LITERATURA

“Havia um homem que corria pelo orvalho dentro” – Herberto Helder

Elegia múltipla
III

Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
loucamente
por um caçador de que nada sabia.
E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.

Não havia animal que no seu pêlo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas por uma morte
tão bela.
Porque as ervas têm pálpebras abertas
sobre estas imagens tremendamente puras.
Pelo orvalho dentro.
De dia. De noite.
A sua cara batia nas candeias.
Batia nas coisas gerais da manhã.
Havia um homem que ia admiravelmente perseguido.
Tomava alegria no pensamento
do orvalho. Corria.

Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Que têm os olhos cegos como sangue.
Este corria assombrado.
Os mortos devem ser puros.
Ouvi dizer que respiram.
Correm pelo orvalho dentro, e depois
estendem-se. Ajudam os vivos.
São doces equivalências, luzes, ideias puras.
Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar

– a morte é passar, como rompendo uma palavra,
através da porta,
para uma nova palavra. E vejo
o mesmo ritmo geral. Como morte e ressureição
através das portas de outros corpos.
Como uma qualidade ardente de uma coisa para
outra coisa, como os dedos passam fogo
à criação inteira, e o pensamento
pára e escurece

– como no meio do orvalho o amor é total.
Havia um homem que ficou deitado
com uma flecha na fantasia.
A sua água era antiga. Estava
tão morto que vivia unicamente.
Dentro dele batiam as portas, e ele corria
pelas portas dentro, de dia, de noite.
Passava para todos os corpos.
Como em alegria, batia nos olhos das ervas
Que fixam estas coisa puras.
Renascia.

– Herberto Helder, no livro “Poemas completos”. Série Grandes Escritores, Rio de Janeiro: Editora Tinta-da-China, 2016 – p. 67-68.

Ouça Herberto Helder 
recitando o poema ‘Elegia Múltipla – III’, do livro «A Colher na Boca» (1961). Registrado em disco Vinyl, editado pela Philips, para a série Poesia Portuguesa (1968).  Música: Gustavo Santaolalla e Thomas Newman

Outros poemas do poeta português Herberto Helder:
Herberto Helder (poemas e textos)

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Entrevista com a compositora e cantora Fátima Guedes, por Daniela Aragão

Fátima Guedes, cantora, compositora e violonista, carioca, nasceu em 6 de maio de 1958. Vários…

12 horas ago

Festival Internacional de Berlim 2025: confira a lista completa de vencedores

Drama norueguês "Dreams (Sex Love)" levou o Urso de Ouro; e o brasileiro "O Último…

14 horas ago

Josee Koning lança álbum ‘Doce Presença’, produzido por Ivan Lins

Cantora holandesa Josee Koning celebra a música brasileira nesse novo projeto, produzido por Ivan Lins,…

1 dia ago

Isabella Taviani apresenta espetáculo ‘Voz e Violão’ no Blue Note São Paulo, com participação de Luiza Possi

No Blue Note SP, Isabella Taviani faz duas últimas sessões do espetáculo no formato intimista…

2 dias ago

Geraldo Azevedo celebra o carnaval em grande estilo

Comemorando 80 anos de vida e com frevo novo, o cantor e compositor pernambucano Geraldo…

2 dias ago

Mário de Andrade – o turista aprendiz, direção de Murilo Salles anuncia data de lançamento e trailer

Filme resgata identidade de Mário de Andrade ao recriar expedição pela Amazônia. Dirigido por Murilo…

2 dias ago