O génio, o crime e a loucura provêm, por igual, de uma anormalidade, representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio. Se repousam, porém, sobre um igual fundo degenerativo, se o génio constitui, de por si, uma espécie nosográfica — são coisas que não sabemos. Manifestação especial de epilepsia larvada, como precipitadamente quis Lombroso, ou manifestação de uma diatese degenerativa, o certo é que o génio é, de sua natureza, uma anormalidade.
Sucede que a imaginação simplista das multidões não destrinça de instinto entre o que na personalidade do homem superior constitui, ou representa, superioridade, e o que nela resulta de concomitante, ou intercorrente, anormalidade psíquica, patentemente tal. No fundo, esta intuição espontânea é justa. Na personalidade tudo se liga? se interrelaciona. Não podemos “separar”, salvo por um processo analítico conscientemente truncador da realidade, na personalidade de Goethe, por exemplo, a modalidade específica da sua ideação literária e a tendência alucinativa que, como se sabe, obriga a autoscopia externa; nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por ex., a inversão sexual.
A grande multidão de fascinados inferiores, incapazes de criar e de (…), falhos de inibição e de senso crítico, na impossibilidade de (… ), com razoável êxito (salvo um declarado [?] delírio de grandezas) imitar os poemas de Musset ou os de Verlaine, podem contudo, com maior aproximação, plagiar ao primeiro o copo [?] gigantesco com que se embriagava quotidianamente, e ao segundo a sua incurável vagabundagem e amoralidade de degenerado típico. Quem não pode fazer versos como Baudelaire pode, porém, tingir os cabelos de verde. A prática da pederastia, embora nem sempre fácil […], é contudo mais fácil que a produção de uma segunda “Salomé”.
As biografias dos grandes homens realizam hoje, no sentido inverso, o que entre os homens da Renascença realizou a leitura de Plutarco. Criam um mimetismo […].
1913?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. – 133.
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