Recentemente, o nome de Nise da Silveira emergiu com destaque no cinema brasileiro em dois momentos. O mais famoso, “Nise – o coração da loucura”, de Roberto Berliner e estrelado por Glória Pires, reconstrói dramaticamente um momento importante na vida da célebre psiquiatra alagoana, famosa pelo tratamento inovador iniciado no Centro Psiquiátrico de Engenho de Dentro, no Rio, que culminaria na criação do Museu Imagens do Inconsciente e depois na Casa das Palmeiras, clínica em que teria liberdade para trabalhar conforme seus métodos e ideais.
“Olhar de Nise”, documentário com direção de Jorge Oliveira, apesar de certos didatismos, é uma boa introdução para quem não conhece Nise. E talvez, para esse público, funcione melhor que o longa de Berliner. Além da importância como terapeuta, numa época em que eletrochoques e torturas afins eram tidos como cientificamente válidos, introduziu e impulsionou o pensamento de Carl Gustav Jung no Brasil, o que por si só possui importância incalculável.
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Mas Nise foi muito além. Primeira médica mulher nas Alagoas, presa e amiga de cárcere de Graciliano, inspiração definitiva para todas as melhorias psiquiátricas posteriores, envolvida com o início da musicoterapia no Brasil. Mais ainda: figura central na história da arte brasileira, uma ponte entre psicologia e arte, a descobridora de inúmeros talentos e que apresentou as obras dos pacientes de Engenho de Dentro ao maior dos críticos do país, Mário Pedrosa. Haveria mulher mais importante e brilhante que Nise na história brasileira?
“Olhar de Nise” acentua essas qualidades, mas não supera “Imagens do Inconsciente”, rodado entre 1983 e 86, coletânea de três documentários (“No reino das mães”, “Na barca do sol” e “Em busca do espaço cotidiano”), cada qual sobre um paciente-artista tratado por Nise. Direção de Leon Hirszman, e texto da própria Nise da Silveira, narrado ao longo do filme, numa parceria de resultado extraordinário.
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Em “No reino das mães”, conhecemos Adelina Gomes. Esquizofrênica, internada ainda jovem, após uma decepção amorosa e depois de estrangular uma gata. Tida a princípio como negativista e agressiva, seu comportamento tem melhorias após o contato com o trabalho artístico, sobretudo com esculturas de barro. Suas obras revelam conteúdos arcaicos, arquetípicos, e assim, mitológicos, como o mito de Daphne, que emerge de suas obras.
Em Adelina já encontramos a proposição fundamental do pensamento junguiano acerca do Inconsciente Coletivo, um conjunto de símbolos, mitos e arquétipos partilhados por todos os povos em diferentes épocas, e que emergem em situações especiais, às vezes de maneira perigosa. “No reino das mães”, além de exaltar a obra de Adelina, traz uma crítica à “psiquiatria tradicional” e sua tara por psicotrópicos e processos (alguns já deixados de lados) responsáveis por embotamento emocional e castração da criatividade.
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“Na barca do sol” foca no genial Carlos Pertuis, tido por Mário Pedrosa como um dos maiores místicos da Humanidade. Temos aqui uma autêntica aula da psicologia junguiana, de seus princípios elementares, todos muito presentes na enigmática obra de Pertuis. Sapateiro internado com menos de trinta anos, deixou mais de 21 mil obras, e foi encarcerado justamente por suas “visões místicas”. Boa parte de sua obra – que anos depois fascinaria C. G. Jung – é composta por mandalas, estruturas que Jung caracteriza como opositoras à dissociação da psiquê, ou ainda, forças de defesa, a apresentação para um processo autocurativo. Além das mandalas, estruturas geométricas, estáveis, sólidas, por vezes simétricas, são comuns em sua obra.
Arrebatadores são os rituais pintados pelo artista: elementos pagãos e cristãos se misturam, com a presença do fogo e de serpentes. A obra de Pertuis permite estudar o conceito junguiano de Sombra, em forma de figuras demoníacas, assim com a ideia seminal de Anima. Místico, sua arte possui acentuado sentido cósmico, com astros, viagens pelas estrelas, barcos no espaço, e impressiona pelo parentesco com imagens mitraicas encontradas na Roma Antiga. Nise escreve, fascinada, que “a arqueologia psíquica se sobrepôs à arqueologia propriamente dita”.
Para encerrar, “Em busca do espaço cotidiano” traz Fernando Diniz, outro artista querido por Pedrosa. Após uma introdução sobre a importância das atividades ocupacionais como pintura, modelagem, música, marcenaria, narrada por Ferreira Gullar, entra a obra de Fernando, também marcada pela presença das mandalas. Nise ensina: “a pintura permite detectar movimentos instintivos das forças autocurativas da psiquê”. Fernando Diniz assinaria anos depois o curta de animação “Estrela de oito pontas” (1996), com coordenação de Marcos Magalhães, vencedor de um Kikito em Gramado e premiado em Havana.
No “Posfácio” que acompanha os três capítulos de “Imagens do Inconsciente”, Nise surge em bela entrevista. Leon Hirszman morreria pouco depois, em 1987, e deixaria esse material bruto, posteriormente montado por Eduardo Escorel. Apesar da importância de Hirszman no Cinema Novo, “Imagens do inconsciente” talvez venha a ser sua obra mais duradoura, algo que não envelhece nem sai de moda: aborda questões atemporais da existência e mergulha nas profundezas da psiquê humana à caça de seus mistérios recônditos.
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* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.
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