O estudo da indumentária não diz respeito apenas à moda. A fusão de indumentária e história não pode ser compreendida como uma novidade. A vestimenta, os símbolos e os objetos estão, há muito tempo, delimitando fronteiras geográficas, classificando castas, caracterizando tribos e ajudando a localizar as sociedades no tempo. A construção da imagem de uma civilização só pode ser feita através da pesquisa de sua origem e do conhecimento de suas peculiaridades.
A indumentária é uma linguagem social que nos fala sobre fenômenos humanos. Ela pode resultar de fatores naturais, como clima e região, ou pode carregar as marcas de valores religiosos e rituais. A resistência em compreendê-la como uma tecnologia possível e eminente, não a apaga dos registros historiográficos e etnográficos.
Aqui, tomamos como exemplo a análise da indumentária da população de origem africana que habitava o Rio de Janeiro do século XIX, pelos registros visuais feitos pelo pintor Jean-Baptiste Debret, e a contribuição da leitura de sua obra para decifrar os códigos da vestimenta desta camada da sociedade.
Faz-se necessário o conhecimento do status da moda naquele contexto, de maneira mais ampla, passando pelas classes altas compostas por pessoas brancas, que eram as recebedoras e disseminadoras de tendências européias no Brasil.
Estabelecidas as diferenças entre os conceitos da importância do vestir-se para as duas camadas social e economicamente opostas (uma, negra e predominantemente escrava, trazendo consigo traços especificamente originários dos inúmeros grupos étnicos que compõem a cultura africana; a outra, branca, com acesso às informações vindas de países como França e Inglaterra, para a qual a roupa era um meio de ostentação de riqueza e poder, e sinal de civilização, uma vez que se tentava seguir os padrões europeus, mesmo isto consistindo em sacrifício físico devido às diferenças climáticas extremas), é preciso compreender de que maneira se dá o trânsito de influências entre elas. Como descreve Eduardo França Paiva, a respeito da mistura cultural instalada nos centros urbanos, tanto os do Rio de Janeiro, como os de Minas Gerais e da Bahia, após o que ele chama de “boom da mineração” ocorrida em fins do século XVII, resultando no grande desenvolvimento experimentado por estas regiões à época:
A população da América portuguesa aumentou rapidamente a partir da imigração de muitos portugueses, mas, principalmente, por conta da entrada de muitas dezenas de milhares de escravos africanos no Brasil. O universo cultural da colônia é naturalmente incrementado e se torna muito complexo, instigando trocas de experiências, de conhecimentos e de tradições, acentuando conflitos e distinções e possibilitando a formação de uma sociedade biológica e culturalmente mestiça (PAIVA, 2006, p. 54).
A partir destas janelas no tempo abertas por Debret, se pode alcançar os significados por trás das cenas retratadas por ele, cristalizando nestas imagens sua versão da história, entre desenhos e aquarelas das cenas urbanas do Rio de Janeiro que compõem seu Caderno de Viagem e o Catálogo Raisonné do artista, fornecendo um material valioso para a iconografia brasileira, sem utilizar eufemismos. “Neste sentido, a publicação do caderno é inestimável como mais uma fonte para um assombroso quotidiano, que era, ao mesmo tempo, pitoresco e cruel” (BANDEIRA, 2006, p.6).
É importante teorizar a função da indumentária como elemento cultural, e sua pertinência enquanto objeto de estudo na história, para isso, buscando embasamento onde a moda é tratada não como marginal, mas como peça importante numa época, conflitando noções em que é tomada como exclusiva das sociedades emergentes a partir da Idade Moderna, pois, segundo o filósofo Gilles Lipovetsky, está ligada à mudança e à efemeridade, o que exclui, desde modo, tanto as civilizações antigas, como as tribos remotas que cultivam hábitos milenares e estão alheias à mudanças; e elucidando o objeto da moda, ou seja, a roupa e sua ligação com o indivíduo (ou cultura), no papel de “coisa” fundamental, sem a qual perde-se parte da dignidade, respeitabilidade e capacidade de se afirmar perante a sociedade em que se insere, o que aproxima o vestir-se a um ritual onde a roupa é uma proteção e uma insígnia.
No livro O Casaco de Marx: Roupas, memória e dor, o autor Peter Stallybrass narra os altos e baixos aos quais a família de Karl Marx fora submetida na fase em que o pensador alemão viveu exilado em Londres, em condições precárias que o obrigavam, por várias vezes, a recorrer a penhora dos objetos pessoais dele, de sua esposa e filhas. Sobre isto, o autor conclui:
Tornou-se um clichê dizer que nós não devemos tratar as pessoas como coisas. Mas trata-se de um clichê equivocado. O que fizemos com as coisas para devotar-lhes tal desprezo? E quem pode se permitir ter este desprezo? Por que os prisioneiros são despojados de suas roupas a não ser para que se despojem de si mesmos? Marx, tendo um controle precário sobre os materiais de sua autoconstrução, sabia qual era o valor de seu próprio casaco (SRALLYBRASS, 2000, p. 124).
Neste prisma, à indumentária é atribuído um fetiche, ou seja, imprime-se nela um valor quase místico, um poder imaginário. Algo parecido com a prática muito comum de se guardar um objeto, uma peça de roupa que pertenceu a um ente querido, como se ali ficasse a memória, o espírito daquela pessoa. Este conceito é expresso não apenas nestas pequenas práticas que conhecemos, mas também está presente em realidades muito distantes temporal e geograficamente. Sabendo que, por roupa é compreendido o artifício usado para cobrir-nos o corpo, fica evidente a idéia de fetiche praticado em culturas indígenas e africanas, onde os indivíduos se pintam, adornam seus corpos com penas e ossos de animais, acreditando incorporar-lhes a força. De forma semelhante, entende-se o significado de adereços usados pelos negros no Brasil, como mostra Eduardo França Paiva, ao discorrer sobre Negra tatuada vendendo caju, de Jean-Baptiste Debret:
A mesma negra retratada por Debret ou idealizada por ele a partir de sua atenta e perspicaz observação da realidade brasileira traz à cintura uma penca de balangandãs. Essa coleção de penduricalhos, durante muito tempo, não passou aos olhos historiográficos de exóticos adornos usados pelas escravas e pelas libertas, sobretudo na Bahia e no Rio de Janeiro. Hoje se sabe que não se trata de um ornamento apenas, mas que eram amuletos e objetos que simbolizavam uma série de conquistas femininas, como, por exemplo, a alforria individual e familiar, a ascensão econômica e a preservação de valores culturais africanos e afro-brasileiros (PAIVA, 2006, p. 96).
Confirmando que a moda precisa ser levada a sério, abandonando o julgamento que a declara frívola e banal, há na contemporaneidade produções onde ela serve de apoio para a elaboração de estudos sobre diferentes assuntos humanos, relativos à socialização, arte e estética. Por isso, não só em produção relativa diretamente à moda podemos lançar nossos olhares, mas sim, de forma mais abrangente, devemos observar elementos que passam incólumes, não permitindo que a concebamos como linguagem, meio e objeto de pesquisa.
* Mayra Muniz, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Designer e ilustradora.
Leia outras colunas de Mayra Muniz. Aqui!
Áurea Martins - iniciou sua carreira na Rádio Nacional. Gravou seu primeiro disco como prêmio…
“Festival 38 em Nós” terá show a céu aberto no dia 22, quarta-feira, e mostra…
Chegando em 2025 aos 50 anos de sua fundação, o Grupo Corpo celebra a trajetória…
Os ensaios abertos do Bloco da Orquestra Voadora já viraram referência na programação cultural do…
Esse final de semana será de grandes apresentações no Soberano Jazz Club, com destaque para…
Danças de Presente, três improvisações breves de Marcus Moreno, dedicadas a Mariana Muniz, Alex Ratton…