‘Eu fiquei gravemente doente. Ao contrário do que muitos fantasiam, não tirei de letra.’ – Márcia cabrita

A atriz Márcia Cabrita, que morreu em 10.11.2017, foi diagnosticada com um câncer no ovário em 2010. Desde então ela vinha lutando contra a doença e, em 30 de janeiro de 2011, escreveu um artigo com o título “Viva o luto”, originalmente publicado na revista O Globo.

Leia este emocionante depoimento sincero, real, duro e doloroso sobre a batalha travada pela vida dela, que também é uma realidade de milhares de crianças, mulheres e homens com câncer: 

“Eu fiquei gravemente doente. Ao contrário do que muitos fantasiam, não tirei de letra. Não sei o porquê, mas existe uma ideia estapafúrdia de que quem está com câncer tem que, pelo menos, parecer herói. Nãnãninã não! Quem recebe uma notícia dessas não consegue ter pensamentos belos. Bem… eu não conseguia. A cobrança de positividade acabou se tornando um problema. Olhava-me no espelho branca, magrela e de cabelos curtinhos (antes de caírem) e achava que estava pronta para fazer figuração em “A lista de Schindler”. Achava que não tinha chance de sobreviver à cirurgia, só pessoas que não tinham maus pensamentos sobreviviam. Muitas vezes deixei de comprar coisas para mim porque tinha que deixar tudo para minha filha. Bem, se na minha cabeça era esse o pensamento que reinava… Sem chance.

O mundo moderno é incrível. Tudo é maravilhoso, não existe sofrimento! As separações são sempre amigáveis e sem lágrimas, as mães não têm mais o direito de embarangar e ficar em casa lambendo a cria. Um mês depois estão lindas, magras, com barriga sarada! Os atores não ficam desempregados, estão sempre felizes com um convite que ainda não pode ser revelado! Quimioterapia é moleza! Vem cá, só eu que não moro na Disney?

Hoje percebo que precisei viver esse luto. Ele passou. Apesar do medo, fui confiante para o hospital. Mas outras angústias vieram. Sofri pelo que é “o de menos”, chorei pelos cabelos, pelas sobrancelhas, pelos cílios e pelo… resto que vocês sabem. Chorei pelas dores, enjoos, injeções e tudo mais. Eu me dei esse direito. Eu me dei o direito de ser humana. A Mulher Maravilha mora na televisão, eu moro na Gávea mesmo. A Mulher Maravilha dá aquele giro e sai linda e poderosa correndo para salvar pessoas. Se eu fizesse a mesma coisa, cairia estabacada com a careca no chão. Então meu giro foi bem devagarzinho, segurando na mão de minha mãe, de minha irmã e de meus queridos amigos e familiares. Girei amparada por Dr. Eduardo Bandeira, por Virginia Portas, Dr. Celso Portela e todos os enfermeiros e profissionais de saúde que foram maravilhosos comigo. Girei rindo e chorando com centenas de comentários no meu blog, em que virei praticamente uma conselheira oncológica. Girei brincando com minha filha, que fez questão de ir à escola de lenço na cabeça “igual à mamãe, porque é muito legal”. Girei para salvar a mim mesma.

Sinceramente, não acredito em uma seleção divina. Muitas pessoas bacanas e crianças morrem, e isso não é nem um pouquinho justo. Acho um saco quando dizem “fulano perdeu a batalha contra o câncer”, “fulana tem tanta vontade e alegria de viver que foi salva” ou “o amor por meus filhos me salvou”. Me parece tremendamente injusto.

Quer dizer que quem morre não amava a vida? O amor pelos filhos não era grande o suficiente? A fé foi pouca? Pensamento bem cruel, não é? E é uma coisa bem esquisita, isso só acontece com o câncer, a única doença tão estigmatizada. Ninguém diz que alguém perdeu a batalha para o enfarte, nem que amava tanto a vida que ficou bom da tuberculose.

Re-mis-são. Estou em remissão. Quem não apresenta mais sinais da doença não pode sair gritando que está curada, então saio correndo e gritando que estou em remissão!!! Eba! Remissão é muito bom!!

Vi uma foto minha na internet com meus companheiros de “Subversões”, Aloísio e Salem, em que estou com um largo sorriso. Eu estava verdadeiramente feliz. Sem a pílula da felicidade, sem fingir meus sentimentos, sem bancar a maravilhosa. Era eu simplesmente feliz.

E agora, chega desse assunto! Eu sou atriz e tô mais preocupada com um convite que não pode ser revelado!”

– Márcia Cabrita (atriz)*

Fonte: Publicado em O Globo, 10.11,2017. 

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Leo Russo lança ‘Isabella’, parceria com Moacyr Luz

O single “Isabella”, canção de Leo Russo e Moacyr Luz chegou nas plataformas digitais. A…

2 dias ago

Espetáculo ‘Eu conto essa história’ tem apresentação gratuita no Salão Assyrio, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

O espetáculo “Eu conto essa história" apresenta três narrativas de famílias que cruzaram continentes e oceanos em…

2 dias ago

Espetáculo ‘Quando o Discurso Autoriza a Barbárie’ estreia na Casa de Teatro Mariajosé de Carvalho

A Companhia de Teatro Heliópolis apresenta o espetáculo Quando o Discurso Autoriza a Barbárie na Casa de Teatro Mariajosé de…

3 dias ago

Espetáculo ‘Verme’, estreia curta temporada no Teatro Paulo Eiró

A Cia. Los Puercos inicia temporada do espetáculo Verme, no Teatro Paulo Eiró, localizado na Zona Sul de…

3 dias ago

Comedia musical ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ tem apresentações em seis teatros municipais de São Paulo

Memórias Póstumas de Brás Cubas, dirigido e adaptado por Regina Galdino, faz apresentações gratuitas em…

3 dias ago

Espetáculo-brinquedo ‘Kuenda Kalunga, Kuenda Njila – É Possível Gargalhar Depois da Travessia?’ estreia em novembro

Em novembro, a N’Kinpa – Núcleo de Culturas Negras e Periféricas estreia Kuenda Kalunga, Kuenda…

3 dias ago