poemas e baladas de françois villon (edição bilíngue)
Villon em tradução de Augusto de Campos
Balada dos enforcados
Irmãos humanos que ao redor viveis,
Não nos olheis com duro coração,
Pois se aos pobres de nós absolveis
Também a vós Deus vos dará perdão.
Aqui nos vedes presos, cinco, seis:
Quanto era cara viva que comia
Foi devorado e em pouco apodrecia.
Ficamos, cinza e pó, os ossos, sós.
Que de nossa aflição ninguém se ria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
Se dizemos irmãos, vós não deveis
Sentir desprezo, embora condenados
Tenhamos sido em vida. Bem sabeis:
Nem todos têm os sentidos sentados.
Desculpai-nos, que já estamos gelados,
Perante o filho da Virgem Maria.
Que seu favor não nos falte um só dia
Para livrar-nos do inimigo atroz.
Estamos mortos: que ninguém sorria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
A chuva nos lavou e nos desfez
E o sol nos fez negros e ressecados,
Corvos furaram nossos olhos e eis-
Nos de pêlos e cílios despojados,
Paralíticos, nunca mais parados,
Pra cá, pra lá, como o vento varia,
Ao seu talante, sem cessar, levados,
Mais bicados do que um dedal. A vós
Não ofertamos nossa confraria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
Meu príncipe Jesus, que a tudo vês,
Não nos entregues à soberania
Do Inferno, que só ouvimos tua voz.
Homens, aqui não cabe zombaria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
.
L’épitaphe de Villon ou “Ballade des Pendus”
Frères humains, qui après nous vivez,
N’ayez les coeurs contre nous endurcis,
Car, si pitié de nous pauvres avez,
Dieu en aura plus tôt de vous mercis.
Vous nous voyez ci attachés, cinq, six:
Quant à la chair, que trop avons nourrie,
Elle est piéça dévorée et pourrie,
Et nous, les os, devenons cendre et poudre.
De notre mal personne ne s’en rie;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
Se frères vous clamons, pas n’en devez
Avoir dédain, quoique fûmes occis
Par justice. Toutefois, vous savez
Que tous hommes n’ont pas bon sens rassis.
Excusez-nous, puisque sommes transis,
Envers le fils de la Vierge Marie,
Que sa grâce ne soit pour nous tarie,
Nous préservant de l’infernale foudre.
Nous sommes morts, âme ne nous harie,
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
La pluie nous a débués et lavés,
Et le soleil desséchés et noircis.
Pies, corbeaux nous ont les yeux cavés,
Et arraché la barbe et les sourcils.
Jamais nul temps nous ne sommes assis
Puis çà, puis là, comme le vent varie,
A son plaisir sans cesser nous charrie,
Plus becquetés d’oiseaux que dés à coudre.
Ne soyez donc de notre confrérie;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
Prince Jésus, qui sur tous a maistrie,
Garde qu’Enfer n’ait de nous seigneurie:
A lui n’ayons que faire ne que soudre.
Hommes, ici n’a point de moquerie;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
– François Villon [tradução Augusto de Campos]. em “ABC da literatura, de Ezra Pound”. [tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes]. São Paulo: Cultrix, 1970.
§
Villon em tradução de Décio Pignatari
Balada da Gorda Margô
Se eu amo e sirvo a dona de bom grado,
Tomar-me-ão por vil, paspalho e tudo?
Ela dá conta de qualquer recado,
Por seu amor cinjo punhal e escudo.
Quando vem gente, eu me despacho, grudo
Um pichel de vinho e me viro na moita, não
Sem dar água, queijo, fruta e pão.
Digo (se pagam bem): “Nomine Figlii,
E voltem sempre às ordens do tesão,
A este bordel, que é o nosso domicílio!”
Não tarda muito, e eis-me de humor amargo,
Se sem dinheiro ela me vem pro quarto:
Não a suporto, quero vê-la morta:
Faço a pilhagem nos seus quatro trapos
E juro me pagar por conta e encargo.
Pego-a por trás e ela: “Anticristo!”
– Jura por Nosso Senhor Jesus Cristo
Que não dará. Passo a mão num porrete
E lhe gravo na estampa um bom lembrete,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.
Mas vem a paz, e ela me vem com um bruto
Peido, mais venenoso do que um bafo
De onça. Rindo, me acerta um squiafo no
Coco, diz: “Vem, filhote”, e abre o pernão.
Então, dormimos como um pau, briacos.
Margô desperta, o ventre lhe ronrona,
E monta em mim: desatrofia o anão,
De milho em milho me debulha o saco.
De tanto putear, fico na lona,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.
Tenho o pão quente – vente, chova ou neve.
Sou putanheiro e puta não faz greve:
Quem vale mais, se não se vê a mais leve
Diferença de brilho – se a tal mãe, tal filho?!
Amor ao lixo – e o lixo vem atrás;
Desprezo à honra – e a honra é mais voraz,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.
.
Ballade de la Grosse Margot
Se j’ayme et sers la belle de bon hait.
M’en devez vous tenir ne vil ne sot?
Elle a en soy des biens a fin souhait.
Pour son amour sains bouclier et passot;
Quand viennent gens, je cours et happe un pot,
Au vin m’en voys, sans demener grand bruit;
Je leur tends eaue, frommage, pain et fruit.
S’ilz payent bien, je leur dis “bene stat;
Retournez cy, quand vous serez en ruit,
En ce bordeau ou tenons notre estat.”
Mais adoncques il y a grand deshait
Quand sans argent s’en vient couchier Margot;
Veoir ne la puis, mon coeur a mort la hait.
Sa robe prends, demi-ceint et surcot,
Si luy jure qu’il tendra pour l’escot.
Par les côtés se prend “c’est Antecrist”;
Crie, et jure par la mort Jhesucrist
Que non fera. Lors empongne un esclat;
Dessus son nez luy en fais ung escript,
En ce bordeau ou tenons notre estat..
Puis paix se fait et me fait ung gros pet,
Plus enflé qu’ung velimeux escarbot.
Riant, m’assiet son poing sur mon sommet,
“Go! go!” me dit, et me fiert le jambot.
Tous deux yvres, dormons comme ung sabot.
Et au resveil, quand le ventre luy bruit,
Monte sur moy, que ne gaste son fruit.
Soubz elle geins, plus qu’un aiz me fais plat,
De paillarder tout elle me destruit,
En ce bordeau ou tenons notre état.
Vente, gresle, gelle, j’ai mon pain cuit.
Ie suis paillart, la paillarde me suit.
Lequel vault mieulx ? Chascun bien s’entresuit.
L’ung l’autre vaut; c’est à mau rat mau chat.
Ordure aimons, ordure nous assuit;
Nous deffuyons honneur, il nous deffuit,
En ce bordeau ou tenons notre estat.
– François Villon {tradução Décio Pignatari}, em “Poesia Pois É Poesia 1950-2000”, de Décio Pignatari. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora Unicamp, 2004.
§
Villon em tradução de Jorge de Sena
Balada das mulheres de Paris
Que sejam boas linguareiras
Florentinas e Venezianas,
Para servir de mensageiras,
Também Lombardas e Romanas,
E as Genovesas e as Toscanas.
Aqui vos garante quem diz
(Em que pese às Sicilianas):
Para a boca, só de Paris.
Em bem falar serão vezeiras,
Doutoras, as Napolitanas.
Como boas cacarejeiras
As de Bruges e as Alamanas.
Que sejam Gregas ou Troianas,
E de Hungria ou de outro país,
Aragonezas, Castelhanas;
Para a boca, só de Paris.
Bretãs, Suíças, más palradeiras.
Mais Gascoas e Toulousanas:
Um par das nossas regateiras
Cala-as logo e às Alsacianas,
Às ingresas como às Renanas
(É bastante a lista que eu fiz?),
E às Picardas e às Sabolanas:
Para a boca, só de Paris.
Senhor, às damas mais maganas
O prémio deveis dar, feliz.
Por mais que valham Italianas
– Para a boca, só de Paris.
.
Ballade des femmes de Paris
Quoiqu’on tient belles langagères
Florentines, Vénitiennes,
Assez pour être messagères,
Et mêmement les anciennes,
Mais soient Lombardes, Romaines.
Genevoises, à mes périls,
Pimontoises, savoisiennes,
Il n’est bon bec que de Paris.
De beau parler tiennent chaïères,
Ce dit-on, les Napolitaines,
Et sont très bonnes caquetières
Allemandes et Prussiennes ;
Soient Grecques, Egyptiennes,
De Hongrie ou d’autres pays,
Espagnoles ou Catelennes,
Il n’est bon bec que de Paris.
Brettes, Suisses n’y savent guères,
Gasconnes, n’aussi Toulousaines:
De Petit Pont deux harengères
Les concluront, et les Lorraines,
Angloises et Calaisiennes,
(Ai-je beaucoup de lieux compris?)
Picardes de Valenciennes;
Il n’est bon bec que de Paris.
Prince, aux dames parisiennes
De bien parler donnez le prix;
Quoi que l’on die d’Italiennes,
Il n’est bon bec que de Paris.
– François Villon, em “Poesia de 26 Séculos-de Arquíloco a Nietzsche”. [organização e tradução de Jorge de Sena]. 2 vol., Coleção Antologias universais. Porto: Edições Asa, 3ª ed., 2001.
§
Villon em tradução de Sebastião Uchôa Leite
Epitáfio Villon – Balada dos Enforcados
Irmãos humanos que ainda viveis,
Não sejais corações endurecidos;
Tendo pena de nós, pobres, talvez
De Deus sereis mais cedo merecidos.
Vede os pescoços, cinco ou seis, torcidos;
A carne, que sorveu tanto alimento,
Está hoje devorada e em fermento,
E ossos, a cinza e pó vamos volver.
Ninguém ria de tal padecimento:
Clamai a Deus a nos absolver.
Se de irmão vos chamarmos, não deveis
Tratar-nos com desdém por termos sido
Justiçados. Contudo, vós sabeis:
Nem por todo o senso é conhecido,
Desculpai-nos, por sermos falecidos,
Junto ao filho da Virgem, seu assento.
Conserve-nos da graça o acolhimento:
Livre-no de no inferno dissolver.
Eis-nos mortos, ninguém nos dê tormento:
Clamai a Deus a nos absolver.
A chuva nos lavou, limpou de vez,
E o sol secou e pôs enegrecidos;
Corvos cravam os olhos de avidez,
Barba e fios puxando enfurecidos.
Não nos firmamos mais, enrijecidos,
Balançando de um lado a outro, ao vento,
Sempre ao seu bel-prazer em movimento,
Mais furos que em dedal, a revolver.
Evitai da irmandade o envolvimento:
Clamai a Deus a nos absolver.
Príncipe Jesus, guiai-nos o tento,
Cuidai que o Inferno não esteja atento:
Lá, não há o que ver ou resolver.
Homens, do riso aqui há banimento:
Clamai a Deus a nos absolver.
.
L’épitaphe de Villon ou “Ballade des Pendus”
Frères humains, qui après nous vivez,
N’ayez les coeurs contre nous endurcis,
Car, si pitié de nous pauvres avez,
Dieu en aura plus tôt de vous mercis.
Vous nous voyez ci attachés, cinq, six:
Quant à la chair, que trop avons nourrie,
Elle est piéça dévorée et pourrie,
Et nous, les os, devenons cendre et poudre.
De notre mal personne ne s’en rie;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
Se frères vous clamons, pas n’en devez
Avoir dédain, quoique fûmes occis
Par justice. Toutefois, vous savez
Que tous hommes n’ont pas bon sens rassis.
Excusez-nous, puisque sommes transis,
Envers le fils de la Vierge Marie,
Que sa grâce ne soit pour nous tarie,
Nous préservant de l’infernale foudre.
Nous sommes morts, âme ne nous harie,
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
La pluie nous a débués et lavés,
Et le soleil desséchés et noircis.
Pies, corbeaux nous ont les yeux cavés,
Et arraché la barbe et les sourcils.
Jamais nul temps nous ne sommes assis
Puis çà, puis là, comme le vent varie,
A son plaisir sans cesser nous charrie,
Plus becquetés d’oiseaux que dés à coudre.
Ne soyez donc de notre confrérie;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
Prince Jésus, qui sur tous a maistrie,
Garde qu’Enfer n’ait de nous seigneurie:
A lui n’ayons que faire ne que soudre.
Hommes, ici n’a point de moquerie;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
– François Villon, em “Poesia de François Villon”. [tradução, organização e notas de Sebastião Uchôa Leite]. São Paulo: Editora Edusp, 2000.
§
Epístola aos amigos
Tende piedade, ó tende piedade
Ao menos vós, amigos mais sentidos!
No fosso estou, e sem amenidades
Cá neste exílio ao qual fui remetido
Pela sorte, e por Deus foi permitido.
Moças, amantes, jovens e donzéis,
Saltimbancos girando sobre os pés,
Gargantas-guizos como cascavéis,
Fica o pobre Villon sob os grilhões?
Cantores livres, soltos, à vontade,
Galantes palradores desmedidos,
Biltres sem ouro falso ou de verdade,
Seres de tanto espírito aturdido,
Tardais muito, porque morre estendido!
Com rondós e motetos, menestréis,
Dai-lhe, ao morrer, um bom caldo, ao invés!
Onde está, não vão raios, turbilhões:
Muros espessos são vendas cruéis.
Fica o pobre Villon sob os grilhões?
Vinde vê-lo em atroz calamidade,
Nobres homens, sem tributos retidos,
Que sois livres de império e majestade,
E só a Deus no céu sois prometidos.
Terça e domingo são jejuns batidos
E tem os dentes mais longos que ancinhos;
Após pão seco – e nada de pastéis –
Corre nas tripas água aos borbotões.
Jaz no solo, sem mesa e sem tripés:
Fica o pobre Villon sob os grilhões?
Príncipes raros, velhos ou donzéis,
Dai-me o selo real sobre os papéis
E tirai-me em canastra dos porões;
Até os porcos juntos são fiéis:
Se um ronca, seguem outros em tropéis.
Fica o pobre Villon sob os grilhões?
.
Épître à mes amis
Ayez pitié, ayez pitié de moi,
A tout le moins, s’il vous plaît, mes amis!
En fosse gis, non pas sous houx ne mai,
En cet exil ouquel je suis transmis
Par Fortune, comme Dieu l’a permis.
Filles aimant jeunes gens et nouveaux,
Danseurs, sauteurs, faisant les pieds de veaux,
Vifs comme dards, aigus comme aiguillon,
Gousiers tintant clair comme cascaveaux,
Le laisserez là, le pauvre Villon ?
Chantres chantant à plaisance, sans loi,
Galants riant, plaisants en faits et dits,
Coureux allant francs de faux or, d’aloi,
Gens d’esperit, un petit étourdis,
Trop demourez, car il meurt entandis.
Faiseurs de lais, de motets et rondeaux,
Quand mort sera, vous lui ferez chaudeaux!
Où gît, il n’entre éclair ne tourbillon:
De murs épais on lui a fait bandeaux.
Le laisserez là, le pauvre Villon?
Venez le voir en ce piteux arroi,
Nobles hommes, francs de quart et de dix,
Qui ne tenez d’empereur ne de roi,
Mais seulement de Dieu de paradis;
Jeûner lui faut dimanches et merdis,
Dont les dents a plus longues que râteaux;
Après pain sec, non pas après gâteaux,
En ses boyaux verse eau à gros bouillon;
Bas en terre, table n’a ne tréteaux.
Le laisserez là, le pauvre Villon?
Princes nommés, anciens, jouvenceaux,
lmpétrez-moi grâces et royaux sceaux,
Et me montez en quelque corbillon.
Ainsi le font, l’un à l’autre, pourceaux,
Car, où l’un brait, ils fuient à monceaux.
Le laisserez là, le pauvre Villon?
– François Villon, em “Poesia de François Villon”. [tradução, organização e notas de Sebastião Uchôa Leite]. São Paulo: Editora Edusp, 2000.
§
Balada do concurso de Blois
Morro de sede quase ao pé da fonte,
Quente qual fogo, mas batendo os dentes;
Em meu país vivo além do Horizonte;
Junto a um braseiro tremo e fico ardente;
Nu como um verme. O traje: um presidente;
Rio no pranto e espero sem esperança;
Conforto acho na desesperança,
E alegro-me sem ter prazer algum;
tenho o poder sem força ou segurança;
E sou bem vindo a todos e a nenhum.
Só me é certo algo com que eu não conte;
nada é obscuro, exceto o que é evidente;
E sem dúvidas, fora as que defronte,
Tomo a ciência por mero acidente;
Conquisto tudo e fico dependente
Digo “Boa noite” se a aurora avança;
Deito-me sem controle em confiança;
Tenho alguns bens, mas sem vintém algum;
Sou um herdeiro mas serm ter herança,
E sou bem-vindo a todos e a nenhum
Descuido-me de tudo e suo a fronte
Para ter bens, sem ter um pretendente;
Com quem mais me afague, me confronte,
Quem mais me é veraz é quem mais mente;
É meu amigo que diz procedente
De um cisne alvo e um corvo a semelhança;
Em quem me nega enxergo uma aliança;
A patranha e a verdade acho comum;
recordo tudo sem a menor lembrança
E sou bem-vindo a todos e a nenhum.
Príncipe brando: se isso não vos cansa,
De tudo eu sei, e a mente não alcança;
Sou faccioso e sigo a lei comum.
Que faço? o Quê? dos meus bens a cobrança,
E sou bem-vindo a todos e a nenhum.
.
Ballade du concours de Blois
Je meurs de seuf auprès de la fontaine,
Chaud comme feu, et tremble dent à dent;
En mon pays suis en terre lointaine;
Lez un brasier frissonne tout ardent;
Nu comme un ver, vêtu en président,
Je ris en pleurs et attends sans espoir;
Confort reprends en triste désespoir;
Je m’éjouis et n’ai plaisir aucun;
Puissant je suis sans force et sans pouvoir,
Bien recueilli, débouté de chacun.
Rien ne m’est sûr que la chose incertaine;
Obscur, fors ce qui est tout évident;
Doute ne fais, fors en chose certaine;
Science tiens à soudain accident;
Je gagne tout et demeure perdant;
Au point du jour dis: “Dieu vous doint bon soir!”
Gisant envers, j’ai grand paour de choir ;
J’ai bien de quoi et si n’en ai pas un;
Echoite attends et d’homme ne suis hoir,
Bien recueilli, débouté de chacun.
De rien n’ai soin, si mets toute ma peine
D’acquérir biens et n’y suis prétendant;
Qui mieux me dit, c’est cil qui plus m’ataine,
Et qui plus vrai, lors plus me va bourdant;
Mon ami est, qui me fait entendant
D’un cygne blanc que c’est un corbeau noir;
Et qui me nuit, crois qu’il m’aide à pourvoir;
Bourde, verté, aujourd’hui m’est tout un;
Je retiens tout, rien ne sait concevoir,
Bien recueilli, débouté de chacun.
Prince clément, or vous plaise savoir
Que j’entends mout et n’ai sens ne savoir:
Partial suis, à toutes lois commun.
Que sais-je plus ? Quoi? Les gages ravoir,
Bien recueilli, débouté de chacun.
– François Villon, em “Poesia de François Villon”. [tradução, organização e notas de Sebastião Uchôa Leite]. São Paulo: Editora Edusp, 2000.
§
Villon em tradução de Vasco da Graça Moura
Balada
Em rosalgar, em pedra arsenical,
em enxofre, em salitre e em cal viva,
em chumbo que a ferver rói mais brutal,
em sebo e pez junto a lixívia activa
de mijo de judia cagativa,
lavaduras de pernas de gafado,
raspaduras de pés, botim furado,
sangue de cobra e drogas venenosas,
fel de texugo, lobo e zorra dado,
sejam fritas as línguas mais maldosas.
Em miolos de gato a pescar mal,
preto, velho e sem dentes na gengiva,
de cão velho que valha por igual,
raivoso pela baba e a saliva,
no espumar da mula ofegativa
que rasoiras bem fino têm talhado,
n’água onde os ratos hão afocinhado,
rãs e sapos e bichas perigosas,
lagarto e serpe e aves de tal costado,
sejam fritas as línguas mais maldosas.
Em sublimado ao toque só fatal,
e no umbigo de uma cobra viva,
em sangue seco em malga barbeiral
à lua cheia, vista que é nociva,
que ora é negro, ora verde mais que oliva,
em tumor, pús, e tanque emporcalhado
onde dessanguam amas sujo atado,
em lavagens de fêmeas amorosas
(quem não sabe, em bordéis não é versado)
sejam fritas as línguas mais maldosas.
Senhor, passai depois cada bocado,
se tamiz, saco ou filtro haveis falhado
pelo fundo de bragas pegajosas;
mas antes, dos suínos no cagado
sejam fritas as línguas mais maldosas.
.
Ballade
En rïagar, en alcenic rochier,
En orpiment, en salpestre et chaulx vive,
En plomb boullant pour mieulx les esmorcher,
En suye et poix destrempee de lessive
Faicte d’estrons et de pissat de Juisve,
En lavailles de jambes a meseaux,
En raclure de piez et vieulx houzeaux,
En sang d’aspic et drocques venimeuses,
En fïel de loups, de regnars et blereaux,
Soient frictes ces langues ennuyeuses!
En servelle de chat qui hait peschier,
Noir et si viel qu’il n’ait dent en gencyve,
D’un viel matin, qui vault bien aussi chier,
Tout enragié, en sa bave et sallive,
En l’escume d’une mulle poussive,
Detrenchée menue a bons cyseaulx,
En eaue ou ratz plungent groins et museaux,
Regnes, crappaulx et bestes dangereuses,
Serpens, laissars et telz nobles oiseaux,
Soient frictes ces langues ennuyeuses!
En sublimé, dangereux a toucher
Et ou nombril d’une couleuvre vive,
En sang c’on voit es poillectes sechier
Sur ces babriers, quant plaine lune arrive,
Dont l’un est noir, l’autre plus vert que cyve,
En chancre et fix et en ces ors cuveaulx
Ou nourrisses essangent leurs drappeaux,
En petits baings de fïlles amoureuses
— Qui ne m’entant n’ay suivy les bordeaux —
Soient frictes ces langues ennuyeuses!
Prince, passez tous ces frians morceaux,
S’estamine, sacz n’avez ne bluteaux,
Parmy le fons d’unes brayes breneuses,
Mais paravant en estronc de pourceaux
Soient frictes ces langues ennuyeuses!
– François Villon, em “Os testamentos de François Villon algumas baladas mais”. [tradução e organização Vasco da Graça Moura]. Edição bilíngue. Coleção Campo da Poesia. Porto: Campo das Letras, 1997.
§
Balada das damas do tempo antigo
Ora dizei-me em que país
Flora estará, bela romana,
Arquipiades ou Taís
que sua prima foi germana.
Eco a falar, quando um som plana
por rio ou lago, e que já tem o
dom de formosa mais que humana?
Mas onde estão neves de antanho?
Onde é mui sábia Heloís
por quem castrado e monge pena
Pedro Balerdo em S. Dinis?
Amor lhe deu provação plena.
E assim também onde é que reina
essa que a Buridan por banho
mandou deitar num saco ao Sena?
Mas onde estão neves de antanho?
Rainha Branca como um Lis,
voz que a sereia em canto irmana,
Berta pé-grande, Alis, Biatriz,
Aremburgis que foi menana,
e de Lorena a boa Joana
qu’ingrês em Ruão queimou no lenho.
Onde estão, Virgem Soberana?
Mas onde estão neves de antanho?
Senhor, cuidar de ano ou semana
onde elas são, não voz traz ganho,
nem meu refrão a vós engana:
Mas onde estão as neves de Antanho?
.
Ballades des dames du temps jadis
Dites-moi où, n’en quel pays,
Est Flora la belle Romaine,
Archipiades, ne Thaïs,
Qui fut sa cousine germaine,
Echo, parlant quant bruit on mène
Dessus rivière ou sur étang,
Qui beauté eut trop plus qu’humaine?
Mais où sont les neiges d’antan?
Où est la très sage Héloïs,
Pour qui fut châtré et puis moine
Pierre Esbaillart à Saint-Denis?
Pour son amour eut cette essoine.
Semblablement, où est la roine
Qui commanda que Buridan
Fût jeté en un sac en Seine?
Mais où sont les neiges d’antan?
La roine Blanche comme un lis
Qui chantait à voix de sirène,
Berthe au grand pied, Bietrix, Aliz,
Haramburgis qui tint le Maine,
Et Jeanne, la bonne Lorraine
Qu’Anglais brûlèrent à Rouen ;
Où sont-ils, où, Vierge souvraine?
Mais où sont les neiges d’antan?
Prince, n’enquerrez de semaine
Où elles sont, ni de cet an,
Que ce refrain ne vous remaine:
Mais où sont les neiges d’antan?
– François Villon, em “Os testamentos de François Villon algumas baladas mais”. [tradução e organização Vasco da Graça Moura]. Edição bilíngue. Coleção Campo da Poesia. Porto: Campo das Letras, 1997.
§
Villon em tradução de Modesto de Abreu
Balada das damas dos tempos idos
Dizei-me em que terra ou país
Está Flora, a bela romana;
Onde Arquipíada ou Taís,
que foi sua prima germana;
Eco, a imitar na água que mana
de rio ou lago, a voz que a aflora,
E de beleza sobre-humana?
Mas onde estais, neves de outrora?
E Heloísa, a mui sábia e infeliz
Pela qual foi enclausurado
Pedro Abelardo em São Denis,
por seu amor sacrificado?
Onde, igualmente, a soberana
Que a Buridan mandou pôr fora
Num saco ao Sena arremessado?
Mas onde estais, neves de outrora?
Branca, a rainha, mãe de Luís
Que com voz divina cantava;
Berta Pé-Grande, Alix, Beatriz
E a que no Maine dominava;
E a boa lorena Joana,
Queimada em Ruão? Nossa Senhora!
Onde estão, Virgem soberana?
Mas onde estais, neves de outrora?
Príncipe, vede, o caso é urgente:
Onde estão elas, vede-o agora;
Que este refrão guardeis em mente:
Onde estão as neves de outrora?
.
Ballade des dames du temps jadis
Dites-moi où, n’en quel pays,
Est Flora la belle Romaine,
Archipiades, ni Thais,
Qui fut sa cousine germaine,
Écho parlant quand bruit on mène
Dessus rivière ou sus étang,
Qui beauté eut trop plus qu’humaine.
Mais où sont les neiges d’antan ?
Où est la très sage Hélois,
Pour qui châtré fut et puis moine
Pierre Esbaillart à Saint Denis?
Pour son amour eut cette essoyne.
Semblablement où est la reine
Qui commanda que Buridan
Fut jeté en un sac en Seine?
Mais où sont les neiges d’antan?
La reine Blanche comme lys
Qui chantait à voix de sirène,
Berthe au grand pied, Bietris, Alis,
Haremburgis qui tint le Maine,
Et Jeanne la bonne Lorraine
Qu’Anglais brulèrent à Rouen ;
Où sont-ils, où, Vierge souv’raine?
Mais où sont les neiges d’antan?
Prince, n’enquerrez de semaine
Où elles sont, ni de cet an,
Qu’à ce refrain ne vous ramène:
Mais où sont les neiges d’antan?
– François Villon {tradução Modesto de Abreu}. em “Antologia de poetas franceses”. [organização R. Magalhães Jr.; vários tradutores]. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy Ltda Editora, 1950.
§
Villon em tradução de Ferreira Gullar
Balada das Coisas sem Importância
Conheço se há moscas no leite,
Conheço pela roupa o homem,
Conheço o tédio e o deleite,
Conheço a fartura e a fome,
Conheço a mulher pelo enfeite,
Conheço o princípio e o fim,
Conheço pela chama o azeite,
Conheço tudo, menos a mim.
Conheço o gibão pela gola,
Conheço o rico pelo anel,
Conheço o fiel pela sacola,
Conheço a monja pelo véu,
Conheço o porco pela tripa,
Conheço o irmão pelo latim,
Conheço o vinho pela pipa,
Conheço tudo, menos a mim.
Conheço a mula e o cavalo,
Conheço o carro e a carreta,
Conheço a galinha e o galo,
Conheço o sino e a sineta,
Conheço a flor pelo talo,
Conheço Abel e Caim,
Conheço o pote e o gargalo,
Conheço tudo, menos a mim.
Ofertório
Príncipe, conheço tudo em suma,
Conheço o branco e o carmim,
E a morte que o fim consuma.
Conheço tudo, menos a mim.
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Ballade des menus propos
Je congnois bien mouches en laict;
Je congnois à la robe l’homme;
Je congnois le beau temps du lait;
Je congnois au pommier la pomme;
Je congnois l’arbre à veoir la gomme;
Je congnois quant tout est de mesmes;
Je congnois qui besoigne ou chomme;
Je congnois tout fors que moy mesmes.
Je congnois pourpoint au collet;
Je congnois le moyne à la gonne;
Je congnois le maistre au varlet;
Je congnois au voile la nonne;
Je congnois quant pipeur jargonne;
Je congnois fols nourris de cresmes;
Je congnois le vin à la tonne;
Je congnois tout fors que moy mesmes.
Je congnois cheval et mulet;
Je congnois leur charge et leur somme;
Je congnois Bietrix et Bellet;
Je congnois get qui nombre et somme;
Je congnois visïon et somme;
Je congnois la faulte des Boesmes;
Je congnois le pouoir de Romme;
Je congnois tout fors que moy mesmes.
Envoi
Prince, je congnois tout en somme;
Je congnois coulores et blesmes;
Je congnois Mort qui nout consomme;
Je congnois tout fors que moy mesmes.
– François Villon, em “O prazer do poema: uma antologia pessoal”. [organização e tradução Ferreira Gullar]. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.
§
BREVE BIOGRAFIA DE FRANÇOIS VILLON
François Villon (1431-1463) nascido com a maior probabilidade em Paris, em 1431, terá sido, de seu nome, François de Montcorbier, como figura nos livros de matrícula da Universidade de Paris, onde se formou em 1452. O apelido Villon, por que veio a ficar conhecido ainda em seu tempo, seria o do seu presumível parente e protector, Guillaume de Villon, eclesiástico e professor, em casa de quem viveu quando estudante. Muito popular como poeta e como homem, Villon teve muitas vezes as boas graças dos grandes (como o admirável poeta e grande senhor o duque Charles de Orléans) que o protegeram das consequências dos seus desatinos. Preso e condenado várias vezes por assaltos e roubos, por chefe de um bando de escolares marginais, por assassino, Villon conheceu as prisões e a tortura da justiça do seu tempo, e, em 1462, foi preso, que se saiba, uma última vez, e condenado à morte por culpas acumuladas. Foi quando terá escrito a terrível Balada dos Enforcados como seu próprio epitáfio, um dos maiores monumentos de sentimento poético e de humor negro da poesia universal. A sentença foi comutada em dez anos de banimento, nos primeiros dias de 1463, e, dessa data em diante, Villon desapareceu sem deixar outro rasto que a sua magnificente obra poética onde há de tudo, desde o mais completo desbragamento moral à mais aguda consciência do destino humano, desde a mais grosseira linguagem (por vezes em gíria cuja interpretação levanta enormes problemas) à mais refinada utilização de todas as tradições literárias que convergiam na sua cultura, desde o mais rude ou gracioso humor às mais subtis gradações de um pensamento muito mais profundo do que habitualmente se reconhece, ao meditar sobre a decadência física, sobre a angústia do tempo perdido. Se as suas formas poéticas têm muito da tradição medieval, nelas palpita todavia uma forma vital, um sentido da pessoa humana, um gosto indómito de ser-se Villon com o bem e o mal, que são indubitàvelmente a expressão de uma consciência renascentista. De 1489 até aos meados do século XVI a sua obra conheceu numerosas edições. Os homens da Pléiade, com o seu neo-classicismo maneirista, e depois o preciosismo e a organização do classicismo barroco, lançaram sobre Villon um desdenhoso descaso que só no século XVIII, ao iniciar-se uma curiosidade pelo medievalismo, se desfez, permitindo a sua restituição à história da poesia francesa, de que, hoje, embora não sirva de exemplo de santa e virtuosa vida, é um dos mais gloriosos poetas.
Fonte: Ler Jorge de Sena/Letras UFRJ
FRANÇOIS VILLON EM PORTUGUÊS
:: Poemas de François Villon. [tradução e organização de Péricles Eugênio da Silva Ramos]. Edição bilíngue. São Paulo: Art Editora, 1986.
:: Testamento (Le testament). François Villon. [tradução Afonso Felix de Souza]. Belo Horizonte: Itatiaia/Rio Arte, 1987.
:: Poesia de François Villon. [tradução, organização e notas de Sebastião Uchôa Leite]. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988; São Paulo: Editora Edusp, 2000.
:: Os testamentos de François Villon algumas baladas mais. [tradução e organização Vasco da Graça Moura]. Edição bilíngue. Coleção Campo da Poesia. Porto: Campo das Letras, 1997.
:: Balada dos enforcados e outros poemas. [tradução e organização de Péricles Eugênio da Silva Ramos]. São Paulo: Hedra, 2008.
Antologias (participação)
:: Antologia de poetas franceses. [organização R. Magalhães Jr.; vários tradutores]. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy Ltda Editora, 1950.
:: Poetas de França. [tradução e organização Guilherme de Almeida]. São Paulo: Editora Nacional, 1965.
:: Poesia completa e traduzida. Mário Faustino. [organização, introdução e notas de Benedito Nunes]. São Paulo: Editora Max Limonad, 1985. (‘Balada em francês antigo’, François Villon).
Mais sobre Villon
BASTOS, Gustavo. François Villon, o primeiro dos poetas malditos. in: Século Diário, 16, 23 e 30.7.2016. (parte – I; parte II; parte III). acessado em 12.8.2016).
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