O Grande Silêncio* é o nome de um documentário de 160 minutos, lançado em 2005, que retrata a vida da comunidade dos monges cartuxos em Isère, França, produzido por Phillipe Gröning. É uma meditação silenciosa sobre a vida monástica. Sem música à exceção dos cânticos do mosteiro, sem entrevistas ou quaisquer comentários. Evoca a passagem do tempo, das estações, o dia dos monges e as orações. É um filme sobre a presença do absoluto na vida de homens que dedicam a sua existência a Deus, no grande silêncio. O próprio cineasta diz que saiu mudado depois dos seis meses vividos no mosteiro. Que acontece quando mergulhamos no silêncio? O que muda em nós?
O silêncio como experiência e lugar de encontro é algo de revolucionário, e nunca reacionário. É preciso silenciar para ouvir. É preciso silenciar para recuperar a saúde física e mental. O mundo anda doente, pois vive um exagero de decibéis que ensurdecem e atordoam. Apatia ou resignação são os sinais da alienação de onde estamos e de quem somos. Isso tudo é fruto do barulho e da dispersão. A pessoa silenciosa ou taciturna é alguém que está além ou aquém das palavras. Tem um fio de prumo sobre sua cabeça. É alguém que vive em paz e transmite paz em palavras e atitudes. Dizem os árabes em um famoso ditado: “não abra a boca se o que tens a dizer não for mais belo que o silêncio”. Essa é a mesma percepção de São Bento ao afirmar em sua Regra aos monges que: “… raras vezes se deve conceder, até aos discípulos mais perfeitos, licença para entreterem conversações, embora sobre assuntos bons, santos e edificantes, tão importante é o silêncio; porquanto está escrito: Falando muito não evitarás o pecado (Pr 10,19). E em outro lugar: A morte e a vida estão em poder da língua (Pr 18,21) (Regra de São Bento, capítulo VI, O espírito de Silêncio)”.
Se lembrarmos das vidas de quatro personagens das religiões, vemos que se apresentaram como homens de Deus vivenciando largos momentos de fecundo silêncio e se puseram a falar o que lhes fora revelado no silêncio. Do judaísmo, Moisés e profetas como Oséias ou Elias fizeram a experiência do silêncio. No mundo islâmico, o profeta Muhammad nas grutas da Arábia Saudita ouve a fala do arcanjo Gabriel. No budismo os mestres espirituais, das escolas da China e do zen-budismo japonês encontraram o caminho da sabedoria. O próprio Jesus Cristo, filho de Deus Altíssimo é um primoroso exemplo de quem soube viver o silêncio em frequentes, longas e profundas experiências de oração, como descritas pelos evangelistas (Lc 6,12; Mt 14,23; Mc 1,35; Jo 17).
O silêncio está vinculado à proximidade do mistério e da intimidade com Deus. As coisas mais íntimas são sempre pronunciadas aos sussurros e murmúrios. Talvez seja por essa razão que o salmista diga na versão hebraica: “O louvor, para Vós, ó Deus, é silêncio (Salmo 65,2)”. A louvação mais alta e mais verdadeira acontece quando suprimimos ou esgotamos as palavras. Penetramos o vasto universo do recolhimento interior e da contemplação de tudo o que existe. Nesse lugar e espaço de silêncio é que o Espírito pode fazer ressoar a Palavra Eterna e nos despertar de um sono que nos dispersava ou escondia nossa essência interior e a conexão com Deus.
Um caminho promissor que se abre, depois de um grande silêncio, é o caminho da oração. O monge João Cassiano (360-435) afirma de maneira sucinta: “é perfeita oração aquela onde o que está orando não se lembra de que orando está” ou ainda que a boa oração seja breve e silenciosa e manifeste-se por uma tensão ardente da alma, por um transbordar inefável do coração e por um entusiasmo insaciável do espírito (João Cassiano, Da oração, Vozes, 2008, p. 97). A prece cristã é um movimento interior que se realiza em etapas sucessivas e complementares: em um primeiro momento é sempre uma inspiração advinda do coração e da vida. Depois se torna respiração e conexão com a transcendência feita em um exercício leve e ao mesmo tempo vigoroso. Depois vem a transpiração e a expiração em que nos apresentamos para Deus com nossos anseios, dificuldades, necessidades e palavras para enfim atingirmos o ápice do caminho que é a surpresa que emudece e extasia. Nesse momento ouvimos as melodias celestes e os sons inefáveis que plenificam e reverberam em nosso coração e em nossa vida.
A oração cristã parte e nos leva ao silêncio. Santo Agostinho dizia que a oração é puro silêncio (Santo Agostinho, O Mestre XII, 39). Não é posse de Deus, mas um estar em Cristo para viver no seu Espírito e segundo as suas palavras. A oração cristã é a fé que fala. Não é um estar em si somente, embora necessite de um momento introspectivo. Não é um estilo meditativo, ainda que não se realize sem um caráter reflexivo e atento aos sinais que nos chegam pelos sentidos e pelo corpo. Não é só intelectual e cerebral, ainda que não possamos dizer que se reduza ao irracional ou inconsciente. Passa por momentos de duvidas e de incertezas, vividos como aridez e ausência de iluminação. É necessário que aconteça a abertura para a fidelidade que confia na esperança. E esse portal pessoal poderá abrir-nos ao Outro, aos outros e à natureza.
O silêncio é um estado de espírito bem como uma profunda atividade de amor. Caminhar de forma progressiva na escola do silêncio pede que estejamos sintonizados com Deus e sua revelação. Esse percurso é difícil, mas realizável. Foi chamado pelos místicos como o ascetismo do silêncio. Existem obstáculos no caminho que devem ser identificados. Estão fora e dentro de cada um de nós. Os obstáculos externos são aqueles superficiais que nos desviam do reto caminho. São como ruídos que prejudicam o foco e a comunicação verdadeira. Distraem e enervam, levando-nos ao estresse ou à repressão de medos e fantasmas. Exigem um olhar arguto e persistência mesmo depois de quedas. Os internos são aqueles obscuros e muitas vezes desconhecidos. É preciso contar com a graça de Deus para enfrentá-los e resistir. Exigem conversão e misericórdia, pois o silêncio interior favorece a comunicação e sua identidade veraz. Vencidos os obstáculos podemos penetrar em um estado agudo de felicidade, tal como o silêncio foi definido por Clarice Lispector. Dizia a poetisa* (escritora): “Há um silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras”.
A Igreja cristã sempre cultivou o silêncio e faz recomendações constantes para que cuidemos dele em nossas celebrações e na vida cotidiana de nossos fieis. Assim a introdução geral da Liturgia das Horas proposta pelo Papa Paulo VI, em 01/11/1970 orienta que: “Nas ações litúrgicas deve-se procurar em geral que se guarde também, há seu tempo, um silêncio sagrado (SC 30); por isso, haja ocasião de silêncio também na celebração da Liturgia das Horas. Por conseguinte, se parecer oportuno e prudente, para facilitar a plena ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e unir mais estreitamente a oração pessoal com a Palavra de Deus e com a voz pública da Igreja, pode-se intercalar uma pausa de silêncio, após cada salmo, depois de repetida sua antífona, de acordo com antiga tradição, sobretudo se depois do silêncio se acrescentar a coleta do salmo; ou também após as leituras tanto breves como longas, antes ou depois do responsório (Liturgia das Horas, CNBB, 1984, n. 201 e 202, p.56)”.
O silêncio sempre foi muito apreciado pelos monges cenobitas ou pelos anacoretas (eremitas), não porque tivesse valor em si mesmo, mas porque permite uma abertura para a plenitude que se esconde por detrás das palavras. O silêncio amado e buscado pelos monges e pelos místicos é feito de preparação e de expectativa. É um reconhecimento explícito de que somos incapazes de falar sobre o que é fundamental ou dramático. O povo simples sempre diz quando está diante de uma grande felicidade ou diante de uma grande perda ou fraqueza: não tenho palavras para explicar ou dizer. Quando alguém fala de algo que mudou sua vida fala das espumas, mas nunca das correntes submarinas. Fala do que sentiu, mas pouco pode dizer do que de fato viveu. O não dito é muito mais poderoso que a palavra. Assim quando precisamos estar com alguém que tem uma grande dor, as palavras desvanecem e se atrofiam. O melhor é calar para compreender. O silêncio, nestes momentos, exprime melhor a adoração, o abandono e o fascinante que cada ser humano busca ardentemente. E nesta “noite do Espírito”, que é hora de amor, decisiva e irrevogável, perceberemos que não fomos nem seremos abandonados. Descobriremos que “depois da hora do meu amor, envolta no Vosso silêncio, chegará o dia do Vosso amor, a visão beatífica. Por consequência, agora que não sei quando chegará a minha hora, nem sequer se ela já começou, preciso esperar no limiar do Vosso santuário e do meu; preciso libertar este lugar dos ruídos do mundo (Karl Rahner, Apelos ao Deus do silêncio, Lisboa: Ed. Paulistas, 1968, p. 40)”.
Em todos os povos e culturas o tema do silêncio como porta para Deus, se fez presente. O poeta, músico e filosofo indiano Rabindranath Tagore (1861-1941), ganhador do prêmio Nobel da literatura em 1913, tornou-se mundialmente famoso por seu livro Oferenda Lírica. Nele temos um belo poema sobre o silêncio que preenche o coração:
Se não falas
Se não falas, vou encher o meu coração
com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
em sua vigília estrelada, com a cabeça pacientemente inclinada.
A manhã certamente virá,
a escuridão se dissipará, e a tua voz
se derramará em torrentes douradas por todo o céu.
Então as tuas palavras voarão
em canções de cada ninho dos meus pássaros
e as tuas melodias brotarão
em flores por todos os recantos da minha floresta
– Rabindranath Tagore (Gitanjali, Paulus, 1991, p. 19)”.
Os monges do Oriente propuseram um caminho de oração fascinante chamado de hesicasmo, que é um estado de silêncio orante. O hesicasta é alguém que vive um estado de silêncio interior acompanhado pela memória constante de Deus. Isso exigirá uma qualidade fundamental que é a pureza de coração (Como água na fonte, Monges beneditinos camaldolenses, Loyola, 2009, p.187). Um dos maiores místicos da Igreja grega, São Simeão, o novo teólogo (949-1022) do mosteiro de Mamas, recomendava: “Sente-se sozinho e em silêncio. Incline a cabeça, feche os olhos, respire suavemente e imagine que está olhando para dentro do seu coração. Faça sua mente, ou seja, seus pensamentos, passar da sua cabeça ao seu coração. Respire e diga: Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! Pronuncie essas palavras em voz baixa, movendo suavemente os lábios, ou pronuncie-as, simplesmente, em espírito. Tente afastar todos os outros pensamentos. Esteja tranquilo, seja paciente e repita essa frase tanto quanto puder (Relatos de um peregrino russo, Vozes, 2008, p. 42)”.
Uma religiosa carmelita de Paris, irmã Maria-Amada de Jesus (1839-1874), compreendeu claramente o papel central que o silêncio interior deve exercer em nossas vidas para a vida feliz e íntegra. Ela dizia que a vida interior pode ser resumida em uma só palavra: silêncio! E ainda falar pouco às criaturas e muito a Deus, pois o silêncio com Ele é um silêncio da eternidade, da plena união da alma com Deus. Ela divide os degraus dessa subida espiritual em doze, que podem ser comparados aos dozes graus de humildade da regra de São Bento.
Aqui estão esses passos pedagógicos de uma vida silenciosa:
1. Silêncio das palavras;
2. Silêncio de movimentos ou ações;
3. Silêncio da imaginação;
4. Silêncio da memória;
5. Silêncio diante das criaturas;
6. Silêncio do coração e dos sentimentos;
7. Silêncio da humildade ou do amor-próprio;
8. Silêncio da inteligência;
9. Silêncio do julgamento;
10. Silêncio da vontade;
11. Silêncio consigo mesmo;
12. Silêncio com Deus!
Cultivando o grande silêncio ouviremos o vento tocando rochedos, o mar atingindo a praia, pássaros cantando maviosas melodias, crianças balbuciando, amigos celebrando, pobres pedindo amor, doentes sofrendo, florestas crescendo e, sobretudo seremos capazes de auscultar a voz interior proclamando que o amor de Deus existe em nós, suave e inefável. Na voz da monja Maria-Amada de Jesus, poderemos então dizer: “Eu sou semelhante a um pequeno grão de areia, que espera na praia a onda que o fará mergulhar no oceano”.
Fonte: Texto originalmente publicado na revista “O Mensageiro de Santo Antonio” – jan/fev. 2012, dos frades franciscanos conventuais de Santo André.
O FILME
O Grande Silêncio*
Título original: Die Grosse Stille
Diretor: Philip Gröning
Nacionalidade: França/Suíça/Alemanha, 2005.
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“Quando se aquietam os lábios, mil línguas ferem o coração”
– Rûmî
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