“A felicidade era um lugar estranho. Lá, os meninos, após a chuva, comiam o arco -íris e saíam coloridos pela rua jogando futebol. O futuro era decidido no par ou ímpar, e o passado simplesmente não existia.”
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Uma noite dessas estava na rua quando os céus resolveram dar banho nos pés da cidade de Taboão da Serra. Confesso que há muito não reparava a beleza da chuva. Lógico que também conheço seus efeitos colaterais e não sou tão poeta a ponto de esquecer seus estragos, mas hoje, com os olhos úmidos dessa lembrança, queria falar de uma outra chuva, a que não afoga as lembranças.
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Uma das coisas mais bacanas da infância era tomar banho de chuva na rua.
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O futebol rolando… Os nossos corpos miúdos abençoados pelo suor da vida, um coração pequeno sambando dentro do peito e, de repente, como uma bênção dos deuses, a chuva vinha e varria todas as impurezas da nossa realidade. (Atenção: se você fechar os olhos aos poucos, é bem capaz que você ainda consiga sentir o perfume de terra molhada.)Corríamos como loucos de um lado para o outro, gritando palavras desconexas e tentando engolir toda a água para o céu de nossa boca.
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De braços abertos, ríamos como anjos embriagados e afrontávamos a tristeza, que frequentemente insistia em nos visitar.
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Com a alma lavada, ainda sob o efeito da vida plena, perseguíamos o arco -íris, não atrás do tal pote de ouro – o ouro já era nossa própria alegria
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–, mas para contemplar suas cores.
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Na minha tribo de guerreiros da chuva, a maioria tinha olhos pretos e castanhos e, apesar do futuro em preto e branco, víamos tudo colorido.
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Enquanto eu lembrava desse tempo de moleque do arrabalde, a chuva foi parando, e, como era noite, ainda pude ver as luzes distorcidas refletidas no asfalto molhado.
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Vi também as goteiras que rolavam das calhas das casas, que mais pareciam lágrimas quando estão prestes a secar. Será que as calhas choram o fim da inocência?
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Depois de crescido, já me molhei várias vezes (praguejei todas elas), mas nunca mais tomei banho de chuva. Nunca mais com aquela mesma alegria.
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Nunca mais com aquela mesma sede de viver, e como se nunca mais houvesse outro dia.
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Acho que depois que a gente cresce a gente fica pequeno.
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Hoje, com o coração árido, só consigo cuspir raios e trovões, e sem previsão, quando não garoa, estou sujeito a tempestades.
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Você é aquilo que faz quando ninguém está vendo.
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– Sérgio Vaz, no livro “Literatura, pão e poesia”. Global, 2012
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SOBRE O LIVRO
Idealizador da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), o poeta ativista Sérgio Vaz nos brinda com um livro de crônicas, às vezes de mãos dadas com a poesia e o conto, às vezes um espaço de opinião e divagação. Todas falam da periferia paulistana, revelando com sentimento e revolta a difícil relação entre o centro e os bairros esquecidos da cidade.
FICHA TÉCNICA
Título: Literatura, pão e poesia
Páginas: 192
Formato: 18 x 12.4 x 1 cm
Acabamento: Brochura
Lançamento: 1/1/2011 (1ª edição)
ISBN: 978-8526015784
Selo: Global Editora
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