“Tudo é questão de despertar sua alma.”
– Gabriel Garcia Márquez, em “Cem anos de solidão”.
Sob um temporal extraviado, em 6 de março de 1927, nasceu Gabriel José García Márquez.
Autor de obras clássicas como Cem Anos de Solidão, O Amor nos Tempos do Cólera, Ninguém Escreve ao Coronel, O Outono do Patriarca e Crônica de uma Morte Anunciada, foi o criador de um território sempre eterno e maravilhoso chamado Macondo.
Nasceu na caribenha Aracataca, uma aldeia colombiana, em um domingo romanceável, e a partir daí o menino viveria uma infância à qual voltou muitas vezes e que o transformou em um dos grandes escritores de todos os tempos. Começou a escrever ficção em 1947, com o conto A Terceira Resignação; a glória chegou em 1967, com Cem Anos de Solidão, e sua confirmação em 1982, com o Nobel de Literatura. Um escritor que criou um universo e uma linguagem próprios, ampliando os limites da literatura; um jornalista que amava sua profissão, mas odiava as perguntas; uma pessoa que adorava os silêncios, e com um encanto que cativou intelectuais e políticos de várias gerações e enfeitiçou milhões de leitores em todo o mundo e de toda origem.
Gabriel não era pra ser o seu nome. Iria se chamar Olegario. Acabavam de badalar os sinos dominicais da missa das nove quando os gritos da tia Francisca abriram caminho, entre o ruído do aguaceiro, pelo corredor das begônias:
“Menino! Menino! [Tragam] rum, que está se afogando!” E novos alaridos envolveram a casa. Uma vez libertado do cordão umbilical enrolado no pescoço, as mulheres correram para batizar o menino com água benta. A primeira coisa que lhes veio à cabeça foi chamá-lo de Gabriel, pelo pai, e José, por ser o patrono de Aracataca. Ninguém tinha à mão o santoral. Do contrário, pelo santo do dia, teria se chamado Olegário García Márquez.
Naquele domingo, 6 de março de 1927, Aracataca celebrou a chegada do primogênito de Luisa Santiaga e Gabriel Eligio. Foi o mais velho de 11 irmãos, sete homens e quatro mulheres. Embora na realidade, para os cataqueros, havia nascido o neto de Tranquilina Iguarán Cotes e do coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía, os avós maternos com quem se criou até os oito anos em uma terra coberta de bananais, sob sóis impiedosos do Caribe colombiano.
Foi um menino em um casarão de mulheres, amordaçado pelas crenças da avó no além-túmulo e as recordações de guerras do avô. Oito anos de vivências que o tornaram universal em 1967, quando publicou Cem anos de Solidão, seu romance mais famoso. Mas ele acreditava que a história que poupará seu nome do esquecimento é a de seus pais, recriada em O Amor nos Tempos do Cólera.
Essas são as vésperas da sua vida.
A história onde tudo começa. A dos felizes amores contrariados. Amor e amores desejados, esquivos e buscados em seus contos e romances.
Foi um dos escritores mais admirados e traduzidos: mais de 40 milhões de livros vendidos em 36 idiomas.
García Márquez, conhecido como Gabo por seus amigos, começa como jornalista no diário El Universal, de Cartagena, em 1948; continua no El Heraldo, de Barranquilla, e depois no El Espectador, de Bogotá. Ryszard Kapuscinski afirmou que, apesar de admirá-lo por seus romances, considerava que “sua grandeza reside em suas reportagens. Seus romances provêm de seus textos jornalísticos. É um clássico da reportagem com dimensões panorâmicas, que procura mostrar e descrever os grandes campos da vida e dos acontecimentos. Seu grande mérito consiste em demonstrar que a grande reportagem é também grande literatura”.
Enquanto trabalha como jornalista, escreve contos e não desgruda de um romance em andamento, um calhamaço que leva a todas as partes, intitulado A Casa. Em 1954, escreve no El Espectador a famosa reportagem Relato de um Náufrago, publicada em capítulos. No ano seguinte publica o seu primeiro romance, A Revoada (O Enterro do Diabo). Depois, viaja à Europa como correspondente desse diário de Bogotá e percorre o continente, inclusive os países da “cortina de ferro”. Até que se instala em 1961 na Cidade do México, onde se estabelece com seus amigos, os casais Álvaro Mutis-Carmen Miracle e Jomí García Ascot-María Luisa Elío (dois espanhóis exilados da guerra). Um dia, Mutis lhe dá dois livros: “Leia esse troço para aprender como se escreve”. Eram Pedro Páramo e Chão em Chamas, de Juan Rulfo. Nesse mesmo ano, em Paris, enquanto espera seus pagamentos e em meio a apuros econômicos, evoca em suas lembranças as vivências do seu avô e produz Ninguém Escreve ao Coronel.
“Foi a sua avó quem lhe permitiu descobrir que seria escritor?”, lhe perguntou nos anos 70 seu amigo e colega Plinio Apuleyo Mendoza.
“Não, foi Kafka, que, em alemão, contava as coisas da mesma maneira que a minha avó. Quando li aos 17 anos A Metamorfose descobri que seria escritor. Ao ver que Gregor Samsa podia despertar certa manhã transformado em um gigantesco escaravelho, eu disse para mim mesmo: ‘Eu não sabia que era possível fazer isto. Mas se é assim, escrever me interessa’.”
Macondo é o território literário onde transcorre grande parte de sua criação. Aparece pela primeira vez no conto Monólogo de Isabel Vendo Chover em Macondo, de 1955. Mas a fama e o prestígio chegam com Cem Anos de Solidão, em 1967. Rapidamente o romance se torna um clássico lido e querido pelos leitores, com um dos começos literários mais maravilhosos, recordados e recitados de memória: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”.
Aquele dia de maio de 1967 em que o romance saiu em Buenos Aires foi o resultado de quatro anos de seca literária e de trabalhar como roteirista de cinema e em publicidade. O embrião é A Casa. Páginas que não terminam de ganhar forma, até que um dia, enquanto García Márquez viaja num Opel branco com sua esposa e dois filhos para férias em Acapulco, vê com clareza como deveria escrever a obra: transcorreria em uma aldeia; e descobre o tom: o de sua avó, que contava coisas prodigiosas com expressão impassível; e as histórias: muitas das contadas por seu avô na Guerra dos Mil Dias, travada na Colômbia (1899-1902). Então dá meia-volta e regressa no Opel branco para sua casa de San Ángel Inn, na Cidade do México. Foi o sopro divino, dos anos de leitura e paixão, dado por Kafka, Faulkner, Sherazade, Rulfo, Verne, Woolf, Hemingway, Homero… e seus avós Tranquilina e Nicolás.
Assim que chega, pega suas economias – 5.000 dólares – e as entrega à mulher para a manutenção da casa enquanto se dedica a escrever. “A Cova da Máfia” é o cômodo da sua casa onde, na primavera de 1965, se exila com a enciclopédia britânica, livros de todo tipo, papel e uma máquina de escrever Olivetti. Vive e desfruta desse arroubo de inspiração escrevendo até as oito e meia da noite ao ritmo dos Prelúdios, de Debussy, e A Hard Day’s Night, dos Beatles.
A redação avança, e em setembro ele conta a sinopse do romance a María Luisa Elío. Por seu entusiasmo a transforma em sua cúmplice, de tal maneira que a ela e ao marido dedicaria o romance. Os casais García-Elío e Mutis-Miracle, que o visitam quase todas as noites, vivem a evolução do romance enquanto ele os consulta sobre todo tipo de coisa.
No outono boreal de 1965, o dinheiro acaba e as dívidas rondam. García Márquez pega então o Opel branco e vai até o Montepio para penhorá-lo. É uma nova tranquilidade para continuar escrevendo, aumentada pelas visitas de seus amigos, que aparecem na casa com compras de mercado.
Com a chegada do inverno, o ritmo da narrativa leva à morte o coronel Aureliano Buendía, depois de ter se salvado de um pelotão de fuzilamento, participado de 32 guerras, tido 17 filhos com 17 mulheres e terminado seus dias fazendo peixinhos de ouro. Ele passa seus últimos minutos na terra urinando junto à castanheira, enquanto busca a lembrança da chegada do circo, e com a testa apoiada na árvore enquanto ao seu redor revoam as formigas aladas.
Põe o ponto final e se entrega ao pranto. Era o personagem inspirado no seu avô Nicolás, com quem viveu até os 8 anos e com quem havia descoberto as guerras e um dicionário enorme na casa. E chora, chora como nem sequer em suas obras está escrito. Tinha 39 anos Gabriel García Márquez quando, nessa manhã de 1966, saiu da Cova da Máfia, atravessou a casa e se derramou em lágrimas sobre a cama matrimonial, como um menino órfão. Sua mulher, Mercedes Barcha, ao vê-lo tão desamparado, soube do que se tratava: o coronel Aureliano Buendía acabava de morrer.
O escritor, em 5 de junho de 1967, o vê recompensando ao saber que essa história comandada pelo coronel, sob o título de Cem Anos de Solidão, inicia sua universal festa literária em Buenos Aires, na editora Sudamericana, dirigida por Francisco Porrúa. Todos querem conhecer a saga dos Buendía em Macondo, essa terra onde realidade, ficção, o além e a imaginação encontraram a alquimia da convivência para contar a Vida. “Sua situação é paradoxal quanto à história de Macondo –que dura cem anos: atravessa todas as idades da Terra, desde a pré-história até o Apocalipse. História e mito se entrelaçam, e o paradoxal se enche de valor paradigmático”, explicou Marta L. Canfiel, da Universidade de Nápoles.
Essa obra dá impulso à universalização do boom do romance latino-americano. “Verdadeiramente, foi a partir do triunfo escandalosamente sem precedentes de Cem Anos de Solidão”, afirmaria José Donoso em História Pessoal do Boom.
Em meio à algaravia, García Márquez vai morar em Barcelona, onde consolida a amizade com autores como Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar. O sucesso é retumbante, e transborda para outros idiomas. Depois passa a escrever para esquecer o que escreveu, a começar por O Outono do Patriarca (1975), um exercício para sair da sombra de Cem Anos de Solidão. Na época já é muito ativo em relação à causa cubana e está mais presente na Colômbia. Em 1981 publica Crônica de Uma Morte Anunciada.
Em 1982 recebe o Nobel. Está no México e de madrugada lhe anunciam o prêmio. Com 55 anos, se transforma em um dos escritores mais jovens a receber a honraria máxima da literatura. Em dezembro, rompe com a tradição ao receber o prêmio vestido de liquiliqui [traje típico da Colômbia] e pronunciar um dos mais lembrados discursos de aceitação, Brinde à Poesia (também conhecido como A Solidão da América Latina). Um aceno aos seus primeiros passos no terreno da literatura:
“Em cada linha que escrevo procuro sempre, com maior ou menor sorte, invocar os espíritos esquivos da poesia, e procuro deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção por suas virtudes de adivinhação, e por sua permanente vitória contra os surdos poderes da morte.”
Três anos depois, conclui a história de amor de seus pais (Gabriel Eligio e Luisa Santiaga), O Amor nos Tempos do Cólera, seu livro favorito e pelo qual acreditava que seria lembrado. Depois publicaria ainda O General em seu Labirinto (1989) e Do Amor e Outros Demônios (1994).
Em 1994 realiza um de seus sonhos, em Cartagena de Indias: a criação da Fundação para o Novo Jornalismo Ibero-Americano. São os anos de seu retorno ao jornalismo. Ao princípio de tudo. Participa na Colômbia como sócio do novo telejornal QAP e anos mais tarde adquire os direitos para seu país da revista espanhola Cambio 16.
Em 1999, em meio ao fragor jornalístico, recebe o diagnóstico de um câncer linfático. Tudo isso enquanto termina de escrever suas memórias, Viver para Contar. Quando pôs o ponto final, se deparou com a morte da mãe. Num domingo ela o trouxe ao mundo; e num domingo ela o deixou. Foi na noite de 9 de junho de 2002, fechando-se assim outro ciclo na vida de um dos escritores contemporâneos mais admirados e traduzidos no mundo, mais de 40 milhões de livros vendidos em mais de 30 idiomas.
Treze anos havia levado o Nobel colombiano para chegar a esse ponto final do primeiro volume de suas memórias. Treze anos nos quais havia repassado suas recordações enquanto escrevia mais livros, voltava ao jornalismo e lhe acontecia de tudo, inclusive manter sob controle o câncer linfático. E quando o destino pressagiava uma festa do interior pelo encontro literário entre os García Márquez e os moradores de Macondo nessas memórias, este voltou a se desviar com o falecimento de Luisa Santiaga Márquez Iguarán.
Uma morte que cobre de luto, outra vez, a vida de Gabo. Sua mãe passava a fazer parte da presença das grandes ausências, junto com o pai dela, Nicolás Ricardo Márquez Mejía, avô do escritor. Uma ausência que o acompanhou desde os dez anos e que deixou incompletas todas as suas alegrias posteriores, “pelo simples fato de que o avô não soube delas”, escreve Dasso Saldívar na biografia Viaje a la Semilla.
A ele deve em grande parte o fato de ter se tornado o discípulo mais extraordinário de Melquíades –o homem a quem deu vida para que profetizasse com um século de antecedência o destino de Macondo em Cem Anos de Solidão.
Uma vida, uma tristeza, uma alegria, um futuro que tiveram um momento embrionário em 1950, quando, estando em Barranquilla, sua mãe lhe pediu que a acompanhasse na venda da casa dos avós em Aracataca. Uma viagem que foi “a decisão mais importante de quantas tive de tomar em minha carreira de escritor. Quer dizer: em toda a minha vida”. Lá cristalizou o gênio que viria a ser. Foi seu vagalume na memória e no seu território criativo, o qual atraiu muitos outros, que foram acendendo seu mundo literário pouco a pouco, em contos de enredos simples, com uma voz convincente e magistral.
Com ele a literatura ampliou seus limites. Abriu trilhas maravilhosas.
E, se não fosse escritor, o que Gabriel García Márquez gostaria realmente de ter sido também tem a ver com o amor, presente em todas as suas obras. Ele soube disso há muito tempo, em Zurique, quanto uma tempestade de neve digna de Tolstói o levou a se refugiar em um bar. Seu irmão Eligio recordaria como Gabo lhe contou o fato:
“Tudo estava na penumbra, um homem tocava piano na sombra, e os poucos clientes que havia eram casais de namorados. Nessa tarde soube que, se não fosse escritor, gostaria de ter sido o homem que tocava piano sem que ninguém lhe visse o rosto, só para que os namorados se amassem mais.”
Entre realidades, desejos, sonhos, alegrias, agradecimentos e, sobretudo, imaginações, Gabriel García Márquez está agora no mesmo lugar aonde ele levou Esteban no seu inesquecível conto O Afogado Mais Bonito do Mundo, depois que nas pessoas da aldeia “se abriram as primeiras fendas de lágrimas no coração”… Uma vez comprovado que estava morto, “não tiveram necessidade de se olharem uns aos outros para perceberem que já não estavam completos nem voltariam a estar jamais”… O rumor do mar traz a voz do capitão daquele barco que em catorze idiomas diz, apontando para o mundo, por cima do promontório de rosas amarelas no horizonte do Caribe: “Olhem para lá, onde o vento está agora tão manso que se põe a dormir debaixo das camas; lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para onde girar; sim, lá fica a aldeia de Gabriel García Márquez”.
Faleceu em 17 de abril de 2014, aos 87 anos.
Livros/obra:
García Márquez vendeu mais de 40 milhões de exemplares em mais de 30 idiomas.
Romances:
A Revoada (O Enterro do Diabo). (1955),
Ninguém Escreve ao Coronel (1957),
Má Hora (O Veneno da Madrugada). (1961),
Cem Anos de Solidão (1967),
O Outono do Patriarca (1975),
Crônica de uma Morte Anunciada (1981),
O Amor nos Tempos do Cólera (1985),
O General em seu Labirinto (1989),
Do Amor e Outros Demônios (1994),
Memórias de Minhas Putas Tristes (2004).
Grandes reportagens:
Relato de Um Náufrago (1970),
Noticia de Um Sequestro (1996),
Obra Jornalística Completa (1999).
Memórias (primeiro volume):
Viver Para Contar (2002).
Contos:
Olhos de Cão Azul (1955),
Os Funerais da Mamãe Grande (1962),
A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada (1972),
Doze Contos Peregrinos (1992).
*A obra de Gabriel García Márquez é publicada no Brasil pela Editora Record. Aqui!
Fotogaleria
Gabo, escritor e jornalista – As imagens da intensa carreira profissional como repórter, professor de jornalistas e escritor ganhador do Nobel. Acesse Aqui!
Fonte: (por Winston Manrique Sabogal – El País |Editado pela Revista Prosa Verso e Arte)
**Mais sobre Gabriel García Marques e sua obra. AQUI!