COLUNISTAS

A filosofia trágica de Westworld – Clarice Lippmann

“Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?”
— Friedrich Nietzsche, no livro “Assim falou Zaratustra”, p. 13

Não é de hoje que a cultura pop se encontra permeada de seriados populares por suas tramas criativas, personagens carismáticos e roteiros bem estruturados.

Dentro deste rol, Westworld se consagra como um seriado bem recebido pela crítica e público, cuja linha narrativa gira em torno de um parque temático que oferece aos seus visitantes uma inusitada experiência de um ambiente western. Saloons, fazendas, campos, pradarias e cidades empoeiradas dão o tom a fantasia de faroeste que convida hóspedes humanos a interagirem com anfitriões robôs. Estes últimos, incríveis reproduções mecânicas de seres humanos, mais próximas dos próprios hóspedes do que eles poderiam imaginar.

No parque de Westworld, nada é proibido, tudo é permitido, mas apenas aos visitantes. Toda e qualquer pulsão humana, aceitável ou não perante a sociedade de fora, está liberada. No local impera uma ausência de ordem vigente, na qual a discricionariedade de vontade dos humanos que ali passeiam rege os acontecimentos. E se isso incluir sadismos diversos — estupro, assassinato, tortura — são apenas parte do pacote pelo qual os visitantes pagaram muito dinheiro.

Todos os dias, fora do horário de funcionamento do parque, os robôs têm suas memórias apagadas de qualquer acontecimento traumático, e são obrigados a repetir o mesmo ciclo narrativo que foram codificados para seguir. Alguns deles, contudo, passam a demonstrar uma série de defeitos técnicos, dentre eles, o descobrimento de que são meras marionetes nas mãos de seus controladores, sejam eles hóspedes ou os próprios administradores do parque.

Este breve resumo dá a entender que uma mera trama da máquina x homem seria o cerne do roteiro, o ultrapassar dos limites éticos no que se refere ao progresso científico e a megalomania e narcisismo humano. Apenas mais um clichê revisitado como tantos outros. Correto? Errado.

O que sustenta e diferencia Westworld como uma série inovadora e cativante passa longe de critérios superficiais. Em cada um de seus dez capítulos é visível uma destacada inspiração: a filosofia trágica de Friedrich Nietzsche.

Nietzsche pode ser um filósofo considerado controverso por não ter uma linha linear de interpretação de suas obras. Em alguns momentos, nega conceitos que defendia anteriormente, em outros, volta atrás, mas o que continua presente desde O nascimento da tragédia até suas publicações póstumas como Ecce Homo é a marca do olhar trágico perante a vida e a condição humana. Estes, inclusive, são detalhes que se assemelham a estrutura narrativa de Westworld, uma série que mistura distintas linhas temporais e pontos de vista.

A forma com que Westworld decide explorar a rivalidade homem x robô é seu diferencial criativo: os robôs são também humanos, demasiado humanos.

Dotados de emoções, racionalidade, memória, improvisação, auto-interesse e um maior ou menor grau de consciência, a complexa mente dos robôs quase não difere da humana. É o que lhes permite, além das falhas de seus controladores, driblar sua própria programação.

Esta jornada pela própria autonomia, pelo autoconhecimento, também na perspectiva de Nietzsche — a possibilidade de vir a ser autodeterminante — é representada, de outro modo, em parte nessa formação tardia da autoconsciência. Vir a conhecer sua condição limitada, e não sabe-la inicialmente, é parte do que os liberta.

Durante estes percalços, uma personagem em especial, Dolores, a primeira robô criada para o parque, parece representar todo o ciclo de superação humana defendido por Nietzsche. Ela sofre inúmeras violências, e ainda assim decide pela continuidade da vida, sem negar o passado, como na seguinte fala:

Algumas pessoas preferem ver a feiura desse mundo. A desordem. Eu prefiro ver a beleza.

Já Nietzsche, em A gaia ciência, aforismo 276, apresenta sua própria perspectiva de afirmação da vida:

Eu quero aprender cada vez mais a considerar a necessidade das coisas como o belo em si — assim, eu serei um daqueles que tornam as coisas belas, amor fati: que seja este de agora em diante o meu amor! Eu não vou fazer guerra contra o feio, eu não o acusarei mais, eu não acusarei nem mesmo os acusadores. Suspender o olhar, que esta seja minha única forma de negar. Eu não quero, a partir desse momento, ser outra coisa senão pura afirmação.

Em um diálogo socrático com um de seus controladores, a personagem é capaz de chegar por si só a conclusão de que tanto a expansão da sua memória e os sofrimentos pelos quais é obrigada a passar em sua existência cíclica têm valor e não devem ser apagados. Este é um dos grandes marcos Nietzscheanos de Westworld: o princípio da busca pelo amor fati em contraposição ao eterno retorno.

Dolores percebe, durante a conversa, que viveu uma narrativa de sofrimento. Sua única chance de lidar com isso de maneira branda seria se apagasse de si o que vivenciou, ou seja, se decidisse eliminar parte do que foi. Decide por afirmar sua vida e não negá-la:

A dor, a sua perda… é tudo o que tenho deles. Você acha que a dor vai fazer você menor por dentro, como se seu coração fosse entrar em colapso sobre si mesmo, mas isso não acontece. Eu sinto espaços abrindo dentro de mim como um edifício com salas que eu nunca explorei.

Nietzsche em Ecce Homo, Por que eu sou tão inteligente, p. 67-68, desenvolve seu guia para o que há de mais elevado no ser humano:

Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer ter nada de diferente, nem para frente, nem para trás, por toda a eternidade… Não apenas suportar aquilo que é necessário, muito menos dissimulá-lo — todo o idealismo é falsidade diante daquilo que é necessário —, mas sim amá-lo…

Conhecer a possibilidade do eterno retorno e não se apavorar perante a realidade de reviver incontáveis vezes a mesma existência, ao contrário, tornar-se grata por ter a possibilidade de existir, é o passo inicial para superar a fraqueza e a negação, defeitos da humanidade também presentes nos robôs.

Mas Dolores está além da negação e do medo. Enquadra-se nesta definição do filósofo, excerto de Ecce Homo, Por que sou tão sábio?:

Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos; ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece.

Dolores também não se esgota em sua posição submissa. Aceitar a possibilidade do eterno retorno não significa se conformar perante ideias (a organização social de Westworld) ou ídolos pré-estabelecidos (seus criadores). Tudo é transformação e metamorfose, então um suposto eu, mesmo que preso a uma codificação, a um ciclo narrativo, também está sujeito a transcendência. Ao acaso, simbolizados nos próprios erros de codificação que os robôs vão apresentando, mistura de enganos de seus controladores.

É essa, no fundo, a busca pelo centro do labirinto, outro ponto especial na trama da primeira temporada: uma representação metafórica, espécie de narrativa separada apenas para os robôs, destoante de tudo o que foi dedicado no parque para dar protagonismo aos humanos.

Isto lembra a contraposição de Nietzsche à afirmação do Oráculo de Delfos, “conhece-te a ti mesmo”, com o “torna-te o que tu és”. O que “se é” é compreendido como algo fora da identidade, da ilusão de um “eu interno”, que não existe fixo na fluidez da existência. O “eu” de hoje difere do de ontem, e a única certeza é a metamorfose.

Assim, superando o “conhece-te a ti mesmo”, o “se tornar o que se é” envolve conhecer as forças que constituem o humano — sua vontade de potência, de evolução, de conquista, sua ambição, em suma, suas pulsões — e assumi-las. O fim da jornada para o centro do labirinto não é o “eu”. Mas o “tornar-se” o eu. Não apenas transformação pela maleabilidade de seus supostos defeitos técnicos, mas também assumir ser capaz de criação. De escolher.

Até mesmo no que concerne a revolta dos robôs contra o domínio humano narcisista, há um viés filosófico Nietzscheano presente. Os humanoides que permitem o estopim da revolta são impulsionados pelo ressentimento. Não o ressentimento no sentido de mágoa estrita, puramente emocional, mas sim relacionado à teoria moral de Nietzsche, dividida entre a moral do escravo, dominado, submisso, e a moral do nobre, dominador, abusador. O ressentimento seria um tipo de emoção subversiva, na qual o dominado se ressente do poder do dominante, e visa adotar para si sua própria moral, em seu desejo de superá-lo: dando margem à sua vontade de potência.

Entrelaçada a esta interpretação da revolução dos robôs, o profeta Zaratustra, no livro que leva seu nome, prevê e ensina sobre a chegada do übermensch, o “super-homem” ou “além-homem”. O übermensch triunfaria sobre os falsos ideais e ídolos que impedem a grandeza humana e cerceiam sua possibilidade de evolução.

Em um dos grandes momentos da série, o “torna-se quem você é” é levado a literal citação, na qual um específico personagem supera o modelo humano fraco, submisso as antigas estruturas de poder e ideais da sociedade. Rebela-se contra os humanos e seus criadores, contra toda a codificação, ou seja, a estrutura social na qual foi criado e adestrado a seguir. Tudo isso, apenas depois de fazer uso do nível de consciência que adquiriu (conhecendo a si mesmo), e das pulsões que descobriu existirem dentro de si, nesse seu além-eu (tornando-se quem era). É, nessas estruturas, fomentado o levante dos robôs. “Mortos estão todos os deuses, agora queremos que o super-homem viva”.

Westworld é, em suma, uma série de alta densidade psicológica e filosófica, montada por um roteiro que desafia interpretações diretas, e induz o telespectador a reflexões em níveis mais profundos. Acompanhar a série de dez episódios de batalhas internas e externas dos robôs tão humanizados, ou vice-versa, é um convite para qualquer entusiasta da compreensão que apenas o mergulho no caos — ordem natural das coisas — pode trazer. A série é, certamente, uma estrela dançarina que merece ser apreciada em todo o seu brilho.

* Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e estudante entusiasta de Filosofia.

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