O pão
A superfície do pão é maravilhosa primeiro por causa desta impressão quase panorâmica que dá: como se tivesse ao dispor, sob a mão, os Alpes, o Taurus ou a Cordilheira dos Andes.
Assim pois uma massa amorfa enquanto arrota foi introduzida para nós no forno estelar, onde, endurecendo, se afeiçoou em vales, cumes, ondulações, ravinas… E todos esses planos desde então tão nitidamente articulados, essas lajes finas em que a luz aplicadamente deita os seus lumes, – sem um olhar sequer para a flacidez ignóbil subjacente.
Esse lasso e frio subsolo que se chama o miolo tem o seu tecido semelhante ao das esponjas: folhas ou flores são aí como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos ao mesmo tempo.
Logo que o pão endurece essas flores murcham murcham e contraem-se: destacam-se então umas das outras e a massa torna-se por isso friável.
Mas quebremo-la, calemo-nos: porque o pão deve ser a nossa boca menos objecto de respeito do que de refeição.
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Le pain
La surface du pain est merveilleuse d’abord à cause de cette impression quasi panoramique qu’elle donne : comme si l’on avait à disposition sous la main les Alpes, le Taurus ou la Cordillère des Andes.
Ainsi donc une masse amorphe en train d’éructer fut glissée pour nous dans le four stellaire, où durcissant elle s’est façonnée en vallées, crêtes, ondulations, crevasses… Et tous ces plans dès lors si nettement articulés, ces dalles minces où la lumière avec application couche ses feux, sans un regard pour la mollesse ignoble sous-jacente.
Ce lâche et froid sous-sol que l’on nomme la mie a son tissu pareil à celui des éponges : feuilles ou fleurs y sont comme des sœurs siamoises soudées par tous les coudes à la fois.
Lorsque le pain rassit ces fleurs fanent et se rétrécissent : elles se détachent alors les unes des autres, et la masse en devient friable…
Mais brisons-la : car le pain doit être dans notre bouche moins objet de respect que de consommation.
– Francis Ponge. Alguns poemas. [selecção, introdução e tradução Manuel Gusmão]. Edição bilíngue. Lisboa: Cotovia, 1996.
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À sonhadora matéria
Provavelmente, tudo e todos – e nós mesmos – não somos senão sonhos imediatos da divina Matéria:
Os produtos textuais da sua prodigiosa imaginação.
E assim, num certo sentido, poder-se-is dizer que a natureza inteira, nela incluindo os homens, não é senão uma escrita; mas uma escrita de uma certa espécie; uma escrita não-significativa, pelo facto de que não se refere a nenhum sistema de significação; de que se trata de um universo indefinido: propriamente imenso, sem medidas.
Enquanto que o mundo das palavras é um universo finito.
Mas pelo facto de ser composto por esses objectos muito particulares e particularmente comoventes, os sons significativos e articulados de que somos capazes, que nos servem ao mesmo tempo para nomear os objectos da natureza e para exprimir os nossos sentimentos,
Basta sem dúvida nomear o que quer que seja – de uma certa maneira – para exprimir tudo do homem e, no mesmo lance, glorificar a matéria, exemplo para a escrita e providência do espírito.
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À la rêveuse matière
Probablement, tout et tous – et nous-mêmes – ne sommes-nous que des rêves immédiats de la divine Matière.
Les produits textuels de sa prodigieuse imagination.
Et ainsi, en un sens, pourrait-on dire que la nature entière, y compris les hommes, n’est qu’une écriture; mais une écriture d’un certain genre; une écriture non significative, du fait qu’elle ne se réfère à aucun système de signification; qu’il s’agit d’un univers indéfini : â proprement parler immense, sans mesures.
Tandis que le monde des paroles est un univers fini.
Mais du fait qu’il est composé de ces objets très particuliers et particulièrement émouvants, les sons significatifs et articulés dont nous sommes capables, qui nous servent à la fois à nommer les objets de la nature et à exprimer nos sentiments,
Sans doute suffit-il de nommer quoi que ce soit – d’une certaine manière – pour exprimer tout de l’homme et, du même coup, glorifier la matière, exemple pour l’écriture et providence de l’esprit.
– Francis Ponge. Alguns poemas. [selecção, introdução e tradução Manuel Gusmão]. Edição bilíngue. Lisboa: Cotovia, 1996.
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O engradado
A meio caminho de engraçado e degradado a língua portuguesa possui engradado, simples caixote de ripas espaçadas fadado ao transporte dessas frutas que, com a mínima sufocação, adquirem fatalmente urna moléstia.
Armado de maneira que no termo de seu uso possa ser quebrado sem esforço, não serve duas vezes. Desse modo, dura menos ainda que os gêneros fundentes ou nebulosos que encerra.
Assim, em todos as esquinas das ruas que levam aos mercados, reluz com o brilho sem vaidade do pinho branco. Novinho em folha ainda, no entanto aturdido por se encontrar numa pose desajeitada na via pública jogado fora sem retomo, esse objeto é, em suma, dos mais simpáticos, – sobre a sorte do qual, todavia, convém, não repisar muito.
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Le cageot
A mi-chemin de la cage au cachot la langue française a cageot, simple caissette à claire-voie vouée au transport de ces fruits qui de la moindre suffocation font à coup sûr une maladie.
Agencé de façon qu’au terme de son usage il puisse être brisé sans effort, il ne sert pas deux fois. Ainsi dure-t-il moins encore que les denrées fondantes ou nuageuses qu’il enferme.
A tous les coins de rues qui aboutissent aux halles, il luit alors de l’éclat sans vanité du bois blanc. Tout neuf encore, et légèrement ahuri d’être dans une pose maladroite à la voirie jeté sans retour, cet objet est en somme des plus sympathiques – sur le sort duquel il convient toutefois de ne s’appesantir longuement.
– Francis Ponge {tradução Adalberto Müller e Carlos Loria}, em “O partido das coisas. Francis Ponge”. [tradução Adalberto Müller; Ignacio Antonio Neis; Júlio Castañon Guimarães; Michel Peterson; Carlos Loria; organização Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson]. São Paulo: Iluminuras, 2000.
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A ostra
A ostra, do tamanho de um seixo mediano, tem uma aparência mais rugosa, uma cor menos uniforme, brilhantemente esbranquiçada. É um mundo recalcitrantemente fechado. Entretanto, pode-se abri-lo: é preciso então agarrá-la com um pano de prato, usar de uma faca pouco cortante, denteada, fazer várias tentativas. Os dedos curiosos ficam trinchados, as unhas se quebram: é um trabalho grosseiro. Os golpes que lhe são desferidos marcam de círculos brancos seu invólucro, como halos.
No interior encontra-se todo um mundo, de comer e de beber: sob um “firmamento” (propriamente falando) de madrepérola, os céus de cima se encurvam sobre os céus de baixo, para formar nada mais que um charco, um sachê viscoso e verdejante, que flui e reflui para a vista e o olfato, com franjas de renda negra nas bordas.
Por vezes mui raro uma fórmula peroliza em sua goela nácar, e alguém encontra logo com que se adornar.
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L’huître
L’huître, de la grosseur d’un galet moyen, est d’une apparence plus rugueuse, d’une couleur moins unie, brillamment blanchâtre. C’est un monde opiniâtrement clos. Pourtant on peut l’ouvrir : il faut alors la tenir au creux d’un torchon, se servir d’un couteau ébréché et peu franc, s’y reprendre à plusieurs fois. Les doigts curieux s’y coupent, s’y cassent les ongles : c’est un travail grossier. Les coups qu’on lui porte marquent son enveloppe de ronds blancs, d’une sorte de halos.
A l’intérieur l’on trouve tout un monde, à boire et à manger: sous un firmament (à proprement parler) de nacre, les cieux d’en dessus s’affaissent sur les cieux d’en dessous, pour ne plus former qu’une mare, un sachet visqueux et verdâtre, qui flue et reflue à l’odeur et à la vue, frangé d’une dentelle noirâtre sur les bords.
Parfois très rare une formule perle à leur gosier de nacre, d’où l’on trouve aussitôt à s’orner.
– Francis Ponge, em “A mesa”. Francis Ponge. [tradução e apresentação Ignácio Antonio Neis e Michel Peterson]. Edição bilíngue. São Paulo: Iluminuras, 2002.
§
A paisagem
O horizonte, sobrelinhado com acentos vaporosos, parece escrito em pequenos caracteres, com tinta mais ou menos pálida segundo os jogos de luz.
Do que está mais próximo, não usufruo mais do que como de um quadro,
Do que está ainda mais próximo, do que como de esculturas, ou arquiteturas,
A seguir, da própria realidade das coisas a meus pés, como de alimentos, com uma sensação de verdadeira indigestão,
Até que finalmente em meu corpo tudo se engolfa e levanta vôo pela cabeça, como que por chaminé que desembocasse em pleno céu.
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Le paysage
L’horizon, surligné d’accents vaporeux, semble écrit en petits caractères, d’une encre plus ou moins pâle selon les jeux de lumière.
De ce qui est plus proche je ne jouis plus que comme d’un tableau,
De ce qui est encore plus proche que comme de sculptures, ou architectures,
Puis de la réalité même des choses jusqu’à mes genoux, comme d’aliments, avec une sensation de véritable indigestion,
Jusqu’à ce qu’enfin, dans mon corps tout s’engouffre et s’envole par la tête, comme par une cheminée qui débouche en plein ciel.
– Francis Ponge {tradução Júlio Castañon Guimarães}, em “O partido das coisas”. Francis Ponge. [tradução Adalberto Müller; Ignacio Antonio Neis; Júlio Castañon Guimarães; Michel Peterson; Carlos Loria; organização Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson]. São Paulo: Iluminuras, 1999.
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Os prazeres da porta
Os reis não tocam nas portas.
Não conhecem essa ventura: fazer avançar docemente ou com rudeza um desses grandes painéis familiares, voltar-se em sua direção para recolocá-lo no lugar – ter nos braços uma porta.
… A ventura de empunhar no ventre pelo nó de porcelana um desses altos obstáculos de um cômodo; o corpo-a-corpo rápido pelo qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo inteiro se acomoda ao seu novo aposento.
Com a mão amiga retém ainda, antes de empurrá-la decididamente e encerrar-se – o que o estalido da mola potente mas bem azeitada agradavelmente lhe assegura.
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Les plaisirs de la porte
Les rois ne touchent pas aux portes.
Ils ne connaissent pas ce bonheur: pousser devant soi avec douceur ou rudesse l’un de ces grands panneaux familiers, se retourner vers lui pour le remettre en place, – tenir dans ses bras une porte.
Le bonheur d’empoigner au ventre par son nœud de porcelaine l’un de ces hauts obstacles d’une pièce; ce corps à corps rapide par lequel un instant la marche retenue, l’œil s’ouvre et le corps tout entier s’accommode à son nouvel appartement.
D’une main amicale il la retient encore, avant de la repousser décidément et s’enclore, – ce dont le déclic du ressort puissant mais bien huilé agréablement l’assure.
– Francis Ponge {tradução Carlos Loria e Adalberto Müller}, em “O partido das coisas”. Francis Ponge. [tradução Adalberto Müller; Ignacio Antonio Neis; Júlio Castañon Guimarães; Michel Peterson; Carlos Loria; organização Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson]. São Paulo: Iluminuras, 1999.
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Francis PongeFrancis Ponge em tradução de Haroldo de Campos
A ARANHA
EXÓRDIO EM CORRENTE.
PROPOSIÇÃO (TEMA DA SARABANDA).
CORRENTE EM SENSO INVERSO (CONFIRMAÇÃO).
SARABANDA, A TEIA URGIDA (JIGA DE INSETOS
VOANDO EM TORNO).
FUGA EM CONCLUSÃO.
Sem dúvida o sei bem… (por o ter algum dia desfiado de mim mesmo? Ou que outrora o aprendi no linear de toda ciência?) que a aranha secreta seu fio, baba o fio de sua teia… e tem as pernas tão distantes, tão distintas – o deslocar tão delicado – para a seguir poder medir essa tela – perlongar em todo sentido sua obra de baba sem a romper nem se enredar – enquanto todos os demais animalejos não prevenidos nela se emaranham mais e mais a cada um de seus trejeitos ou cabriolas perdidas de fuga…
Mas desde logo, como ela age?
De um salto ousado? Ou se deixando cair sem perder o fio de seu discurso, para volver de novo muitas vezes por diverso caminho ao ponto de partida, sem ter traçado, estendido, uma linha que por seu corpo não fosse passada – de que todo inteiro este não participasse – a um só tempo fiação e tecido?
Donde a definição por ela mesma de sua teia tão logo concebida:
DE NADA ALÉM DE SALIVA PROPOSIÇÕES NO AR MAS AUTENTICAMENTE* TECIDAS – ONDE HABITO PACIENTE – SEM PRETEXTO SENÃO A FOME DE LEITORES.
A seu propósito assim – à sua imagem –, careço de lançar frases a um tempo assaz ousadas e saídas só de mim, mas solidas o suficiente – e de fazer meu deslocar bem ligeiro, para que meu corpo sem rompê-las nelas tome apoio a fim de imaginar – lançar outras em sentido diverso – e mesmo em contrário senso pelo que minha obra se trame tão perfeita, que minha pança enfim pensa** possa nela repousar, entocaiar-se, e eu possa então convocar minhas presas – vós, leitores, vós, atenção de meus leitores – para a seguir vos devorar em silêncio (o que se chama glória)…
Sim, súbito, de um ângulo da sala eis que sobre vós me precipito a largos passos, atenção de meus leitores presa à peia de minha obra de baba, e não é o momento menos grato do jogo! É aqui que eu vos pico… e adormento!
`SCARAMOSCAS*** NO AR QUE MOVEI FRENTE A MIM O IMPENITENTE ESGAR DESSA VOSSA VESÂNIA…
Moscas e moscarrões,
efêmeros, abelhas,
vespas, zangões, ferrões,
cupins, carunchos, traças,
espectros, silfos, trasgos,
monstros, duendes, diabos,
gnomos, ogres, ladrões,
bufões, sombras e manes,
bandos, pandilhas, nuvens
hordas, colméias, classes,
enxames, bodas, turbas,
coortes, povos, grei,
colégios e sorbonas,
doutores, pisa-flores,
doutos e palradores,
bufos, trêfegos, birrentos,
vivaldinos e avarentos,
songamongas, celestinos,
serafins, espadachins,
ginetes, peões, besteiros,
sergentes, tiranos e guardas,
pontas, picos e forcados,
lanças, lâminas e sabres,
trombetas e cornamusas,
buzinas, pífaros, flautas,
harpas, baixos e bordões,
órgãos, liras, charamelas,
bardos, chantres e tenores,
strette, zumbidos, sistros,
hinos, cantigas, refrães,
lengalengas, fantasias,
ninharias e trauteios,
disparates, devaneios,
migas, detalhes, pólens,
sementes, germes, espermas,
miasmas, migalhas, fetos,
empolas, cinzas, poeiras,
coisas, causas, razões,
ditos, números e signos,
lemas, nomes, idéias,
centões, rifões e dogmas,
provérbios, frases, vozes,
temas, teses e glosas.
DISPARATES, TRAUTEIOS, ESQUEMAS EM CIZÂNIA! SABEI SEJA O QUE SEJA DESTA PANÇA SECRETA E EMBORA EU NÃO CONCEDA**** SER MAIS QUE UM ESCRIVELO CONFUSO***** EIS QUE SE VAI DESTRAMANDO O QUE SEGUE: A SABER DAÍ SAI QUE EU SOU VOSSA PARCA; SAI, DIGO, E SAI DE SORTE QUE EMBORA MAIS NÃO SEJA QUE PANÇA ERGO SOU (SACHET SARJA DE SEDA QUE ESTA PANÇA SECRETA) VOSSA ESTRELA MALIGNA A ESPIAR-VOS DO TETO E EM SEUS RAIOS****** VOS DAR NOÇÃO DE VOSSA NOITE.
Muito mais tarde, – a teia abandonada – orvalho, poeiras, a engomam, a fazem brilhar – a tomam de uma outra maneira atraente…
Até que ela coife enfim, de um modo horrível ou grotesco, algum amador curioso de macegas ou cantos de celeiros, que bufará contra ela mas continuará coifado.
E isto será o fim…
Mas figa!
Deste triunfo repelente, pago pela destruição de minha obra, não me restará na memória nem orgulho nem pena, pois (função só de meu corpo e sua fome) quanto a mim meu poder perdura!
E desde muito – para o provar alhures –, já estarei em fuga…
* Var: Mesentericamente.
** Var: Meu pensar.
*** Var: `Squadra-de-moscas`.
**** Var: Com seda.
***** Var: Escrifuso novelo.
****** Var: Sua rede. [ Mantive a sexta variante (RETS/RAIS/REDE/RAIOS), suprimida na reimpressao do poema (Grand Recueil, cit.).].
L’ARAIGNÉE
EXORDE EN COURANTE.
PROPOSITION (THÈME DE LA SARABANDE).
COURANTE EN SENS INVERSE (CONFIRMATION).
SARABANDE, LA TOILE OURDIE (GUIGUE D`INSECTES
VOLANT AUTOUR).
FUGUE EN CONCLUSION.
Sans doute le sais-je bien… (pour l’avoir quelque jour dévidé de moi-même? ou me l’a-t-on jadis avec les linéaments de toute science appris?) que l’araignée sécrète son fil, bave le fil de sa toile… et n’a les pattes si distantes, si distinctes – la démarche si délicate – qu’a- fin de pouvoir ensuite arpenter cette toile – parcourir en tous sens son ouvrage de bave sans le rompre ni s’y emmêler – tandis que toutes autres bestioles non prévenues s’y emprisonnent de plus belle par chacun de leurs gestes ou cabrioles éperdues de fuite…
Mais d’abord, comment agit-elle?
Est-ce d’un bon hardi? ou se laissant tomber sans lâcher le fil de son discours, pour revenir plusieurs fois par divers chemins ensuite à son point de départ, sans avoir tracé, tendu une ligne que son corps n’y soit passé – n’y ait tout entier participé – à la fois filature et tissage?
D’où la définition par elle-même de sa toile aussitôt conçue:
DE RIEN D’AUTRE QUE DE SALIVE PROPOS EN L’AIR MAIS AUTHENTIQUEMENT* TISSUS – OÙ J’HABITE AVEC PATIENCE – SANS PRÉTEXTE QUE MON APPÉTIT DE LECTEURS.
A son propos ainsi – à son image –, me faut-il lancer des phrases à la fois assez hardies et sortant uniquement de moi, mais assez solides – et faire ma démarche assez légère, pour que mon corps sans les rompre sur elles prenne appui pour en imaginer – en lancer d’autres en sens divers – et même en sens contraire par qui soit si parfaitement tramé mon ouvrage, que ma panse** dès lors puisse s’y reposer, s’y tapir, et que je puisse y convoquer mes proies – vous, lecteurs, vous, attention de mes lecteurs – afin de vous dévorer ensuite en silence (ce qu’on appelle la gloire)…
Oui, soudain, d’un angle de la pièce me voici à grands pas me précipitant sur vous, attention de mes lecteurs prise au piège de mon ouvrage de bave, et ce n’est pas le moment le moins réjouissant du jeu: c’est ici que je vous pique et vous endors!
SCARAMOUCHES AU CIEL*** QUI MENEZ DEVERS MOI LE BRANLE IMPÉNITENT DE VOTRE VÉSANIE…
Mouches et moucherons,
abeilles, éphémères,
guêpes, frelons, bourdons,
cirons, mites, cousins,
spectres, sylphes, démons,
monstres, drôles et diables,
gnomes, ogres, larrons,
lurons, ombres et mânes,
bandes, cliques, nuées,
hordes, ruches, espèces,
essaims, noces, cohues,
cohortes, peuples, gens,
collèges et sorbonnes,
docteurs et baladins,
doctes et bavardins,
badins, taquins, mutins,
et lutins et mesquins,
turlupins, célestins,
séraphins, spadassins,
reîtres, sbires, archers,
sergents, tyrans et gardes,
pointes, piques, framées,
lances, lames et sabres,
trompettes et clairons,
buccins, fifres et flûtes,
harpes, bassons, bourdons,
orgues, lyres et vielles,
bardes, chantres, ténors,
strettes, sistres, tintouins,
hymnes, chansons, refrains,
rengaines, rêveries,
balivernes, fredons,
billevesées, vétilles,
détails, bribes, pollens,
germes, graines et spermes,
miasmes, miettes, fétus,
bulles, cendres, poussières,
choses, causes, raisons,
dires, nombres et signes,
lemmes, nomes, idées,
centons, dictons et dogmes,
proverbes, phrases, mots,
thèmes, thèses et gloses.
FREDONS, BILLEVESÉES, SCHÈMES EN ZIZANIE! SACHEZ, QUOI QU’IL EN SOIT DE MA PANSE SECRÈTE ET BIEN QUE JE NE SOIS**** QU’UN ÉCHRIVEAU***** CONFUS QU’ON EN PEUT DÉMÊLER POUR L’HEURE CE QUI SUIT: À SAVOIR QU’IL EN SORT QUE JE SUIS VOTRE PARQUE; SORT, DIS-JE, ET IL S’ENSUIT QUE BIEN QUE JE NE SOIS QUE PANSE DONC JE SUIS (SACHET, COQUILLE EN SOIE QUE MA PANSE SECRÉTE) VOTRE MAUVAISE ÉTOILE AU PLAFOND QUI VOUS GUETTE POUR VOUS FAIRE EN SES RAIS CONNAÎTRE VOTRE NUIT.
Beaucoup plus tard, – ma toile abandonnée – de la rosée, des poussières l’empèseront, la feront briller – la rendront de toute autre façon attirante…
Jusqu’à ce qu’elle coiffe enfin, de manière horrible ou grotesque, quelque amateur curieux des buissons ou des coins de grenier, qui pestera contre elle, mais en restera coiffé.
Et ce sena la fin…
Mais fi!
De ce répugnant triomphe, payé par la destruction de mon œuvre, ne subsistera dans ma mémoire orgueil ni affliction, car (fonction de mon corps seul et de son appétit) quant à moi mon pouvoir demeure!
Et dès longtemps, — pour l’éprouver ailleurs — j’aurai fui…
*Var. : Mésentériquement.
**Var. : Pensée.
***Var. : Squadra de mouch’s au ciel.
****Var. : Jeune soie.
*****Var. : Échrivain
– Francis Ponge. “CAMPOS, Haroldo de. ‘A Retórica da Aranha'”. in: ______. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997. cap.14, p. 209-226.
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BREVE BIOGRAFIA FRANCIS PONGE
Francis Ponge nasceu no dia 27 de março de 1899, em Montpellier, França. Aos sete anos é iniciado precocemente na música aprendendo a tocar Schumann, entre outros autores clássicos. Desde muito cedo se dedicou ao estudo do Latim e ao significado das palavras, tornando a linguagem, como sua principal preocupação literária ao longo de toda sua obra. Publicou seu primeiro texto, “Sonnet”, na revista Presqu’île, em 1916. Estudou Direito e Filosofia na Sorbone não obtendo aprovação na Licenciatura em Filosofia por não conseguir falar no exame oral. Em 1922 se une a Nouvelle Revue Française e aproxima-se dos surrealistas com os quais compartilhava convicções políticas, mas, abandona-os em seguida por não concordar com suas manifestações e freqüentes discussões. Em 1936 torna-se lider sindical dos funcionários da Messageries Hachette e no ano seguinte filia-se ao Partido Comunista Francês e é demitido pela Hachette passando a trabalhar em companhias de seguros. Após ser membro ativo da Resistência Francesa durante a segunda guerra, Ponge assume um posto de chefia no diário Progrès de Lyon onde publica 53 artigos anônimos sob o título Hors Sac. Reconhecido mundialmente por sua obra De parte de las cosas (1942), em que refuta a efusão lírica e a subjetividade descrevendo os objetos cotidianos em uma linguagem aparentemente objetiva e científica. Ponge explora a realidade da língua, que, em sua opinião, dignifica e humaniza todo o ser humano. Em suas descrições um pouco humorísticas, emprega neologismos criados a partir da etimologia das palavras. Esta apreensão do mundo através de vertiginosa profundidade da linguagem foi batizada com o nome de ‘objeu’ e combina as atividades criativas e críticas do escritor.
Francis Ponge morre no dia 6 de agosto de 1988 em Bar-sur-Loup e no mês de setembro a revista Paris. Tête d’affiche consagra-lhe sua página de capa, com uma homenagem de Jacques Chirac, Prefeito de Paris. No dia 20 de setembro é inaugurada a praça Francis-Ponge em Montpellier e no dia 2 de fevereiro do ano seguinte é emitida pelos Correios da França, a série “Poetas franceses do século XX” (Paul Éluard, André Breton, Louis Aragon, Jacques Prévert, René Char), com um selo contendo a efígie de Francis Ponge.
Ponge desenvolveu sua prosa poética em Doce pequeños escritos (1926), Poemas (1948), La Rage de l’expression (1952), La gran recopilación (1961, 3 vols.), El jabón (1967) e Fábrica del Prado (1971). Também escreveu ensaios como Pour un Malherbe (1965) e um livro sobre crítica da arte, Estudios de Pintura (1948). Exerceu grande influência no desenvolvimento da ‘literatura objetiva’ dos novelistas da década de 1950.
Fonte biográfica: Cultura Pará
OBRA DE FRANCIS PONGE EM PORTUGUÊS
:: O caderno do pinhal. Francis Ponge. [tradução Leonor Nazaré]. Lisboa: Hiena Editora, 1986.
:: O partido das coisas. Francis Ponge. [tradução Adalberto Müller; Ignacio Antonio Neis; Júlio Castañon Guimarães; Michel Peterson; Carlos Loria; organização Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson]. São Paulo: Iluminuras, 1999; 2000.
:: Alguns poemas. Francis Ponge. [selecção, introdução e tradução Manuel Gusmão]. Edição bilíngue. Lisboa: Cotovia, 1996.
:: Métodos. Francis Ponge. [tradução Leda Tenório da Motta]. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
:: A mesa. Francis Ponge. [tradução e apresentação Ignácio Antonio Neis e Michel Peterson]. Edição bilíngue. São Paulo: Iluminuras, 2002.
:: A mimosa. Francis Ponge. [tradução, introdução e notas de Adalberto Müller]. Coleção Poetas do Mundo. Brasília: Editora UnB, 2003.
Antologia (participação)
:: Poetas de França hoje 1945-1995. [introdução, seleção e tradução Mário Laranjeiras]. São Paulo: Edusp, 1996.
:: O arco-íris branco: ensaios de literatura e cultura. de Haroldo de Campos. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
© Direitos reservados aos herdeiros
© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske em colaboração com José Alexandre da Silva