhas e as rugas na testa, uns bons olhos alertas, e não cria em nenhuma ilusão. Tomaram um gole de restilo, e juntos fumaram, meio calados, espiando para a Serra, para seus primeiros degraus, recobertos de mato. Aquele lugar do pouso se chamava o Abatirá, noutros tempos os bugres de trunfa alta ali tinham uma grande choça, a casa para guardar seus negócios, as coisas de arte-feitiçaria. Os tropeiros já iam se deitando por dormir, em cima de couros de boi, perto das filas de cangalhas e bagagens atravessadas, dentro do rancho. Sentindo o cheiro dos animais que pastavam peados acolá, uns muitos morcegos saíam em seu voo esquisito no ar azul. Lá, quando comitiva se arranchava, os morcegos se alegravam demais. Na outra manhã, João Chopém devia de seguir, ao tilintar da madrinha, por entre o passo da tropa, destapando a barra do Urucúia, a banda de lá, até a Bahia, essas terras. A gente via — ele, vos entendendo, capaz de bondade; ele era uma pessôa. Arcava o abarco. Ah, mas já estava incapaz de dar conselhos, de tanto que aprendera a vida.
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A após, vindo para ver dona Rosalina, Lélio novava em si, ganhava de seu coração. Pegava nada em suas mãos, mãos desesperadas. Mas o que assumia, toda-a-vida e de-repentemente, varava vau no desespero e ia se enxugar numa enorme serenidade. Tudo era ao contrário: agora, sim, sentia a Sinhá-Linda mais sua. Se ela se fora, por aí, por essas lonjuras do mundo, então estava tão perto dele, de um modo que não doía. Agora, que a perdera ganha. Agora, que não sabia nada. Se abraçou com dona Rosalina, e reschorou; talvez fosse de alegria. — “É nada?” — perguntou. — “É tudo…” — ela respondeu. A conforme foi dizendo: — “Você viu, meu Mocinho, da Mariinha você não gostava. Só que você achou nela alguma coisa que relembrava a Menina de Paracatú… O amor tentêia de vereda em vereda, de serra em serra… Sabe que: o amor, mesmo, é a espécie rara de se achar…”

E o caso foi que, enquanto ele com dona Rosalina estavam conversando, que chegou o filho dela, o Alípio, de má cara. Às ásperas que chegou, de sobrecenho e sem palavras, queria mesmo desfeitear. Nem o saudou, nem o olhou, foi impondo que queria tratar com a mãe. Lélio quis sair, para ir embora, mas dona Rosalina o impediu, com um gesto. Ela chamou o filho para dentro, para a sala-de-jantar. — “…Axe! A entre os cornos do bode!…” — Lélio o ouviu, que praguejava. Mas dona Rosalina o repreendia, ele rompeu e se foi tinindo seu peso, praças de ira, barbaz. Um se afligia, repentino, com o grave e não entendível dessas coisas.
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— “Ele está jeriza…” — dona Rosalina disse, depois. Onde o Alípio queria, exigia que ela cortasse aquela amizade fora de normas, que o Lélio não viesse vir mais em casa dela. A bufos, mandava aquilo! — “Mas você vem, meu Mocinho. Não vamos somar com o que ele acha de imperiar… Ele, no que é, é regrista. E é um que só sabe de sua mesma pessôa…” Lélio não engarupava medo. Aquele homem ringia e ameaçava, daqui veio a enviar recado; para ele o mundo não era de todos.
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Andando os dias, entanto, tomou-o a vontade de ir embora do Pinhém.
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Precisava de outra parte. — “De estada e morada, não adianta mudar…” — o Nhô Morgão dizia. — “Os palmos onde cabe a sombra da gente, a gente para todo lugar leva consigo…” E, escaramuçado, não ia; se não, tinha de carregar tal vergonha, por sempre. — “Ora veja que eu fosse rica…” — falava dona Rosalina. Alguma coisa ela devia de estar pensando. Aí, a bôa lembrança de Sinhá-Linda pertencia a ele, a todo momento, livre de todo ascoroso, tão linda e não era malaventurada, ela estava em toda a parte. Agosto caminhava. Ainda estavam queimando os pastos, a fumaça no todo céu, e subindo e descendo serra a marola de labaredas; o gado emagrecendo de andar. A mesma coisa que engenhar tristezas. Às vezes ele gostaria de ter alguma certa notícia do Tomé, que se fora como quem abre uma porta e se some no adro da noite. Da Jiní sim, se ouvia: que agora era dona e mandona, no Estrezado, para favor dela tudo se completava. E, Mariinha, tão ao lado, ali, era como se de brinquedo tivesse morrido.
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Seo Senclér ia-se embora, agora estava até o dia marcado. Foi depois dos casamentos. Seo Dobrandino já tinha vindo, com mais dois vaqueiros de sua fiança, ele ia ser o administrador de seo Amafra. E a festa dos casamentos correu como todas as festas — tudo parecia uma grande despedida. Por fim, em três dias, o pessoal se reuniu, todo o mundo, para dar adeus a seo Senclér e dona Rute, no terreiro, de manhã. E seo Senclér e dona Rute estavam até alegres — iam morar na cidade, e cuidar de outros bons negócios, com a ajuda dos parentes, foi o que se disse.
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Todos estavam ali, em frente da Casa, homens e mulheres. Dona Rute mesma foi dando a mão, a um por um, e seo Senclér abraçava seus vaqueiros. Mas, então, a Mariinha quis ficar entre os derradeiros; e, na hora em que seo Senclér cumprimentou, ela gemeu, levantada sobre todas suas forças, aquele exclamar: — “Me leva! Me leva junto!…” Afe, que rompeu num pranto. Mas não abaixava a cabeça, ficava ali, inteirinha, enclavinhados os dedos, os outros nem queriam olhar para ela, fazia mal-estar. Seo Senclér mesmo se atrapalhou, logo foi adiante, não sabendo como responder àquilo. E dona Rute fez que não ouviu, somente descia mais um pouco os cantos de sua bonita boca, os lábios finos. Nem Lorindão e Dorica conseguiam arredar a filha dali, o embaraço que eles padeciam dava pena. Mas, de se ver um amor corajoso assim, e ouvindo os soluços bravos de Mariinha, depois o estado de silêncio, a gente até enxergava o seo Senclér de repente mais forte e mais alto, claro com uma espécie de singeleza, enquanto ele montava em seu cavalo e batia mão se despedindo, para principiar a viagem, a par com dona Rute, que era toda a alvura e formosura.
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Então, depois que se sumiram, os outros puderam levar Mariinha. Agora, todos sabiam confortável daquilo, e falavam, mas falavam com o tom de respeito, com que se fala de alguém que morreu ou adormeceu de louco. Aquela não temera a fraga das pirambeiras, nem os pastos e frias águas da mata-virgem. E Lélio, primeiro que qualquer outro, admirava que ela fosse capaz de ser assim, queria mesmo que Mariinha fosse assim, assim continuasse. Agora, em calado, ele podia dar a amizade que ela havia pedido.
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Então ele ia; ia. Tinha vivido, extrato, no Pinhém — demais, em tempo tão curto. Ali não cabia. Aquele lugar o repartia em muitos, parava como uma encruzilhada. Ia. Então, por que ainda não tinha ido? Certo, teria de sentir falta das pessôas, de dona Rosalina, dos companheiros — do Placidino, em silêncios, de cócoras; de um verso triste virado alegre na viola do Pernambo — das Tias, da Caruncha puxando pela mão o Menino, saídos de verdes matos. Mesmo do Fradim, que sempre apressado, e que, contrário de tudo de se imaginar, fora o único a tomar fúria própria, por causa das ameaças do Alípio: que aquilo não se merecia, era um desaforo, e que ele Fradim estava ali, pronto, em qualquer momento, para punir por ele Lélio, e ajudar no enfrentar os acostados do sujeito. O Fradim ficava sendo amigo. A vida, a vontade da vida, era coisa que não se entendia. A mesma coisa que se querer entender a Toloba — quando ela passava, com ramos de árvores, feito procissão sozinha, e todos gritavam — ela boba e soberba. Seguia o seguinte uma asa de trova do Pernambo, que dando assim:
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Quero poeira do Curvelo
com lama de Pirapora…
Aqui é que mais não fico,
amanhã eu vou m’embora!
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— “Vai, meu Mocinho. Chegou o de ir. Não por fuga, nem por canseira daqui, nem por medo. Mas, o que eu sei, e seu coração sabe, é que a razão da vida é grande demais, e algum outro lugar deve de estar esperando por você…” E dona Rosalina, que nunca mudava, tinha como que naqueles olhos, diversos de todos, um exato de coisas que ele precisaria de um existir sem fim para aprender, mas que cabiam também no momento de um só olhar de bem-querer.

Outubro acabava. Já chovera, pouco. Uma saudade recomeçada esbravejava bela nos berros dos bois, lembrados de seus sertões. Anoitecera — por cima de um duro dia de trabalho, campeando, recampeando. Noite, o azulável, na parte serena do céu. Mas, enorme longe, o carvão preto, no canto da Serra do Rojo. Aonde chove raio, não descansa, o vermelho e amarelo, espirrados, ao que pula cada lagarta, sem som os coriscos corriam — ligeiro mais que a ilhapa de laço partido em arranco de um touro desgarrado, quando larga e chicoteia, fuzilaz, se sacudindo no ar.

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Ver o fim da noite, volta das quatro — com as três estrelas maiores e mais brilhantes quase rumo a rumo na cumeeira do céu, e o Cruzeiro pendente na beira do sul, subindo uma braça, enquanto o sete-estrelo e as três-marias já desciam muito, descambando para o poente e pelo norte — e se madrugava, na Lagôa-de-Cima.
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— “Tudo aprontei, Meu-Mocinho, de meus arrumes…” Dona Rosalina estava com o vestido verde-escuro, chapéu da mesma cor, com a grande pluma de pássaro; e o chicotinho de tala, de cabo de prata. Lélio com sua roupinha bem tratada; só o chapéu-de-couro baixava muito, maior que a cabeça do dono. Os animais esperavam arreados: o Maripôso, o Agrado, e dois burros cargueiros. Crispininha e a Goga enxugavam lágrimas, e sorriam, quando Dona Rosalina mandava meiga que não deviam de consentir tristeza. E ela mesma prometia: — “Depois eu mando buscar vocês…” Prendiam num engradadozinho de madeira o Bom-Pensamento, que se danava, xingava de amor. O Formôs também ia vir junto. — “Talvez chôva?” Ventava um tanto. Suspendia o cheiro constante dos Gerais, brando travante. O orvalho era escasso nas folhagens. Dona Rosalina e Lélio já tinham comido o quebra-tôrto, de café com farinha. Aí era a hora de saírem, de fugida, dizendo adeus ao Pinhém, sem dizer adeus a ninguém. Iam para o Peixe-Manso, um lugar forte, longe rota, muito além da Serra do Rojo, dias e dias.
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O que era, o que vinha a ser essa decisão, assim achada, entre eles dois, o que tudo tinham conversado, nas vésperas:
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— “…Se não fosse por ter de deixar a senhora, eu ia…” — o que Lélio falara.
— Mas eu também sinto, Meu-Mocinho… Pudesse eu ir junto… Para o Peixe-Manso, conheço o dono de lá, homem bom…
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— E se a senhora vier?! Só que a viagem é dura, é ruim…
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— Por isso, nem. Mas, Meu-Mocinho, uma velha não se carrega. Estou em fecho de meus dias… Que é que você vai fazer com uma velhinha às costas?
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— Mãe, vamos juntos. Se não, eu sei, eu tenho a sorte tristonha.
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— Mas, você não se arrepende, não, Meu-Mocinho? Por se dar o caso de você querer casar com uma moça que não goste de mim…
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— Mãe, vamos.
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— “Pois vamos, Meu-Mocinho!” — ela disse, por fim, com seus olhos com a felicidade. — “Deixa dizerem. Ai, rir… Vão falar que você roubou uma Velhinha velha!…”
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Agora, partiam.
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Abraçavam Crispininha e a Goga. Dona Rosalina montou, firme no silhão, prendeu o chicotinho debaixo de um braço, acertou o chapéu mais uma vez.

— “Até lá, até lá, minhas filhas!” — disse, com sua bela voz. No escuro, alegres, entravam em estrada. — “Parece até que ainda estou fugindo com namorado, Meu-Mocinho… A perseguir, pelo furto da moça, puxe-te o danado doido tropel de cascos — lá evém o pai com os jagunços do pai…” — assim ela gracejava. Olharam para trás: a estrela-d’alva saíu do chão e brilhou, enorme. Olharam para trás: um começo de claridade ameaçava, no nascente; beira da lagôa, faltava nada para as saracuras cantarem. Olharam para trás: o sol surgia. Com pouco, atravessavam o pasto da Cascavel. Os passarinhos refinavam. Com esses mil gritos, as maitacas, as araras, os papagaios se cruzavam. Zulzul, o céu vivia, azo que pulsava. E, indo, pois, para a Vereda, lá estava o pau-d’arco crescido, varudo, entre o capim-bezerro e môitas de varvasco, com seu pique — e Lélio tinha pena de deixá-lo assim. — “Deixa. Todos respeitam, e a árvore cresce, marcada a sinal, é a sua árvore, que ficou, Meu-Mocinho…” A Vereda-Azul, a buritiquéra, enxameava de pássaros. Altos, altos, gaviões. O gado comia com orvalho.
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— “Buriti e boi! Isto sempre vamos ter, no caminho, e lá, no Peixe-Manso, Meu-Mocinho…” Aumentava a manhã, e eles apressavam os animais. Ele a ela: — “É nada?” E ela a ele: — “É tudo. E vamos por aí, com chuva e sol, Meu-Mocinho, como se deve…” O Formôs corria adiante, latindo sua alegria. — “…Chapada e chapada, depois você ganha o chapadão, e vê largo…” Lélio governava os horizontes. — “…Mãe Lina…” “— Lina?!” — ela respondeu, toda ela sorria. Iam os Gerais — os campos altos. E se olharam, era como se estivessem se abraçando.
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– João Guimarães Rosa, no livro “No Urubuquaquá, no Pinhém” (Corpo de Baile). 9ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011.

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