COLUNISTAS

Hegallah: a corte beduína – Nati Alfaya

A Hagallah é uma dança kaff cerimonial beduína.

Apenas essa primeira frase já está cheia de conceitos que precisam ser esclarecidos para que se possa compreender um pouco melhor o que é a Hagallah.

A palavra Hagallah vem do árabe “hagl” que em tradução literal significa “saltar”. E isso já nos diz muito sobre o humor dessa dança. A hagallah é uma dança alegre, bastante acelerada e divertida.

Ela dançara pelos povos beduínos das regiões do leste da Líbia e do oásis de Marsa Matruh, no Egito. Povos beduínos são aqueles que vivem nos desertos. Ao contrário do que costumamos pensar, as regiões de deserto não são regiões inabitáveis ou inabitadas, existem muitos povos que vivem nestas áreas. Eles se dedicam principalmente a atividades como pastoreio e criação de animais (especialmente camelos, cobras e carneiros), lavoura, comércio e proteção das estradas (os povos beduínos são conhecidos por serem fortemente territoriais).

Em geral os povos beduínos são muito fechados e desconfiados com forasteiros, o que dificulta em muito o acesso à sua cultura e suas danças tradicionais. Entre os anos de 1965 e 1967 Mahmoud Reda organizou uma expedição com outros estudiosos e bailarinos a fim de pesquisar as danças tradicionais das províncias do Egito, entre elas, a Hagallah. Mas é sempre importante destacar que o próprio Reda deixa claro que ele estilizou as danças para serem apresentadas nos palcos, embora tenha mantido sua essência. Assim, o que temos acesso é uma versão adaptada das danças beduínas, mas mesmo assim, a Trupe Reda é a principal fonte de estudos para danças folclóricas egípcias.

A Hagallah é uma dança kaff. Kaff pode ser traduzido, de forma literal, como “bater palmas”, e representa um conjunto de danças beduínas onde a base da música é feita com o bater de palmas, pés, gritos de incentivo e vozes ritmadas, além de alguns instrumentos de percussão mais rudimentares. A kaff pode ter desde padrões bastante simples até padrões bastante complexos, determinando o ritmo, dinâmica e andamento da música e da dança.

A Hagallah é uma dança cerimonial de celebração, isso quer dizer que ela tem uma função e um procedimento específico. A função da Hagallah é que a mulher escolha seu futuro marido. Exista alguma polêmica a respeito dessa informação, se a mulher poderia de fato escolher seu noivo ou se a Hagallah seria apenas uma dança lúdica, a pesquisadora de folclore árabe Nilza Leão, amparada nos estudos do mestre Gamal Seif, acredita que, embora hoje em dia a dança seja uma encenação, em tempos remotos as mulheres beduínas realmente escolhiam seus futuros maridos através da Hagallah. Gamal Seif afirma que até os dias atuais são as mulheres beduínas que escolhem com quem irão se casar, mesmo que a escolha em si não acontece mais dentro do contexto da Hagallah.

A bailarina Farida Fahmy, parte da expedição de Mahmoud Reda, foi a primeira a descrever todo o cerimonial envolvido na dança Hagallah. Segundo ela o cerimonial é dividido em 3 partes:

– Ghenaywa: é a introdução, o inicio, se constitui por versos improvisados cantados por um solista ou poeta, são versos apaixonados falando sempre de amor.

– Shettaywa: esta é a fase onde a dança acontece. Os homens se dividem em pequenos grupos em formato semicircular, ombro a ombro e começam a cantar, bater palmas (kaff), se inclinando pra frente e para trás todos juntos. Conforme os cantos e palmas ficam mais intensos a mulher Al Hagallah (figura principal da dança e que escolherá seu noivo) entra, sozinha ou acompanhada de outras mulheres, dançando. Ela divide sua atenção entre os grupos de homens se aproximando mais daqueles que parecem mais animados e interessados em sua dança, e é justamente a possibilidade de escolha da mulher que aguça o espírito competitivo dos homens, que fazem cada vez mais barulho, cantando mais alto, batendo palmas e com gritos de incentivo. O homem que se mostrar mais carismático ou forte é o escolhido pela mulher Al Hagallah. Quando a escolha é feita, o homem se ajoelha e joga ao chão as joias que pretende oferecer à mulher e ela, retira as joias que está usando para aceitar os presentes de seu, agora, noivo. Feito isso, o homem retira uma longa echarpe branca do pescoço e a amarra ao redor da cintura da mulher, representando o enlace entre eles.

– Magruda: é a parte final da cerimônia. A música volta a se acalmar e ser cantada por um solista, com a companhamento do coro de presentes, não existe dança nesta parte, e usualmente se repetem os mesmos versos da fase inicial.

Os principais ritmos encontrados na dança Hagallah são o malfufu, o fallahi, o saidi e a rumba e, embora não esteja presente em absolutamente todas as músicas, existe o que se chama de “estrutura Hagallah” que nos ajuda a identificar uma música Hagallah. Essa estrutura é formada por 3 repetições de malfuf (D + TkTk) seguidas por 1 de rumba (D + D + Tk).

Os figurinos típicos são muito característicos da Hagallah. Os homens se vestem com cores claras, uma calça sawrel, túnicas ou camisas, um colete sobreposto e o jird (tecido geralmente na cor creme, que varia conforme o status social do possuidor, podendo ser feito de lá até seda) enrolado pelo corpo. Já a mulher al Hagallah usa um vestido bordado ou estampado típico das beduínas, com muitas joias, normalmente prateadas, os cabelos presos num coque alto e a cabeça e rosto cobertos por um tecido preto e fino chamado tarha (tecido este que a Trupe Reda, em sua estilização da dança, escolheu não utilizar) e o jird amarrado no quadril formando uma espécie de sobre saia de 2 camadas, a fim de dar mais volume e destaque para o quadril.

A Hagallah é uma dança muito festiva e alegre, onde o flerte entre a mulher Al Hagallah e os homens disputando sua atenção acontece de forma recatada e brincalhona. É uma das danças mais deliciosas de se assistir. Abaixo um vídeo que mostra bem a dinâmica da dança Hagallah, embora, claramente seja algo adaptado para os palcos e um pouco longo.

Nati Alfaya, dançarina árabe com 10 anos de estudo e prática, parte do grupo Caravana Lua do Oriente – Companhia de Danças Árabes, sediado em Londrina, Paraná, escreve sobre as danças árabes em suas diversas formas tendo um amor especial pelos folclores.

Outros textos de Nati Alfaya:
Nati Alfaya (textos e ensaios)

Facebook: Caravana Lua do Oriente 

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Tiago Caetano lança o seu primeiro álbum ‘Eco da Baía’

Uma certa doçura, um país carregado de história política e cultural. Imagens vêm instantaneamente à…

7 horas ago

Velha D+ faz três únicas e inéditas apresentações no Espaço de Provocação Cultural

Velha D+ reflete sobre feminismo e etarismo. Montagem gaúcha tem direção de Bob Bahlis, atuação…

2 dias ago

Enzo Belmonte lança álbum ‘Meu Axé – Cantigas de Terreiro (ao vivo no Cacique de Ramos)’

No dia em que celebramos o Dia Nacional da Umbanda, 15 de Novembro, o cantor…

2 dias ago

A Bailarina Fantasma faz quatro apresentações no Espaço 28, no Bom Retiro

Depois de estrear no CCSP, a peça-instalação 'A Bailarina Fantasma' retorna ao espaço intimista onde…

3 dias ago

Zeca Baleiro canta ‘Esperanto’, single do álbum da poeta Lúcia Santos

Single ‘Esperanto’ anuncia o álbum da poeta e letrista Lúcia Santos, que ainda tem Anastácia,…

3 dias ago

Karina Buhr lança single ‘Poeira da Luz’

Uma trilha viajante, vinda no rastro do tempo, pega o ouvido para passear na nova…

3 dias ago