E que se ponha a roupa do vento
O jogo é inventar a goleira
mais do que a bola.
Garagens são traves,
lápides são traves,
cercas são traves,
chinelos são traves.
O que pode ser levado
com uma mão,
adivinhado pelas pernas.
Postes de luz são traves,
placas são traves,
lixeiras são traves,
bancos são traves.
Marcar o chão numa linha imaginária,
daqui pra ali é o campo.
E o mundo não existe mais
fora do giz branco.
Um quarto está pronto a céu aberto.
Um quintal no meio da casa.
Uma rua cortando a praça.
Corra no jardim sonâmbulo,
pise a grama com raiva, raízes
são cadarços amarrados
nos tornozelos das árvores.
Há coices, quedas, uivos:
nada termina a vida,
essa explosão suspirada.
É um transe, a trave;
trânsito parado, feriado.
O defensor descansa
na tranca dos joelhos.
O pássaro voa de cabeça a cabeça,
descasca a chuva, espalha os cabelos.
A trave é montinho, formigueiro,
capuz de ciscos, ninhos.
Formigas transportam alimento
por dentro dos seus riscos.
Que seja capacete de moto,
um tijolo, um toco,
qualquer troco de mato e entulho.
Dez passos ao lado e uma altura infinita,
fazer endereço para receber cartas,
desenhar gol de letra.
Trave é o quadro-negro dos pés.
Caroço de brilho, queimadura de cometa.
Na praia, no calçadão, no descampado.
Tudo o que foi costurado pelo invisível
entre o corpo e uma porta.
Pedras são traves,
bambus são traves,
frutas são traves.
Até crianças são traves
para o adulto passar
de volta à infância.
– Fabrício Carpinejar, poema publicado na “Revista Serafina”, na “Folha de São Paulo”, em 6.2010.
§
As horas são amargas,
derradeiras,
os anjos perderam
a escala dos teus ouvidos,
O destino nos assemelha
mais que o nascimento.
Tuas passadas são curtas,
o perfil, enviesado.
Há uma parelha sendo
levada nas costas.
Fermentas o funcho,
o fungo e o estrume.
– Fabrício Carpinejar, no livro “Um terno de pássaros ao sul”. 2000.
§
Ocultemos-nos um pouco. Que separes lembranças
a confiar aos outros. Que reserves aos amigos
noites de bar. Que não me aborreças
com pormenores de relações passadas.
Que eu não mexa em tua correspondência.
não reviste na tua bolsa.
Que seja homem de uma única mulher,
como uma banda de um único sucesso.
como um poeta de uma único livro.
Que não me digam: a poesia é hereditária.
Os filhos não merecem nossa culpa.
Que segredo não seja amaldiçoado em degredo.
Que a confissão não apague a avidez dos pecados.
Que a reconciliação faça desabar crenças.
Que envelope do sereno feche nossa rua.
Que eu entenda ainda que tarde, agora sem ti.
Deus improvisa.
– Fabrício Carpinejar, no livro “Terceira sede”. 2001.
§
A chuva é a única chama
que caminha contra o vento.
Refaço seu lastro
com a insônia dos sapatos.
Enlouqueço de ternura,
indeciso entre o furor e o fulgor.
Desperto amarrado em alguma estrela,
servindo de referência
para o alinhamento das esferas.
– Fabrício Carpinejar, no livro “Biografia de uma árvore”. 2002.
§
O riacho é um cavalo líquido,
a pedra é um cavalo preso.
As borboletas são flores com abelhas dentro.
Liberdade é apenas mudar a forma,
o que não diminui a solidão
do nascimento.
– Fabrício Carpinejar, no livro “Como no céu/Livro de visitas”. 2005.
***
BREVE BIOGRAFIA DE FABRÍCIO CARPINEJAR
Fabrício Carpinejar*, filho dos poetas gaúchos Maria Carpi e Carlos Nejar, é jornalista e escritor, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS. Nasceu em Caxias do Sul, em 1972.:: Fabrício Carpinejar (blog do autor)
* Outros textos do autor, acesse: Aqui!
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