O autor de “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton Krenak, é um líder indígena que se tornou mais conhecido quando, em 1987, fez um pronunciamento na Assembleia Constituinte em Brasília, protestando em defesa dos direitos indígenas e pintando o rosto com tinta preta de jenipapo (Jenipa americana). Quando da comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil, ele foi convidado para participar, mas se negou, por achar que essa era uma festa dos portugueses. Em 2017 aceitou participar da conferência “Os involuntários da pátria”, em Lisboa, num evento ibero-americano de cultura, convidado por Eduardo Viveiros de Castro. Na ocasião, foi apresentado o documentário “Ailton Krenak e o sonho da pedra”, dirigido por Marco Altberg, e depois ele conversou com os participantes. Essa conversa e outra realizada no ano seguinte são apresentadas no livro.
A etnia Krenak, a qual pertence Ailton, ocupa um território indígena que vai do Nordeste brasileiro até o leste de Minas Gerais, onde passa o rio Doce; também está presente na Amazônia, na região do Alto Rio Negro, na fronteira do Brasil com Peru e Bolívia. É um território que ficou bastante reduzido devido à ação dos colonizadores, que foram dominando a área e limitando os espaços dos habitantes tradicionais da região para espaços que hoje se mantêm preservados, mas sofrendo invasões, tal como ocorria no passado.
Excertos do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. de Ailton Krenak
Da conferência “Ideias para adiar o fim do mundo”
{IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO — Palestra proferida no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em ciclo de seminários coordenado por Susana de Matos Viegas, no dia 12 de março de 2019, como atividade preparatória à “Mostra ameríndia: Percursos do cinema indígena no Brasil”}
“Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“… refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem —, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“O que é feito de nossos rios, nossas florestas, nossas paisagens? Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política, que não conseguimos nos erguer e respirar, ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas ecologias. Para citar o Boaventura de Sousa Santos, a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade. Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“… a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade. Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe. “Vamos separar esse negócio aí, gente e terra, essa bagunça. É melhor colocar um trator, um extrator na terra. Gente não, gente é uma confusão. E, principalmente, gente não está treinada para dominar esse recurso natural que é a terra.” Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar?
A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos. Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos.”
– Ailton Krenak, da conferência ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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Da conferência “Do sonho e da terra”
{DO SONHO E DA TERRA — Palestra proferida em Lisboa, no Teatro Maria Matos, no dia 6 de maio de 2017, com transcrição de Joëlle Ghazarian}.
“O dilema político que ficou para as nossas comunidades que sobreviveram ao século XX é ainda hoje precisar disputar os últimos redutos onde a natureza é próspera, onde podemos suprir as nossas necessidades alimentares e de moradia, e onde sobrevivem os modos que cada uma dessas pequenas sociedades tem de se manter no tempo, dando conta de si mesmas sem criar uma dependência excessiva do Estado.
O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização (com toda essa pressão externa).”
– Ailton Krenak, da conferência “Do sonho e da terra”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Neste encontro, estamos tentando abordar o impacto que nós, humanos, causamos neste organismo vivo que é a Terra, que em algumas culturas continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos, não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas, mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência. Em diferentes lugares do mundo, nos afastamos de uma maneira tão radical dos lugares de origem que o trânsito dos povos já nem é percebido. Atravessamos continentes como se estivéssemos indo ali ao lado. Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para outro, que as comodidades tornaram fácil a nossa movimentação pelo planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos.”
– Ailton Krenak, da conferência “Do sonho e da terra”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos.”
– Ailton Krenak, da conferência “Do sonho e da terra”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“A experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria, significando que ela é tudo o que está fora de nós. Essa tragédia que agora atinge a todos é adiada em alguns lugares, em algumas situações regionais nas quais a política — o poder político, a escolha política — compõe espaços de segurança temporária em que as comunidades, mesmo quando já esvaziadas do verdadeiro sentido do compartilhamento de espaços, ainda são, digamos, protegidas por um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida.”
– Ailton Krenak, da conferência “Do sonho e da terra”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos. Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática, a nossa ação, e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida, em qualquer lugar, superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos, assim como às formas de sociabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade humana está excluída, que em última instância gastam toda a força da Terra para suprir a sua demanda de mercadorias, segurança e consumo.”
– Ailton Krenak, da conferência “Do sonho e da terra”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades.”
– Ailton Krenak, da conferência “Do sonho e da terra”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
Leia: Ailton Krenak – uma fonte de sabedoria
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De entrevistas “A humanidade que pensamos ser”
{A HUMANIDADE QUE PENSAMOS SER — Texto elaborado a partir de entrevista com Ailton Krenak, conduzida por Rita Natálio e Pedro Neves Marques, em Lisboa, em maio de 2017, com transcrição e edição de Marta Lança}.
“O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação. Quando se transfere isso para a mercadoria, para os objetos, para as coisas exteriores, se materializa no que a técnica desenvolveu, no aparato todo que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra. Todas as histórias antigas chamam a Terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. Veja-se a imagem grega da deusa da prosperidade, que tem uma cornucópia que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo… Noutras tradições, na China e na Índia, nas Américas, em todas as culturas mais antigas, a referência é de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.”
– Ailton Krenak, de entrevistas “A humanidade que pensamos ser”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Há muito tempo não existe alguém que pense com a liberdade do que aprendemos a chamar de cientista. Acabaram os cientistas. Toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria. Antes de essa pessoa contribuir, em qualquer sentido, para abrir uma janela de respiro a essa nossa ansiedade de perder o seio da mãe, vem logo um aparato artificial para dar mais um tempo de canseira na gente. É como se todas as descobertas estivessem condicionadas e nós desconfiássemos das descobertas, como se todas fossem trapaça. A gente sabe que as descobertas no âmbito da ciência, as curas para tudo, são uma baba.”
– Ailton Krenak, de entrevistas “A humanidade que pensamos ser”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza. Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros humanos que não somos nós estão fora, a gente pode comê-los, socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro lugar do espaço. O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós.”
– Ailton Krenak, de entrevistas “A humanidade que pensamos ser”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.
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“Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser. Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como “natureza”, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela. Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sumindo, que está sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos. Os quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome, violência dirigida.”
– Ailton Krenak, de entrevistas “A humanidade que pensamos ser”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das Letras, 2019.