LITERATURA

Fatalidade – João Guimarães Rosa

Foi o caso que um homenzinho, recém-aparecido na cidade, veio à casa do meu amigo, por questão de vida e morte, pedir providências. Meu amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia. Por tudo, talvez, costumava afirmar: — “A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio”. Meu amigo sendo fatalista.

Na data e hora, estava-se em seu fundo de quintal, exercitando ao alvo, com carabinas e revólveres, revezadamente. Meu amigo, a bom seguro que, no mundo, ninguém, jamais, atirou quanto ele tão bem — no agudo da pontaria e rapidez em sacar arma; gastava nisso, por dia, caixas de balas. Estava justamente especulando: — “Só quem entendia de tudo eram os gregos. A vida tem poucaspossibilidades”. Fatalista como uma louça, o meu amigo. Sucedeu nesse comenos que o vieram chamar, que o homenzinho o procurava.

O qual, vendo-se que caipira, ar e traje. Dava-se de entre vinte-e-muitos e trinta anos; devia de ter bem menos, portanto. Miúdo, moido. Mas concreto como uma anta, e carregado o rosto, gravado, tão sumetido, o coitado; as mãos calosas, de enxadachim.

Meu amigo, mandando-lhe sentar e esperar, continuou, baixo, a conversa; fio que, apenas, para poder melhor observar o outro, vez a vez, com o rabo-do-olho, aprontando-lhe a avaliação. Do que disse: — “Se o destino são componentes consecutivas — além das circunstâncias gerais de pessoa, tempo e lugar.., e o karma…” Ponto é que o meu amigo existia, muito; não se fornecia somente figura fabulável, entenda-se.

O homenzinho se sentara na ponta da cadeira, os pés e joelhos juntos, segurando com as duas mãos o chapéu; tudo limpinho pobre.

Convidado a dizer-se, declinou que de nome José de Tal, mas, com perdão, por apelido Zé Centeralfe. Sentia-se que ele era um sujeito já arrumado em si; nem estava muito nervoso. Embrulhava-se a falar, por gravidade: — “Sou homem de muita lei… Tenho um primo oficial-de-justiça… Mas não me abrange socorro… Sou muito amante da ordem…” Meu amigo murmurou mais ou menos: — “Não estamos debaixo da lei, mas da graça…” — cuido que citasse epístola de São Paulo; e receei que ele não simpatizasse com Zé Centeralfe.

Mas, o homenzinho, posto em cruz comprida, e porque se achasse rebaixado, quase desonrado — e ameaçado — viera dar parte. Apanhou o chapéu, que caíra ao chão, com a mão o espanava. Representou: que era casado, em face do civil e da Igreja, sem filhos, morador no arraial do Pai-do-Padre. Vivia tão bem, com a mulher, que tirava divertimento do comum e no trabalho não compunha desgosto. Mas, de mandado do mal, se deu que foi infernar lá um desordeiro, víndiço, se engraçou desbrioso com a mulher, olhou para ela com olho quente… —

“Qual é o nome?” — Meu amigo o interrompeu; ele seguia biograficamente os valentôes do Sul do Estado. — “É um Herculinão, cujo sobrenome Socó…” — explicou o homenzinho.

Meu amigo voltou-se, rosnou: — “Horripilante badameco…” Por certo esse Herculinão Socó desmerecesse a mínima simpatia humana, ao contrário, por exemplo, do jovem Joãozinho do Cabo-Verde, que se famigerara das duas bandas da divisa, mas, ao conhecer pessoalmente meu amigo — “… um homem de lealdade tão ilustre…” — resolveu passar-se definitivo para o lado paulista, a fim de com ele jamais ter de ver-se em confusão. Sem saber o que, o homenzinho Zé Centeralfe aprovava com a cabeça. Relatava.

Só para atalhar discórdias, prudenciara; sempre seria melhor levar à paciência. E se humilhara, a menos não poder. Mas, o outro, rufião biltre, não tinha emende, se desbragava, não cedia desse atrevimento. — “Ele não tem estatutos. Quem vai arrazoar com homen de má cabeça? Para isso não tenho cara…” Só se para o vir-às-mãos, para alguma injusta desgraça. Nem podia dar querela: a marca de autoridade, no Pai-do-Padre, se estava em falta. A mulher não tinha mais como botar os pés fora da porta, que o homem surgia para desusar os alhos nela, para a desaforar, com essas propostas. “Somente a situação empiorava, por culpa de hirsúcia daquele homem alheio…”

Curvara-se, sempre de meia-esguelha, a ponto que parecia cair da cadeira. Meu amigo animou-o: — “Quanta crista!” — e aí ele depositou no colo o chapéu, e direito se sentou.

Sucedendo-se os sustos e vexames, não acharam outro meio. Ele e a mulher decidiram se mudar.”Sendo para a pobreza da gente um cortado e penoso.

Afora as saudades de se sair do Pai-do-Padre; a gente era de muitA estimação lá.” Mas, para considerar Deus, e não traspassar a lei, o jeito era. “Larguei para o arraial. do Amparo.” Arranjaram no Amparo uma casinha, uma roça, uma horta.Mas, o homem,.. o nominoso, não tardou em aparecer, sempre no malfazer, naquela sécia. Se arranchou. Sua embirração transtazia um danado de poder, todos dele tomavam medo. E foi a custo ainda maior, e quase à escondida, que José Centeralfe e a esposa conseguiram fugir de lá também, tendo pesar.

Por conta daquele. — “Cuja alma!” — proferiu meu amigo, meticuloso indo ajeitar uma carabina, que se exibia, oblíqua, na parede. Pois a sala — de tão repleta de rifles, pistolas, espingardas —semelhava o que nunca se vê. — “Esta leva longe…” — disse, e riu, um tanto malignamente. Tornou a sentar-se, porém, sorrindo agradado para o José Centeralfe.

Mas mais o homenzinho se ensombrara. Fosse chorar?

Falou: — “Viajamos para cá, e ele, nos rastros, lastimando a gente. É peta. Não me perdeu de vistas. Adonde vou, o homem me atravessa… Tenho de tomar sentido, para não entestar com ele”.

Durou numa pausa. Daí, pela primeira vez, alçou a voz: — “Terá o jus disso, o que passa das marcas? É réu? É para se citar? É um homem de trapaças, eu sei. Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei…” — Tanto dito, calou-se, em silêncio médio; pedia, com olhos de cachorro.

Meu amigo fez uma coisa. Virou, por metade, o rosto, para encarar aquela carabina. Sério,carregando o minuto. Só. Sem voz. Mais nela afirmando a vista, enquanto umas quantas vezes rabeava com os olhos, na direção do homenzinho; em ato, chamando-o a que também a olhasse, como que a o puxar à lição. Mas o outro ainda não entendia que ele acenasse em alguma coisa. Sem tanto, que deu: — “E eu o que faço?” — na direta perguntação.

Surdeava o meu amigo, pato-mudo. Soprou nos dedos. Sempre em fito, na arma, na parede, e remirando o outro — ao tempo que — tanto quanto tanto. De feito. O homenzinho se arregalou — de desperto. Desde que desde, ele entendesse, a ver o que para valer: a chave do jogo. Entendeu.

Disse: — “Ah…” E se riu às razões e consequências. Donde bem, se levantou; podia portar por fé. Sem mais perplexidades, se ia.

Agradecia, reespiritado, com sua força de seu santo. Ia a sair. Meu amigo só ainda perguntou: —”Quer café.., ou uma cachacinha?” E o outro, de sisório: — “Seja, que aceito… depois”. Outras palavras não trocaram. Meu amigo apertou-lhe a mão. Sim, se foi, o José Centeralfe. Meu amigo, valedor, causavelmente, de vá-à-garra o deixava? Coitou: — “Coronha ou cano…” O homenzinho, tão perecível, um fagamicho, o mofino — era para esforço titênico? Meu amigo sendo o nome do caos.

Porém, revistando sua arma, se o tambor se achava cheio. Disse: — “Sigamos o nosso carecido Aquiles…” Pois se pois. Seguimo-lo. Ele ia, e muito. Tinha-se de dobrar o passo.

E — de repente e súbito — precipitou-se a ocasião: lá vinha, fatalmente, o outro, o Herculinão, descompassante. Meu amigo soprou um semiespirro, canino, conforme seu vezo e uso, em essas, em cheirando a pólvoras. E… foi fogo, com rapidez angélica, e o falecido Herculinão, trapuz, já arriado lá; já com algo entre os próprios e infra-humanos olhos, lá nele — tapando o olho-da-rua.

Não há como o curso de uma bala; e — corno és bela e fugaz, vida!
Três, porém, haviam tirado arma, e dois tiros tinham-se ouvido? Só o Herculinão não teve tempo.Com outra bala, no coração. Homem lento.
O Centeralfe se explicou: — “Este iscariotes…”

Meu amigo, não. Disse um “Oh” polissilábico, sem despesas de emoção. Disse: — “Tudo não é escrito e previsto? Hoje, o deste homem. Os gregos…”, disse. — “Mas… a necessidade tem mãos de bronze…”. Disse: — “Resistência à prisão, constatada…”

Dissera um não, metafisicado. Sem repiques nem rebates, providenciava a remoção do Herculinão, com presteza, para sua competente cova.

E convidava-nos a almoçar, ao Zé Centeralfe, principalmente.

Meditava, o meu amigo. Disse: — “Esta nossa terra é inabitada. Prova-se, isto…” — pontuante.

– João Guimarães Rosa, no livro “Primeiras estórias”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

***

EDITORAS

Saiba mais sobre Guimarães Rosa:

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

O terror – uma crônica breve de Clarice Lispector

E havia luz demais para seus olhos. De repente um repuxão; ajeitavam-no, mas ele não…

3 dias ago

Memórias, um conto de Luis Fernando Verissimo

Estavam na casa de campo, ele e a mulher. Iam todos os fins de semana.…

3 dias ago

‘Não há sombra no espelho’ – um conto de Mario Benedetti

Não é a primeira vez que escrevo meu nome, Renato Valenzuela, e o vejo como…

3 dias ago

Negro Leo une desejo e tradição popular em novo álbum ‘Rela’

Um dos mais inventivos e prolíficos artistas de sua geração, cantor e compositor maranhense Negro…

3 dias ago

Guiga de Ogum lança álbum ‘Mundo Melhor’

Aos 82 anos, Guiga de Ogum, um dos grandes nomes do samba e da música…

3 dias ago

Espetáculo ‘A Farsa do Panelada’ encerra a temporada teatral no Teatro a Céu Aberto do Saquassu

“A Farsa do Panelada” com a missão de fazer o público rir através do texto…

3 dias ago